José Abrão
Goiânia – A cena musical alternativa e independente de Goiânia sempre se destacou pela efervescência, especialmente entre o final dos anos 1990 e o final dos anos 2010. Embora o rock tenha sido o eixo central desse movimento, a predominância masculina tornou o espaço, por muito tempo, fechado e pouco inclusivo.
No entanto, ao longo dos anos, artistas femininas passaram a ocupar esses palcos, ampliando fronteiras e diversificando estilos. Esse movimento abriu caminhos para outras mulheres e, além disso, impulsionou uma nova geração de músicos, tornando a cena mais plural e representativa.
A cantora Bruna Mendez está na cena há 15 anos, explorando diversos caminhos da MPB. Em sua visão, a cena roqueira da capital sempre teve um forte aspecto de “clube do Bolinha”, o que levou muitas artistas a desbravarem outros gêneros. Mendez já lançou três discos autorais, sendo o mais recente, 'Nem Tudo é Amor', em setembro do ano passado.
“Talvez por Goiânia ter essa cultura de festival de música independente e por essas bandas serem formadas, em sua maioria, por homens, o cenário não era tão voltado para meninas e mulheres. Acho que, por isso, acabamos ocupando outro lugar na música”, diz. “Mas, à medida que o tempo passa, temos mais representatividade, surgem novas figuras que, por sua vez, influenciam outras meninas”, completa.
Mendez destaca, porém, o papel fundamental que o Centro Cultural Martim Cererê teve em sua formação, funcionando como uma verdadeira Meca da música alternativa na capital, aberta a todo tipo de artista. “Cresci no Martim Cererê vendo só um monte de caras tocando (risos). Mas eu queria estar ali, queria ocupar aquele espaço. Talvez, se eu tivesse visto uma mulher com o mesmo destaque que eles, teria tido coragem de entrar na música antes”, comenta. “O Martim teve uma importância gigantesca na minha formação. Saía da escola na sexta-feira, depois da prova, e sempre tinha alguma coisa acontecendo por lá, não importava o quê”, lembra.
A cantora Bruna Mendez (Foto: Energia Dykezona)
Hoje, ela avalia que a presença feminina na cena está mais forte e inclusiva. “Foi algo que nós mesmas construímos, ocupando um espaço por resistência, por querer estar ali e ser melhores”, diz.
Ela lamenta, porém, que, em sua visão, a cena não seja mais tão efervescente, especialmente ao redor do Martim Cererê, no que diz respeito à formação de novos públicos. “Esse lance do Martim tem muito a ver com construção e formação de audiência. São atrações relativamente baratas, você vai, assiste e, de repente, gosta de uma banda e começa a segui-la depois. É toda uma construção que se perde”, observa.
Ocupando o rock
A cantora Salma Jô é a frontwoman da Carne Doce, uma das bandas mais populares de Goiânia no cenário nacional, além de integrar o projeto paralelo Salma & Mac. Com letras que sempre exploraram o sexo e o erotismo, além de uma presença de palco forte e sensual, ela relata já ter sido alvo de machismo, principalmente na internet. “Ser a frontwoman e ter essa exposição proporciona e exige um certo poder. Na realidade, sou muito insegura, mas sinto que isso faz parte do meu jeito de trabalhar como artista. Tem que haver alguma ousadia, senão acho sem graça. Eu acho divertido escrever sobre sexo, é um assunto interessante, inspirador, e gosto de ser sensual no palco”, afirma.
Em sua formação, ela também destaca o papel fundamental do Martim Cererê: “O palco do Martim foi onde vi a criatividade da forma mais crua, amadora e próxima, feita por gente da minha cidade, parecida comigo. A performance do rock, na época, se dividia entre algo explosivo, sensual e visceral, ou algo mais intelectual e introspectivo. Acho que fui influenciada por todo esse contexto e esses estilos. Sem o Martim, talvez eu nunca me imaginasse fazendo algo parecido, sentiria que a música não era para mim”, diz.
Estar à frente de uma banda de rock “trouxe algumas dificuldades, naturalmente, porque o machismo persiste e muitas vezes se impõe. Mas também vivi esse movimento de valorização da identidade e da criação feminina. Já tinha consciência de que seria mais ou menos assim, mas ainda é algo sobre o qual aprendo na prática, no dia a dia”, assegura.
Salma Jô (Foto: Gabriel Lara Arruda)
Atualmente, a banda está em São Paulo, e Salma comenta que ainda há uma fronteira muito nítida entre estar e não estar na Pauliceia. “Quem é do interior do Brasil, independentemente do gênero ou estilo, está excluído da cena de música independente, da imprensa cultural, das oportunidades, dos palcos e dos festivais. O que nos falta hoje é uma economia cultural mais descentralizada e sustentável em todo o país, especialmente no interior”, relata.
Em sua visão, ao longo de 10 anos de carreira, a cena mudou drasticamente e está muito mais diversa: “Nós mesmos surgimos em um movimento de diversificação. Suspeito que, antes, estilos diferentes tinham de coexistir no mesmo espaço, e que hoje estamos mais divididos em bolhas que não se comunicam. Quando comecei a frequentar esse cenário, a toxicidade, em vários aspectos, era motivo de orgulho, símbolo de diferenciação e de poder. Acho que esses valores mudaram radicalmente”, pontua.
E a agenda da banda continua agitada: eles vão lançar em vinil seu último disco, 'Cererê', que celebra o espaço cultural da capital, além de realizar shows em São Paulo, Brasília e Goiânia. “Também estamos preparando um show especial para o meio do ano, em que faremos uma retrospectiva da cena indie brasileira dos anos 2010 e dos nossos 10 anos de carreira. Já com o Salma & Mac, estamos planejando alguns shows no exterior”, enumera.
Nova geração
A cantora Maduli tem apenas 23 anos e iniciou sua carreira na música há três anos, trazendo uma proposta ainda mais diferente e totalmente única para Goiânia: o pop. Inspirando-se tanto em nomes nacionais quanto em divas como Beyoncé, a artista é a prova de que há espaço para tudo no underground goianiense.
Ela avalia que o cenário está, de fato, mais diverso e inclusivo, com várias mulheres se destacando: “A cena feminina aqui em Goiânia é muito rica. Temos muitas artistas mulheres, amigas, cantoras, artesãs, empreendedoras, enfim.” Mas isso não significa que seja fácil. Para ela, “o que falta mesmo para nós é espaço. Que consigamos ocupar esses espaços, nos apresentar e estar nos grandes festivais.”
As conquistas, no entanto, são sempre celebradas: em março, ela abrirá o show de Maria Gadú no Festival das Minas.
Maduli (Foto: divulgação)
A artista comenta que, por exemplo, não viveu a fase de efervescência do Martim Cererê, lembrando apenas de alguns shows esporádicos. Ela, inclusive, se apresentou na reabertura do espaço após a pandemia, em 2022. Agora, apenas conseguir se apresentar já é um desafio: “Viver de música é um processo de resistência absurdo, principalmente aqui em Goiânia. Sendo mulher, cantora alternativa e independente, é ainda mais difícil. Do final do ano passado até agora, está impossível [fazer show]. Não tem nada”, diz.
Apesar disso, ela não desanima: “É um sonho difícil de sustentar e caro de manter. Sempre que surge um evento, a gente tem que se enfiar, tem que ser carudo, falar, se apresentar, mostrar o trabalho que você vai propor. Tem que insistir e ser chato mesmo”, argumenta.
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