De saída, duas questões:
Disclaimer, a aclamada minissérie da Apple TV, roteirizada e dirigida por
Alfonso Cuarón, e protagonizada por Cate Blanchett, Kevin Kline e Sacha Baron Cohen, é realmente muito boa e merece ser vista; mas, se você ainda não a assistiu e não quer ter spoilers, não leia este texto ou siga em frente por sua conta e risco.
Apesar da narrativa muito bem construída e envolvente e do elenco de primeira linha, há entretanto algo que me incomoda na maneira como a história articula um ótimo melodrama a lições morais contemporâneas.
Não obstante, antes de entrar no cerne do problema, acho importante definir o que é melodrama. No meu pedantismo acadêmico, fui muito bem alertado, dia desses, por uma prima querida, de que o sentido que dou à palavra “melodrama” é muito diferente daquele do senso comum. Para a maioria das pessoas, melodrama tem uma conotação negativa e designa narrativas pobres e emocionalmente apelativas. De outro lado, para quem trabalha com o ofício de construir histórias, o melodrama é, na maioria das vezes, apenas um gênero, sem que o uso do termo necessariamente expresse um julgamento de valor sobre a qualidade da história.
O melodrama é um gênero narrativo apropriado por vários meios - pela literatura, pelo teatro, pelo cinema, pela televisão - cujo surgimento está umbilicalmente ligado à modernidade, essa época e cultura em que vivemos, que, por sua vez, é fruto das revoluções industrial, científica e democráticas dos séculos XVII e XVIII.
Esses foram dois séculos que viraram a humanidade de cabeça para baixo. De um mundo regido por leis divinas que tornavam na Terra absolutos os poderes dos monarcas, passamos a outro, ordenado ao redor da razão que expressa uma natureza fixa e regida por leis compreensíveis e manipuláveis; do direito divino, adentramos uma ordem social também regulada em termos racionais e com base em direitos e deveres dos indivíduos.
É nesse contexto que surge o gênero, através de autores como o francês Pixérécourt e o inglês Thomas Holcroft. O melodrama tenta, de certa forma, reordenar esse mundo em ebulição, onde as balizas morais estavam desordenadas, identidades tinham perdido suas âncoras e o próprio sentido da vida se colocara profundamente em questão. Ele mistura drama emocional e temas morais, focando na ideia da virtude recompensada e na emoção sincera, sempre em busca de justiça moral e quase sempre dramatizando conflitos entre virtude e maldade.
Há grandes melodramas e melodramas ruins. Esse é um gênero muito potente exatamente por sua plasticidade, que permitiu, ao longo do tempo, sua apropriação por olhares e temas muito diferentes. No cinema, ele está presente desde a origem nos filmes seminais de
D. W. Griffith, como O Nascimento de uma Nação e Way Down East, nos melodramas clássicos de
Douglas Sirk, como Tudo o que o Céu Permite e Sublime Obsessão, mas também é uma das marcas dos olhares modernos de Almodóvar e Fassbinder, por exemplo, que renovam o gênero com ironia e personagens não convencionais.
Em Disclaimer, Catherine Ravenscroft, a personagem de Cate Blanchett, é uma mulher de sucesso cuja vida é colocada de cabeça para baixo com a publicação de um livro que ameaça revelar segredos do seu passado. Vinte anos antes, durante férias na Ligúria, Robert (Sacha Baron Cohen), seu marido, precisa partir antes e a deixa sozinha com Nicholas, o filho de 4 anos. Ela acaba vivendo uma noite tórrida de romance com Jonathan (Louis Partridge), um jovem viajante da Inglaterra como ela.
No dia seguinte, exausta após a noite de aventura, Catherine adormece na areia enquanto Nicholas brinca ao lado. Ao despertar, ela se dá conta da ausência do filho e, em pânico, constata que o menino entrara no mar e estava sendo arrastado, em seu bote inflável, pela correnteza. Jonathan é quem mergulha para resgatá-lo, entregando-o aos cuidados dos salva-vidas que haviam mergulhado logo seguida. Cansado, entretanto, e ainda lutando contra as ondas, ele acaba se afogando.
Nancy Bridgestock (Lesley Manville) é a mãe de Jonathan. Arrasados, ela e Stephen - Kevin Kline, brilhante - vão à Itália reconhecer o corpo do filho e recolher seus pertences. Entre eles, ela encontra e revela rolos de filme que contêm um conjunto de fotos sensuais de Catherine feitas durante a noite de romance. Com base nelas, Nancy escreve “The Perfect Stranger”, livro em que conta a história do envolvimento dos dois, retratando Catherine como uma mulher fria e manipuladora que, depois de seduzir seu filho, não se importara com sua morte.
Com seus personagens e situações geralmente estereotipados, o melodrama oferece uma leitura moral fácil do mundo, separando mal e bem, e recompensando a virtude moral numa trajetória que envolve a expiação do pecado. E aqui temos outro elemento muito comum no gênero, que são as personagens femininas retratadas de forma altamente ambivalente, ora como encarnação da virtude, ora como representação do pecado.
A personagem clássica do melodrama é, por exemplo, a Cary, interpretada por Jane Wyman, em
Tudo o que o Céu Permite, uma viúva rica que se apaixona pelo jardineiro interpretado por Rock Hudson. Em seu percurso, ela abre mão do amor em função das cobranças sociais ligadas à diferença de classe. No fim, o que parecia uma virtude - sua resignação àquilo que se espera socialmente de uma mulher -, revela-se um mal, e o que parecia errado - a diferença de idade e situação social -, mostra-se o bem. Nesse jogo entre valores transcendentes - o amor, a família, a comunidade - e imanentes - o desejo, a realização pessoal -, sua trajetória aponta para a progressiva separação entre bem e mal, entre o certo e o errado e para a recompensa da virtude.
Nessa estrutura, que reflete a própria ambivalência misógina da modernidade, o melodrama joga com o que delimita como as duas figuras femininas possíveis: a santa, que com frequência se desvirtua por ouvir o próprio desejo ou a voz do mal, e a pervertida, corroída pela frivolidade e pela inveja e que atua como uma força destrutiva, na vida dos homens, principalmente, mas também na de mulheres virtuosas.
Disclaimer, a princípio, lança mão dessa estrutura dupla de forma inteligente, usando-a para que o melodrama se ofereça como espelho exatamente da nossa ambivalência moral e da misoginia que preferimos não reconhecer.
E aqui vem o grande spoiler: em direção ao final da narrativa, ao preço da destruição moral e social de Catherine, descobrimos que a fantasiada noite de amor, cuja encenação nos seduzira e satisfizera, jamais acontecera. Tudo fora fruto da interpretação dada por Nancy às fotos sensuais e da imaginação coletiva que se encanta com a realização do desejo feminino apenas para vilipendiá-la em seguida.
Na verdade, Catherine fora estuprada por Jonathan, que a obrigara a fazer as fotos sensuais e de fato salvara, no dia seguinte, o menino do afogamento certo diante do sono da mãe depois de uma noite de terror.
O livro e o julgamento público de Catherine haviam sido fruto das mentes ressentidas e fantasiosas dos Brigstocke, tanto quanto da de Robert, de Nicholas e das nossas. Amamos e repudiamos o desejo feminino. Queremos gozar com ele tanto quanto suprimi-lo pelo que revela sobre nossa impotência. A Robert, o marido, angustiava não apenas a ideia de que sua mulher pudesse ter sentido prazer com outro homem, mas sobretudo não poder negar seu próprio gozo ao ver as fotos sensuais e imaginar os detalhes daquela noite.
É o que Catherine diz ao marido, no final da narrativa, depois que as mentiras do livro se revelam, afirmando que não pode perdoá-lo porque não consegue conceber que ele se sinta mais confortável com o fato de que ela houvesse sido violentada do que com a possibilidade de que tivesse tido uma aventura extraconjugal prazerosa.
Até aí tudo bem, mas, em seguida, Stephen também repreende um agora culpado Robert que lhe pergunta: “Por que você não duvidou do que estava escrito?”.
Ao que nosso vilão arrependido responde (na verdade, praticamente se dirigindo a nós):
“Por que você não duvidou?”
Esse fecho de lições morais claras se conclui ainda com uma cena em que uma Catherine agora divorciada abraça o filho Nicholas e ele diz que a ama. Sutura-se assim também a relação entre os dois, até então retratada como difícil e distante e sobre a qual sempre pairava a sombra de uma má maternidade.
O que incomoda é que a narrativa no fim pareça abrir mão daquilo que tomara como missão e retorne, de certa forma, ao lugar-comum do melodrama e ao moralismo barato. Até ali, como dito, Alfonso Cuarón usara a ambivalência do melodrama em relação à mulher para nos fazer enxergar nossa própria ambivalência misógina. As cenas de violência sexual incomodam não apenas pela sua crueza, mas porque não esquecemos que ainda há pouco nos deleitávamos com a encenação da realização do desejo feminino. Percebemos que, a despeito de todas as pistas deixadas, não flagráramos a mentira da versão de Nancy Brigstocke porque queríamos tanto nos deleitar com a Catherine aventurosa, quanto depois puni-la.
Todavia, como se não bastasse oferecer a leitura moral da história nas palavras de Stephen, ao recompor e reabilitar a figura da mãe virtuosa na derradeira cena, a série volta para a vala do melodrama moralista, oferecendo-nos novamente o conforto da santidade feminina. A nós, espectadores, é dado, por essa cena final, o perdão a que o marido não tivera direito. Como ele, sentíramos mais conforto em que a explicação de tudo fosse a violência, e não a realização do desejo de Catherine. Tudo se resolveu, entretanto, e Catherine foi redimida para podermos dormir tranquilos com a superioridade moral dos puros. A modernidade continua de pé.