Escrevo este texto em movimento, no celular, algo que já é um aprendizado desta viagem. Vou entre Bariloche e San Martin de Los Andes, nas províncias argentinas de Rio Negro e Neuquén.
Feche os olhos e imagine os lagos mais verdes suavemente ondulados pelo vento frio e constante que desce das montanhas nevadas que os emolduram. Pense na vegetação luxuriante dessa época do ano e imagine o degradê entre seu verde profundo, o ocre das encostas mais altas e finalmente o branco da neve. Pense nas flores cor de lavanda, nas cachoeiras despencando dos altos paredões, na estrada cheia de curvas pendurada na vertente íngreme. “Se o senhor sonhar, sonhe com aquilo”, dizia Riobaldo a seu interlocutor descrevendo as belezas de seu sertão.
Não há nada de novo em dizer que viajar é importante por nos tirar do conforto das nossas muitas casas: da casa física onde moramos, mas também da nossa cidade (ou zona rural), eventualmente de nosso país, mas sobretudo de nosso cotidiano, onde lidamos todo o tempo com relações já estabelecidas e conhecidas, com uma rotina previsível e que se desdobra quase sempre em modo automático.
Por isso, viajar, especialmente para lugares física e culturalmente distintos dos nossos, é sempre um exercício de amadurecimento, de bem vinda faxina interior, que mexe com cantos abandonados da alma e sequências adormecidas de nosso DNA.
A ideia de que somos seres largamente independentes de nosso contexto é um delírio da modernidade. A comida que comemos, o ar que respiramos, a água que bebemos, os ruídos que compõem nosso ambiente, e também o conjunto de nossas interações sociais, definem quem somos, em termos físicos, culturais e espirituais. O que é afinal a epidemia contemporânea de câncer se não o resultado da interação de nossa carga genética com certos estímulos ambientais? E o que é nosso DNA se não o resultado de eras de seleção por meio de pressões ambientais?
Viajar, nesse sentido, é apertar botões diferentes em nós mesmos que permanecem inativos ameaçando enferrujar.
No caso dessa viagem em específico, há primeiro a longa estrada - 4,500 km, 5 dias, 30 graus de latitude, do coração tropical do Brasil às pradarias e montanhas do extremo meridional da América do Sul. O deslocamento longo por carro é muito diferente de uma viagem por avião, mesmo que as distâncias cobertas pela aeronave possam ser muito maiores. Viajar de avião é subir o Pão de Açúcar de bondinho. A viagem de carro é escalá-lo.
Estabelece-se outra relação com o espaço e o tempo, e a aproximação do destino se estabelece em termos de continuidade, e não de brusca transição. É sair da planura de Goiás e do Triângulo Mineiro, com suas vastas lavouras e pastagens, para os canaviais do interior paulista; ganhar então o planalto paranaense, saindo do Cerrado para a Floresta Atlântica, e finalmente as matas de araucária à medida em que se corta Santa Catarina e adentra o Rio Grande do Sul. Na campanha gaúcha, aproximando-se o Rio Uruguai, retornam então as planícies suavemente onduladas e as pastagens.
Pela estrada, percebe-se também a mudança das pessoas, no seu modo de viver e no falar. O homem do cerrado é gentil e desconfiado em seus erres retroflexos do caipira brasileiro. O colono sulino tem um ar mais intrigado, que olha com curiosidade o estranho. No Paraná, o sotaque caipira se mistura àquele herdado do europeu. Quanto mais para o sul, mais aparentado ao espanhol o português.
Cruzar a região missioneira, no Rio Grande do Sul e nas províncias argentinas do outro lado do Rio Uruguai é também, ainda que de passagem, compreender a importância da colonização jesuíta na baixa bacia do Paraná e o quanto de uma história específica há aqui envolvendo os católicos, os guaranis, e os interesses das coroas portuguesa e espanhola.
Passar para o outro lado do Rio Uruguai e adentrar a Argentina é seguir na mesma paisagem da campanha, que mistura banhados a pastagens a perder de vista nessa região que é tão terra quanto a água do grande Rio Paraná, curso principal que a define e modela.
Cruzam-se as províncias de Corrientes e Entre Rios e finalmente o vasto Rio Paraná, ,aqui já quase Rio da Prata, para adentrar a província de Buenos Aires. Como na Amazônia, estamos centenas de quilômetros continente adentro, mas cargueiros gigantes sobem os rios caudalosos trazendo e levando mercadorias. Já percorremos milhares de quilômetros e, no entanto, não deixa de espantar que apenas três rios nos separem de casa: o Paraná, o Paranaíba e o Meia Ponte. Brinco com Felipe que cada cocô que ele faz vem parar aqui.
Passamos ao largo da Região Metropolitana de Buenos Aires. São dezenas de pequenas cidades de ar rural e pacato que se conectam à capital e a abastecem de produtos e pessoas.
Como é plano esse país do lado de cá dos Andes! À medida em que deixamos a bacia do Rio Paraná, o terreno vai se tornando árido e anuncia a entrada na província mais central do país: La Pampa. Aqui, fazemos a travessia da “Ruta del Desierto”, a Rodovia Provincial 20, com seus 250 km praticamente sem curvas - apenas uma imensa reta cortando a terra seca e varrida pelo vento. São pradarias ocre a perder de vista, como se estivéssemos no cenário do Meridiano de Sangue de Cormac Mccarthy. A qualquer momento, espero passarem o Kid e o Juiz sobre seus cavalos cansados.
Por fim, já na província de Neuquén, a terra semi-árida começa a se erguer em soluços. O terreno ainda árido se eleva, primeiro em serras muito dissecadas por eras de precipitações, depois em montanhas cada vez mais altas. Chegamos à província de Rio Negro e aos Andes, esse susto das rochas sul americanas ao se chocarem com as do fundo do Pacifico, há cerca de 60 milhões de anos, formando o espetáculo de cumes, gelo e magma.
A estrada nos dá portanto a oportunidade de ver essa vasta diferença que separa os Andes patagônicos e o Planalto Central brasileiro numa perspectiva de continuidade, e não de ruptura. Patagônia e Cerrado já não são espaços que se definem apenas por suas diferenças, mas sim partes distantes de um mesmo todo, no fundo moldado por uma mesma lógica, seja do ponto de vista da geologia, do relevo e da hidrografia, seja se pensarmos apenas no tempo muito curto da história humana.
Do ponto de vista dos contrastes, deslocar-se do Planalto Central brasileiro até a Patagônia é uma inversão geométrica em vários sentidos. A despeito de que a altitude base de várias das cidades seja semelhante à de Goiânia ou Brasília, em torno dos 800 metros acima do nível do mar, é uma passagem da horizontalidade à verticalidade que desafia nosso entendimento das escalas e das alturas. O horizonte se restringe na distância, mas ganha em variedade para o alto. Não estamos acostumados a estar tão embaixo ou tão no alto. Além disso, verticalmente, o ambiente muda muito mais rapidamente do que na horizontal, saindo da exuberância e relativa calidez dos bosques temperados à ausência de vida das geleiras das montanhas em questão de mil metros.
Nesse mundo vertical, muitas vezes o corpo hesita e se sente sem chão. Mesmo pisando a terra, abrem-se vastos vazios abaixo que o confundem. E os altos das montanhas têm um poder magnético, que atrai o olhar e o espírito. A montanha gera curiosidade por aquilo que esconde, pelo que não permite ver para além e estimula o desejo de chegar a seu topo só para olhar. Afinal, o que se contempla lá do alto?
Paramos em uma pequena praia lacustre de águas cristalinas castigadas pelo vento. Outros viajantes e campistas relaxam ao redor, tomam seu mate, contemplam. Um menino de traços indígenas sai da água gelada e corre sem camisa. Ninguém parece se importar com o frio.
Seguimos mais para o sul.