Queria não dizer o óbvio, que já não precisa ser dito, sobre os tempos que vivemos em que, mais que relativizar, tanta gente que nunca viveu uma ditadura exalta o regime militar brasileiro e apoia os arroubos autoritários do presente.
O filme me pegou, claro, pela sensação do horror do poder sem controle de um Estado autoritário. É absolutamente terrível que aqueles no poder se sintam à vontade para se impor sobre os que discordam ou sobre os mais fracos, como aconteceu entre 1964 e 1985 e como ocorre, não nos esqueçamos, todos os dias, nas periferias de qualquer grande cidade brasileira.
Mas eu queria falar sobre o filme de uma maneira mais pessoal, porque não gosto de proselitismo, especialmente de causas obviamente corretas, e sobretudo porque, no fim das contas, é por isso que o filme me impactou.
Me senti muito em casa naquela rua de Ipanema, com aquele pai afetuoso e liberal, com aquela mãe tão forte; por demais em casa com um pai que não era tão irresponsável a ponto de encarar de frente o regime, mas tampouco demasiado insensível para não se indignar e ajudar quem precisava.
Me senti em casa nos dias luminosos e longos de praia, dias de corpo cheio de areia e sal, dias intermináveis de sol e da vida entre a casa, a rua, o futebol e os amigos. Dias de sorvete na Praça Nossa Senhora da Paz, de pedalinho na Lagoa Rodrigo de Freitas, de cinema no Odeon.
Lembro das conversas dos homens no escritório regadas a uísque e de gostar de ouvi-las atento e admirado. Também me lembro de um pai afetuoso e generoso, um pouco ausente, mas sempre muito presente quando estava em casa; de um pai que tinha dificuldade em nos dizer não e de uma mãe que sempre assumia a conta de nos impor limites.
A cena mais brutal de Ainda Estou Aqui é aquela em que Rubens Paiva coloca a gravata e se despede da filha fingindo tranquilidade. Sabemos que é a última vez que pai e filha interagem. Ela não sabe e ele quer acreditar que não será e mantém a calma para protegê-la.
Tenho certeza que meu pai teria feito a mesma coisa, que meu pai poderia ter sido obrigado a fazer exatamente o mesmo, se as coisas tivessem sido apenas um pouco diferentes. Ele já não está aqui para que eu lhe pergunte como viveu o desaparecimento de Rubens Paiva, mas sei que foram dias de angústia também porque sabia que o mesmo poderia acontecer na sua casa.
E sei que, se a infelicidade tivesse se abatido sobre nós, como ocorreu com os Paiva, que minha mãe teria agido exatamente da mesma maneira que Eunice.
Penso nos meus filhos e nos tempos que vivemos, no quanto passamos perto de um golpe entre a eleição de Lula e o 8 de janeiro, e me pergunto se eu estaria à mesma altura. Penso no dilema real e cruel vivido por tantos entre fechar os olhos e proteger os seus ou mantê-los abertos e assumir os riscos. Não há como julgar ninguém por se eximir ou por lavar as mãos, mas há como julgar os que exerceram e exercem o arbítrio.
Aquela casa em Ipanema poderia ter sido a minha em Santa Teresa ou no Jardim Botânico. Aquele pai legal de bigode poderia, muito facilmente, ter sido o meu de barba.
Quando a sombra escura se projeta sobre a alegria e a inocência de crianças, não há relativização aceitável. Em nenhum lugar ou tempo, nem à direita, nem à esquerda.
Nada, exceto o desprezo, pela “Brigada do Mas”, como diria Salman Rushdie.