Em 12 de fevereiro de 2005 era fundada, em Goiânia, a Academia Espírita de Letras do Estado de Goiás. A primeira do gênero no Brasil, a academia foi concebida e fundada pelo idealismo do jurista e escritor Dr. Emídio Silva Falcão Brasileiro, numa iniciativa que buscava congregar os autores goianos ligados ao espiritismo fundado na França em 1857. Concebida nos moldes clássicos, a Academia Espírita de Letras trazia por seus membros fundadores a figura de importantes personalidades da doutrina kardecista como patronos e patronesses de cada uma das cadeiras.
O título de patrono da cadeira número 1, cuja titularidade pertence a seu fundador, coube a Allan Kardec, que no último dia 3 de outubro teve assinalados os 221 anos de seu nascimento, sob o nome civil de Hippolyte León Denizard Rivail. Poliglota e polímata, a trajetória desse intelectual europeu estava destinada a entrar para a história das ideias como a do fundador de uma filosofia da religião por ele denominada de espiritismo, que se configurava como uma área específica do espiritualismo, conforme ele registra no frontispício de sua obra seminal intitulada “O Livro dos Espíritos”.
Possuidor de uma extraordinária argúcia intelectual, Kardec registrou em seus escritos múltiplos que o espiritismo poderia vir a tornar-se uma religião por conta da perseguição do sacerdócio católico, o que se revelou uma previsão intelectiva excepcional, pois no Brasil a sua doutrina foi perseguida fortemente pela Igreja Católica, tornando-se por fim uma expressão de religiosidade bastante singular no contexto da cultura brasileira em seu amplo conjunto.
Denizard Rivail viveu num período peculiar da história dos fenômenos psíquicos e/ou mediúnicos. Em historiadores e obras fundamentais da cultura europeia, como Jacques LeGoff e seu antológico “O Nascimento do Purgatório”, os fenômenos espirituais de aparições de fantasmas e espectros são emiuçados em sua ocorrência histórica no medievo europeu. No contexto do que apresenta LeGoff, o século 19 parece representar a culminância de toda essa fenomênica registrada pelo célebre historiador nos séculos anteriores, conforme se encontra registrado em sua obra sobre a gênese do purgatório.
Os antropólogos franceses, Marión Aubree e François Laplantine, registram a historicidade desses fenômenos no Oitocentismo ocidental em seu livro de pesquisa acadêmica “A mesa, o livro e os espíritos. Gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil”, que encontra abordagem semelhante no trabalho da historiadora brasileira Mary Del Pryore, conforme está registrado em sua obra “Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do Espiritismo”.
Aubrèe e Laplantine assinalam o encontro de Denizard Rivail com os fenômenos espirituais e seu engajamento sob uma perspectiva do etos científico de seu tempo com a finalidade de compreendê-los e deles retirar todo um mundo de consequências que redundariam na fundação do espiritismo. Do conjunto de seus extensos escritos, Allan Kardec deixa registrado que a mediunidade é um novo instrumento de verificação de importantes aspectos da existência.
De maneira análoga, ela funcionaria como o microscópio para o biólogo e o químico, assim como um telescópio para o astrofísico. O seu manejo poderia obedecer ao método científico de pesquisa experimental. E foi dessa forma que ele procedeu, submetendo uma gama substancial de questionamentos aos seres espirituais através de um número variado de médiuns, comparando respostas e instaurando o consenso, o que seria uma prática adotada posteriormente pelo saber científico institucionalizado.
A obra fundante do espiritismo, “O Livro dos Espíritos”, é constituído por pouco mais de mil perguntas, distribuídas e tabuladas pelos mais diversos ramos do saber da humanidade. Logo no início desse trabalho que inaugura o espiritismo oficialmente na história das ideias, Kardec faz um questionamento cuja resposta foi recebida pela mediunidade de sensitivas bastante jovens, conforme os apontamentos históricos informam.
O conceito por elas captado guarda uma instigante correspondência com um dos problemas fundamentais da física, da astrofísica e da cosmologia contemporâneas. Na questão 36, o leitor encontrará o seguinte diálogo, que registramos em itálico; a resposta dos seres espirituais está entre aspas: 36. O vácuo absoluto existe em alguma parte no espaço universal? “Não, não há o vácuo. O que te parece vazio está ocupado por matéria que te escapa aos sentidos e aos instrumentos.”
Entre os anos 30 e 70 do século passado, a cosmologia estabeleceu um involuntário diálogo, provavelmente por ela ignorado, com essa questão da obra kardequiana. Em 1930, o astrônomo suíço Fritz Zwicky propôs o conceito de matéria escura ao estudar o movimento de gigantescas galáxias e observar que havia grande discrepância entre a coesão que elas mantinham e a massa de matéria disponível para que isto ocorresse em nível gravitacional.
Os cálculos matemáticos sugeriam que havia uma abundância de matéria não detectável, pois não emitia, não absorvia e nem refletia luz alguma. Mas gravitacionalmente estavam presentes. Em 1970, a astrônoma Vera Rubin confirmou as evidências apresentadas por Zwicky ao estudar curvas de rotação de galáxias espirais. O movimento das estrelas das bordas dessas galáxias era igual ao movimento das estrelas do centro, o que seria possível apenas se houvesse um alo de matéria invisível presente. Atualmente, e neste contexto, a ciência especula a existência até de planetas e estrelas formados de matéria escura.
No âmbito das complexidades culturais e da história das ideias, não deixa de ser notável a semelhança conceitual entre o que foi obtido pelas jovens médiuns com que Allan Kardec trabalhou em suas pesquisas e o que a ciência contemporânea traz no contexto da cosmologia, apresentando tanto a matéria quanto a energia escura como dois dos mais instigantes mistérios da física dos dias atuais. É notável que as médiuns de Kardec tenham antecedido um dado literalmente universal e importante para a ciência em cerca de 80 anos.
*GISMAIR MARTINS TEIXEIRA é Doutor em Letras, com Pós-Doutorado em Ciências da Religião.