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Luciano Alberto de Castro

Os mercadores do Parque Vaca Brava

| 25.10.24 - 09:53
Mercadejar é próprio do homem. No princípio, era o escambo: trocava-se uma ovelha por 3 sacos de trigo, um cesto de pães por 5 ou 6 peixes. Quando o dinheiro, também conhecido como Mamon, entrou na jogada, o negócio se expandiu e a humanidade passou a gravitar — e gravita até hoje — em torno dessa divindade. Assim, onde dois ou três estiverem reunidos, lá estará Mamon no meio deles, ditando as regras de convivência.
 
O parque Vaca Brava onde caminho e corro atrás da boa forma perdida é um microcosmo de pessoas imersas em ocupações múltiplas. Há os meus confrades andadores e corredores, há os praticantes do treino funcional, os da academia ao ar livre e a turma da calistenia. Há mamães, vovós e babás a vigiar suas crianças praticantes da liberdade. Há os que se dedicam ao meticuloso exercício do sedentarismo — solitário ou compartilhado — mexendo no celular ou conversando sobre política, futebol e outros temas apetecíveis. Por último, e aqui o mais importante, há um grupo curioso e vário: os mercadores.  
 
Ali se vende quase tudo: água mineral, água de coco, o próprio coco, caldo de cana, crepe, tapioca, sanduíche, pipoca, sorvete, picolé, biscoito, cocada, paçoca. O comércio desses gêneros molhados e secos é praticado pelos vendedores fixos, instalados em barracas e quiosques à volta do parque. Nos feriados e fins de semana, costumam aparecer os ambulantes pra vender artesanato. Há dois tipos de mercadores que merecem atenção especial, ambos pelo modus operandi pró-ativo e o segundo pelo produto que comercializa.    
 
Vamos aos primeiros: os vendedores de apartamento. Esses trabalham em equipe de 2 ou 3 e apresentam-se muito bem vestidos: os homens de terno, as mulheres de tailleur (usualmente preto). Chegam por volta das 5 da tarde e montam sua estrutura: um banner do empreendimento e a banca, onde dispõem os prospectos e os brindes. 
 
A estratégia que adotam é semelhante à que minha vó usava para agarrar uma galinha pro almoço. Ela jogava o milho, as penosas se aproximavam impelidas pela fome ou pela gula e, em pouco tempo, zás! Lá se ia uma desafortunada pra degola e depois pra panela. Aqui, o milho é o brinde e a galinha, o caminhante. Com um sorriso faceiro, a moça o interpela: aceita um copo d’água, um sorvete? Impelido pela sede ou pelos atributos femininos, o sujeito para. Enquanto saboreia o engodo, outra beldade vem pela retaguarda e lhe pede nome, telefone e e-mail. Pronto: foi fisgado. Nas próximas semanas, o homem-galináceo será bombardeado por ligações e mensagens com propostas imperdíveis. 
 
Por fim, chegamos à categoria mais peculiar entre os mercadores do parque: os neopentecostais. A exemplo de seus colegas do ramo imobiliário, eles também atuam em equipes treinadas e também cevam seus clientes. Só que, ao invés de brindes físicos, oferecem algo bem mais sublime: a oração, o alimento espiritual. 
 
A tática é a seguinte: munidos do livro sagrado, eles se posicionam em pontos estratégicos e põem-se a observar os passantes. Algum que lhes pareça mais suscetível se torna o alvo para o qual partem como elemento surpresa: “Posso orar por você, varão!?” O camarada, que já vinha meio aéreo e cheio de problemas, aceita complacente a oferta. Nesse momento, o vendedor de bençãos impõe a mão sobre a cabeça do pecador e profere palavras proféticas em nome do Deus de Abraão, de Isaque e Jacó. Daí a alguns dias, estará o convertido frequentando o culto, onde — a troco de uma módica contribuição pecuniária — receberá blindagem contra todos os males deste mundo. Aleluia, irmão!
 
O parque representa o mundo, vasto mundo, onde o maranhense Raimundo vende um coco por 9 reais, e o corretor, um apartamento por um milhão. A verdade é que, grandes ou pequenos, todos nós somos mercadores e estamos sempre vendendo alguma coisa: um produto, um serviço, uma informação. 
 
Assim como errar, mercadejar é humano. O que não concordo é que nas relações comerciais — pelo fato de serem comerciais — seja permissível enganar, corromper, mentir. Ser honesto não é ser bobo, é ser justo. Além da justiça, sempre que pudermos quebrar essa lógica do “toma lá, dá cá” e praticar simplesmente o “toma, é seu, é um presente” estaremos nos afastando de Mamon e nos aproximando d’Ele.

*Luciano Alberto de Castro é escritor

Comentários

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  • 06.11.2024 17:21 Eveni Alves Dias

    Excelente texto, mesclado de humor e sensibilidade típicos desse jovem escritor. Luciano escreve com leveza e transmite o recado com rara inteligência.

  • 28.10.2024 11:14 WAGNER INÁCIO FERREIRA

    Excelente crônica com grande visão da realidade e demonstrando a realidade dos dias de hoje, até a fé se tornou mercadológica e "todos" vão à luta para fisgar seu "peixe"...

  • 28.10.2024 05:24 Carlos Castro

    Luciano Que bela crônica. Se o parque representa o mundo, o cronista também faz parte dele. Aquela parte pequena e poderosa que registra com sensibilidade cada ser diferente de si mesmo.

  • 25.10.2024 12:12 Chumbada

    Somente agora, depois de ler essa bela crônica do cotidiano, pude compreender o nome daquela banda de música de passagem efêmera e fim trágico: Mamonas Assassinas.

  • 25.10.2024 11:57 Iago Bernardes

    Que Mamon esteja convosco. "Ele está no meio de nós". Gostei da imagem do homem-galináceo sendo atraído pra degola (ri bastante).

  • 25.10.2024 11:45 Jaime

    Assim, onde dois ou três estiverem reunidos, lá estará Mamon no meio deles, ditando as regras de convivência. Che bella frase! Lapidario. Obrigado, Luciano.

  • 25.10.2024 10:52 Alessah Fernandes

    É aquela velha história: não existe almoço grátis! kk Leitura muito boa!

  • 25.10.2024 10:36 Joao Gabriel

    O parque é um ponto comercial de alto fluxo. É muito legal e curioso como naturalmente desperta o interesse de vendedores da mais diversas vertentes, todos impelidos pelo sucesso mercadológico. Muito bacana a crônica!! ????????????

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