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Yuri Baiocchi

Meia-entrevista com o mestre ou a última conversa com um amigo

| 03.11.24 - 10:01 Meia-entrevista com o mestre ou a última conversa com um amigo Elder Rocha Lima pintando (Foto: divulgação)
(Entrevista concedida durante aproximadamente 5 horas, no dia 31 de agosto de 2024, na residência de  Maria das Graças Fleury Curado e Elder Rocha Lima, no alto do Morro Padre Arnaldo, na Cidade de Goiás. O entrevistado viria a falecer no dia 25 de outubro de 2024, antes da presente publicação). 
 
Ainda em julho, após saber que Elder Rocha Lima havia sido diagnosticado com um câncer de próstata, estando eu há um ano no Rio, programei uma ida a Goiás para entrevistá-lo no intuito de que me fizesse uma retrospectiva de sua vida. Mesmo que não fosse uma doença agressiva e não apresentasse maiores riscos, senti que seria um desperdício cada dia em que deixasse de entrevistar o meu lúcido interlocutor de 96 anos.
 
Pioneiro da Arquitetura em Goiás, muito antes disso Elder se descobrira artista. Autor de projetos importantes na dinâmica contemporânea da nossa capital, era também testemunha íntima de fatos históricos. Neto de um senador e ex-presidente derrubado pela Revolução de 1909, era ainda parente próximo de figuras proeminentes da política goiana até meados do século passado. E também da literatura, como Bernardo Élis, de quem cuja avó materna a avó paterna de Elder era irmã.  
 
Viu processos políticos por dentro. Mais tarde, já com uma consciência social extraordinária, tomou parte ele mesmo na confecção da história. Professor fundador do curso de Arquitetura da atual PUC Goiás, foi também cassado de sua vocação pela ditadura militar. Mais do que isso, sofrera uma tentativa de homicídio por atropelamento. O autor foi um conhecido agente da repressão em Goiás e dedo-duro de professores que, malgrado suas práticas fascistas, galgou importantes cargos políticos. 
 
Décadas depois veio a ser merecidamente anistiado e também condecorado como Doutor Honoris Causa da PUC Goiás, em 2011. Conheci-o logo após, em 2014, juntamente com sua primeira mulher, Beatriz, em Pirenópolis. Fui reencontrá-lo dentro em pouco tempo, já viúvo e enamorado da também viúva Graça Fleury, minha amiga. Por essa época, tremendamente apaixonado, ameaçava um seu primo de primeiro grau que ousava dividir a mesma paixão e pedi-la em namoro primeiro. Elder ganhou a Graça e subiu o Morro Padre Arnaldo para morar com ela. De lá, teve a melhor vista da Cidade de Goiás. Ganhou depois um ateliê logo ao lado, mil projetos e boas brigas, principalmente pela causa ambiental. Rejuvenesceu a olhos vistos.  
 
Com uma bengala e um pincel, participou de manifestações à beira do rio Vermelho. Ainda este ano, subscreveu abaixo-assinado contra o Conselho Estadual de Cultura, que covardemente rejeitou a inscrição naquele prazo, sem maiores explicações, da instituição que ele presidia. Não se calou. Fez sua reclamação chegar ao governador Ronaldo Caiado que, mesmo ideologicamente antagônico, respeitava o currículo do artista e cobrou explicações.  
 
Há algumas semanas lá estava ele, durante as tardes, interessado pela pesquisa de seu colega Bruno Corrêa Lima sobre Veiga Valle, arquivada na Fundação Frei Simão juntamente com o único exemplar do álbum de mesma autoria. O filho de Attilio Corrêa Lima e professor aposentado da FAU-UFRJ fora seu colega de faculdade. 
 
Passou os primeiros oito anos de vida em Goiás, sua cidade natal. Voltou para passar os últimos oito anos. Mas viverá mais do que isso. O calendário cultural da cidade em 2024, promovido pelo Instituto Biapó e pelo Museu Casa de Cora Coralina, foi ilustrado por ele. Logo, ele estará conosco até dezembro. Mas em 2025 já havia projetos programados com o Px Silveira, então teremos Elder de novo. E também no tricentenário da cidade de Goiás. 
 
Elder parte com quase 100 anos. É um terço da história da cidade. É uma parte inteira de Graça. Um bocado do azul da Serra Dourada quando a tarde quase apaga. Um pilar da arquitetura do sorriso dos amigos. Uma janela para um lugar melhor, sempre melhor.  
 
Dele, particularmente, guardo as demonstrações de amizade: como quando saiu de Goiás e foi para Goiânia a fim de defender meu nome, obstruído por uma comissão de degola numa instituição cultural; ou quando, alertado por mim, viu a importância da necessidade de participação da sociedade civil nos lugares de direito; ou ainda as risadas e incentivos dele em direção aos meus atos de subversão. E, por último, quando já fragilizado e a pouco mais de um mês da data em que morreria, entre disputas de internações na UTI com o amigo Amaury Menezes, topou dar uma entrevista de 4 horas a este seu discípulo que lhe prometeu voltar no dia seguinte a fim de concluir o trabalho, mas que vendo o seu estado de saúde preferiu dar o bolo.
  
Trata-se, portanto, de uma meia-entrevista. Tem valor simbólico, no entanto. Pois é também a sua última entrevista. A última conversa longa de Elder Rocha Lima sobre sua trajetória, com dados pouco conhecidos de sua história familiar, de sua formação pessoal. 
 
Acrescento, ao final, um texto do próprio Elder com mais dados de sua biografia. Este foi redigido por ocasião da entrega do título da PUC Goiás, o que pode vir a completar alguma lacuna deixada pela minha desobediência ao convite do dia seguinte. 
 
Vai, Elder, fazer maquete com as nuvens! Ser subversivo no céu não dói e ser ateu é coisa à toa.
 
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Elder: Bom, eu vou te contar essa história. O meu primeiro contato com uma obra de arte foi quando eu estava brincando no Largo do Moreira, provavelmente com familiares do Octo Marques que, aliás, eram filhos adotivos, pois ele nunca teve filhos. Eu entrei na casa dele e vi um aparador na sala com um ovo de ema pintado com uma paisagem de Goiás. Fiquei deslumbrado com aquilo. Eu devia ter uns 5 anos, 4 anos, por aí.
 
Yuri: Então foi um ovo de ema que te chocou, não, Elder? Nos dois sentidos... 
 
Elder: Me chocou, chocou na minha mente. Foi um negócio muito interessante, porque foi aí a primeira vez que eu me defrontei com uma obra de arte e aquilo me deslumbrou. Então eu contei isso para o Px e ele fez um artigo para um catálogo de exposição, inclusive ele arranjou um título muito inteligente: “o artista que saiu do ovo”. Daí para adiante a coisa começou... 
 
Yuri: A arte no ovo de ema era do próprio Octo? 
 
Elder: Do próprio Octo. 
 
Yuri: E você teve contato próximo com ele na infância? 
 
Elder: Não, eu apenas o conhecia. 
 
Yuri: A influência dele sobre você foi indireta? 
 
Elder: Foi indireta. 
 
Yuri: Ele soube? 
 
Elder: Não, ele nunca soube disso. 
 
Yuri: Mais tarde você chegou a revê-lo? Digo, quando você já era um pintor? 
 
Elder: Uma vez, em Goiânia, o Bernardo Élis me apresentou a ele. Só isso: “muito prazer e tal”... Nunca contei essa história para ele porque na época eu nem me lembrava disso, mas foi nessa brincadeira na casa dele que eu comecei a ser artista, de modo que quando fui pro Rio para estudar Arquitetura eu já tinha uma experiência bem grande com desenho. 
 
Yuri: E essa experiência foi autodidata? 
 
Elder: Totalmente autodidata. 
 
Yuri: Você já morava em Goiânia quando foi para o Rio, não? 
 
Elder: Sim, eu fui de Goiânia pro Rio. 
 
Yuri: E em Goiânia você teve contato com algum arquiteto antes de ir pro Rio e escolher pela Arquitetura? O que o motivou? 
 
Elder: Não sei, eu não tive contato com nenhum arquiteto. Entrei na Arquitetura e tive contato com um professor de Desenhos Figurados, que era como se chamava a disciplina. Esse professor era o Ubi Bava, sei que você o conhece e tem obras dele. Eu convivi muito com ele, durante todo o ano em que eu cursei aquela disciplina. Era uma turma de 70 alunos, então o Ubi mal passava próximo a mim 
para alguma correção, olhava sempre rapidamente porque eu já dominava o desenho. 
 
Yuri: Você foi o único goiano da turma? 
 
Elder: Sim, eu era o único naquela época e eram 70 alunos.
 
Yuri: Você entrou para a Arquitetura em qual ano?
 
Elder: Em 1951. 
 
Yuri: Já se falava bastante em Brasília, não? 
 
Elder: Sim, quando eu me formei Brasília já estava em obras há um tempo. Teve um concurso que eu participei e, dos vários projetos, inegavelmente o do Lúcio Costa era o melhor projeto. Ele fez um relatório onde ele desenhava a mão o projeto de Brasília, nem prancheta ele usou. 
 
Yuri: Eu li essa mesma história numa sua entrevista para o professor Domingos Félix de Sousa, em 1957, para o Jornal Oió. Nessa entrevista você elogiava o Lúcio Costa, você se recorda disso? 
 
Elder: Sim, perfeitamente. O dr. Lúcio era para nós, estudantes de Arquitetura interessados – porque na realidade você tem no máximo quatro numa turma que verdadeiramente se interessam – um deus. 
 
Yuri: Ele era professor na faculdade? 
 
Elder: Não, mas ele escrevia muito. Era referência.
 
Yuri: Você teve contato direto com ele? 
 
Elder: Não. Tive com a filha dele, Maria Elisa, mas era uma chata. É arquiteta também e foi presidente do Iphan. A chatice que eu digo está em repetir: “não papai disse isso” e acabou... 
 
Yuri: Você foi para o Rio em que ano? Qual a sua idade na época? 
 
Elder: Eu fui para o Rio em 1949, aos 21 anos. Fui para fazer vestibular e reprovei. 
 
Fui reprovado num ano e no outro ano passei em segundo lugar, muito bem. 
 
Yuri: Você estudou sozinho para o vestibular? 
 
Elder: Não, eu frequentei um cursinho. Naquela época já existiam os cursinhos de pré-vestibular. 
 
Yuri: Você já saiu de Goiânia com a intenção de cursar Arquitetura? 
 
Elder: Não, na realidade eu queria Artes. Mas eu tinha medo da minha família refugar, então eu pensei em fazer uma coisa parecida e aí fui estudar Arquitetura. E eu me deleitei com o curso. Apesar de alguns professores horríveis, tinha uns dois ou três, no máximo, excelentes.
 
Yuri: O Ubi Bava era um deles? 
 
Elder: Não, porque o Ubi era muito indiferente. Ele só gostava de mulher. Eu brinco que era a única coisa que ele gostava na vida dele.
 
Yuri: Voltando a Goiânia, eu li e escutei relatos de pessoas que ao se mudarem para Goiânia, já na década de 1940 e até no início da década de 1950, tiveram dificuldades em encontrar casas para morar. Mesmo políticos e magistrados recém-nomeados não encontravam casas. Nem casas de aluguel. Construía-se, então, a toque de caixa e sem um projeto. Nos anos 1930 houve até casas de madeira, construídas como algo provisório. E não havia abundância de arquitetos, tanto é que você mencionou que não conhecia nenhum. O próprio professor Jorge Félix de Sousa, autor dos projetos de inúmeros edifícios datados do início da cidade, era engenheiro. Já o José Amaral Neddermeyer, que veio depois e cujos projetos você já me contou ser admirador, era formado em Arquitetura pela Mackenzie. Nota-se que existia uma falta de mão-de-obra especializada. Logo, quando você se forma em Arquitetura e volta do Rio, em 1955, como estava o mercado? 
 
Elder: Iniciando.

Yuri: E as pessoas davam preferência para a contratação de arquitetos?
 
Elder: Não, tanto é que eu fui nomeado arquiteto de uma secretaria pública para poder sobreviver.
 
Yuri: Não havia procura?

Elder: Não.

Yuri: Contratar arquiteto para a construção de uma casa era considerado luxo?
 
Elder: Não só isso, mas também havia um desconhecimento da profissão. Havia muitos desenhistas que faziam projetos e cobravam barato. Um bom projeto é o da casa de Belkiss e dr. Simão, que deve ter sido encomendado de fora.
 
Yuri: O que te chamava a atenção, em matéria de Arquitetura, durante a sua infância na Cidade de Goiás? A pergunta se dá porque noto que a sua concepção de Arquitetura passa por um caminho bem diferente da que vigora na paisagem do lugar em que você nasceu.
 
Elder: Engraçado, hoje mesmo pensei nisso. Uma das coisas que me encabulavam aqui em Goiás é que o clima é muito quente e as casas são mais frescas. Isso se dá por causa da ventilação cruzada. A Cora escreveu sobre isso. Eu fui fazer uma pesquisa aqui na Fundação Frei Simão e encontrei um artigo da Cora falando sobre isso. Fiquei feliz da vida porque antes eu pensava que estava inovando ao escrever sobre o assunto em Goiás. Mas essa percepção sobre isolamento térmico veio depois de adulto, quando criança meu contato foi com o art déco e depois com o auge do modernismo.

Yuri: Eu conheço seus projetos arquitetônicos e posso afirmar que não têm nada a ver com o lugar do qual você veio. Em contrapartida, na sua pintura há uma evocação constante a Goiás.
 
Elder: Isso é interessante. Olha, eu não sei lá... Eu sempre senti muito apego a esta cidade. Muito apego. Tanto que eu já era formado, mas eu nunca deixava de vir aqui. Já estava casado e tudo mais...
 
Yuri: E esse apego veio de família ou é seu?
 
Elder: Meu. Minha mãe não gostava daqui. Aliás, minha mãe detestava Goiás. É que minha mãe sofreu muito aqui em Goiás.
 
Yuri: Quando da mudança da capital, você tinha quantos anos?

Elder: Uns sete ou oito anos.
 
Yuri: Você se mudou junto com a capital ou não?

Elder: Eu me mudei junto. Com toda a minha família.

Yuri: Qual foi o motivo?

Elder: Meu pai era diretor do Liceu e foi obrigado a ir. Havia uma série de vantagens para quem fosse.
 
Yuri: O seu pai tinha formação superior?
 
Elder: Tinha, era agrônomo. E sabia desenhar. A própria casa dele, que ainda existe, ele mesmo a projetou.
 
Yuri: Onde é essa casa?
 
Elder: Ali no alto do Largo do Moreira. Lá do Moreira, você sobe aquela rua, vai dar lá no Bombeiro, no SAMU, é logo depois. É uma escolinha hoje.
 
Yuri: A casa que depois foi de Abílio Lobo?

Elder: Uhum.

Yuri: Você nasceu naquela casa?
 
Elder: Não. Minha mãe me disse que eu nasci numa casa da Rua das Flores e que portanto eu era uma flor.
 
Yuri: Onde é a Rua das Flores?

Elder: Não sei.
Maria das Graças: A Rua das Flores é ali perto do mosteiro. Mais para cá.
 
Yuri: Eu perguntei a localização dessa rua porque eu vi algumas referências a ela nos documentos do arquivo do Museu das Bandeiras. No entanto, nem a Milena nem o Antônio Caldas souberam me dizer onde é a Rua das Flores e estou até hoje querendo saber.
 
Maria das Graças: Ah, peraí, o Gustavo Neiva vai saber. Eu acho que é lá mesmo onde eu tô pensando, mas eu não tenho certeza.

Elder: A casa mais antiga de Goiás, uma das mais antigas, aliás, é a casa que é hoje do Gustavo Neiva. É na beira do rio Vermelho.
 
Yuri: Sim, ela aparece no bico de pena do Burchell.

Elder: É, exatamente.

Yuri: Essa história do seu pai, agrônomo e projetista de casa…
 
Elder: Ah! Mas é porque naquela época os agrônomos eram obrigados a aprender a fazer projetos para as fazendas. Eles tinham a exigência de fazer projetos. Então ele aprendeu a projetar. Sabia projetar. Claro que eram só casas de um pavimento. Normalmente, para as fazendas.
 
Yuri: Então você tinha um pé na Arquitetura. Não havia um artista na família, mas sim um pai projetista. E é interessante porque eu me lembrei agora do Manuel Bandeira. Sabe de quais versos?
 
Elder: De quais?
 
Yuri: “Criou-me, desde eu menino./ Para arquiteto meu pai./ Foi-se-me um dia a saúde…/ Fiz-me arquiteto? Não pude!/ Sou poeta menor, perdoai!”. Se trocarmos poeta por pintor, o poema é seu.
 
Elder: Não é menor coisa nenhuma, prova disso que o Drummond o chamava de Manuel Bandeira do Brasil.
 
Maria das Graças: Ai, que lindo. Eu amo o Manuel. Não foi o Guilherme de Almeida que o chamou assim?
 
Elder: Agora já não sei, também fiquei na dúvida.
 
Yuri: O Bandeira chegou a cursar Arquitetura, vocês sabiam? Ele não concluiu, pois saiu do curso para se tratar da tuberculose.
 
Elder: Não sabia. Nunca tinha ouvido isso.
 
Yuri: Já falamos sobre seu pai, mas e a sua mãe? Como participou da sua formação?
 
Elder: Não, a minha mãe não teve participação na minha formação. Yuri: Como era a sua mãe?

Elder: Brava. Bonita, muito bonita. E brava. Yuri: O que mais?
Maria das Graças: Dominadora, porque queria que Elder se casasse com a pessoa que ela escolheu. Mas você falou: “ô, mãe!”.
 
Yuri: Quem era essa preferida?
 
Elder: Eu já não me lembro do nome dessa moça. Quando eu retornei, já formado, para Goiânia, meus pais moravam em um hotel.
 
Yuri: Qual hotel? Bandeirante?
 
Elder: Não tenho mais a menor ideia do nome. Era um hotelzinho vagabundo no centro.
 
Yuri: Marmo Hotel?
 
Elder: Não, o Marmo eu conheci bem. Não foi. Aliás, pode até ser sim. Acontece que, quando eu cheguei de volta, a minha mãe me disse: “ó, eu já arrumei, esta é a sua noiva, é bonita, rica e uma pessoa excelente.” Eu respondi: “mãe, não dá, eu deixei um step lá no Rio”. Eu já estava noivo da Beatriz. Aí minha mãe me disse: “ih, você não tem jeito, sempre desobediente!”.
 
Yuri: Isso é curioso porque quando não existia curso superior nenhum em Goiás, e os goianos ricos saíam para estudar em São Paulo ou no Rio, normalmente já saíam daqui noivos. Mas lá se casavam com outra pessoa. Isso gerou uma falta dos chamados “bons partidos” aqui em Goiás. Então as moças foram até o dr. José Xavier de Almeida exigir a criação dos cursos jurídicos em Goiás, porque os moços estavam se debandando daqui.
 
Elder: É, as moças não tinham com quem se casar. Então, a Faculdade de Direito é uma criação das mulheres. Eu me lembro de ouvir falar do Clube das Moças. O prédio do Clube das Moças está aí até hoje.
 
Yuri: Qual é o prédio?
 
Elder: É numa rua que conflui com o Largo do Chafariz. Hoje está fechado, mas é um bom projeto. É um projeto bem inteligente. As moças então faziam as festas lá para poderem se socializar com os rapazes.
 
Yuri: A sua mãe estudou?

Elder: Minha mãe fez o Curso Normal, que era o que havia.

Yuri: Onde ela estudou?

Elder: No Colégio Santana.

Yuri: Quem eram os pais dela?

Elder: O meu avô materno chamava-se Firmo Antônio de Paula. E minha avó era Anna de Souza Marques. Ela era filha do padre Pio, que morava na ponte da Cambaúba, naquela casa que foi do Bartolomeu Bueno. Melhor dizendo, para achar referência melhor, a que é hoje do Leonardo Lacerda. Meu avô Paula é quem vim a descobrir, por meio do Antônio, que tinha parentesco com o padre Arnaldo, que foi o primeiro dono aqui da chácara da Graça e também dá nome ao morro.
 
Yuri: Você conheceu o seu avô, o pai da sua mãe?

Elder: Não.

Yuri: Sabe o que ele fazia?
 
Elder: Ele era funcionário público. Era amanuense. Mamãe tinha ódio dos Caiados pelo que fizeram com o meu avô. O Totó Caiado o demitiu porque achou que meu avô não tinha votado nele. A família passou fome por isso. As recordações da minha mãe de Goiás não são muito boas não. Por isso ela não gostava daqui.
 
Yuri: E a sua avó?
 
Elder: Também não cheguei a conhecer.

Yuri: E sua mãe teve muitos irmãos?

Elder: Isso que eu até hoje não sei.

Yuri: É mesmo?

Elder: É. Porque parece que meu avô tinha tido um caso com uma pessoa e teve um filho. Eu nunca o conheci. Depois, meu avô se casou com a minha avó e não teve mais filhos naturais.
 
Yuri: A sua tia, irmã de sua mãe, foi casada com o general Marco Antônio Félix de Sousa, não?

Elder: Sim, a tia Sinhá. Era a mais velha da família.
 
Yuri: Bom, a sua tia se casou com um general e a sua mãe se casou com o filho de um senador da República. Então as filhas de seus avós se casaram com gente de projeção.
 
Elder: Sim, e a minha tia Bella se casou com o tio Vellasco, que foi senador.

Yuri: O dr. Domingos Neto de Vellasco?

Elder: É.
 
Yuri: Foi seu tio?
 
Elder: Tio por afinidade, porque se casou com uma irmã da minha mãe.

Yuri: Então você teve um tio socialista?

Elder: Sim. E ele não chegou a ser comunista porque era muito religioso, defendia alguns pontos que eram importantes para a Igreja. Mas lia Marx… Depois da Guerra ele teve uma polêmica com o Prestes.
 
Yuri: O projeto da casa da família foi o único que seu pai concebeu?

Elder: Foi.

Yuri: Você se lembra de quando morou nessa casa?

Elder: Sim.

Yuri: Você morava nela antes de se mudar para Goiânia?
 
Elder: Isso. Eu me mudei de lá para Goiânia. Era linda essa casa. Eu até hoje não tenho coragem de entrar lá por causa das recordações.
 
Yuri: Seu pai era o então diretor do Liceu à época da transferência da capital?

Elder: Sim, na época da transferência.

Yuri: E ele se tornou diretor do Liceu de Goiânia?

Elder: Sim, foi o primeiro diretor.

Yuri: E o Liceu daqui de Goiás?

Elder: Continuou.
 
Yuri: Seu pai era disciplinador? Ele acompanhava o seu progresso nos estudos?
 
Elder: Olha... Meu pai fazia umas coisas que até hoje eu fico refletindo. Se ele fizesse isso hoje ia ser preso por essa turma reacionária. Ele chegava na sala, uma turma mista, e falava: “bom, eu hoje vou tratar de problemas sexuais…”. E ele falava de tudo, de como é que era a fecundação, de que maneira era e tal... Falava sobre as doenças sexuais. Naquela época ainda eram muito comuns gonorreia e sífilis.
 
Yuri: Isso era muito interessante. Porque a mulher se casava sem saber de nada e os homens viviam na zona de prostituição. Se elas pegassem isso talvez nem soubessem identificar de pronto.
 
Elder: Exato. E isso aconteceu... Por isso ele fazia questão de ensinar. Graciosamente, né? E ninguém falava nada, não reclamava. Nem ninguém dizia nada durante a explicação. A sala era um túmulo. Ninguém comentava nada.
 
Yuri: Mas isso era resultado apenas de precaução ou era porque seu pai tinha uma mentalidade mais aberta?
 
Elder: É porque ele era evoluído.
 
Yuri: Interessante, deve ser fruto da criação que ele teve. Como você sabe, uma irmã de seu pai se casou na minha família. Quando ela faleceu, as filhas encontraram coleções de livros eróticos no guarda-roupas dela.
 
Elder: Ah, é?
 
Yuri: É. Segredo de família.
 
Elder: Então isso deve ser coisa de família, né? E meu pai fazia essa aula todo ano. Todo ano.
 
Yuri: E vocês são quantos irmãos?
 
Elder: Léo, Leone, Mory, Leonel… São quatro irmãos.

Yuri: Contando com você são cinco filhos?

Elder: Cinco comigo.

Yuri: Cinco homens?

Elder: Cinco homens.

Yuri: Todos chegaram à idade adulta?

Elder: Todos.
Maria das Graças: Leonel é o que foi casado com a filha de Claro de Godoy.

Yuri: Todos se formaram?

Elder: Todos: dois eram militares, um era químico, Mory era agrônomo e eu artista. Todos foram embora de Goiás.
 
Yuri: E foram pra onde?

Elder: Pro Rio.

Yuri: Todos foram pro Rio?
 
Elder: Não. Eles estiveram em outros estados. Os que eram militares tiveram estágio num outro lugar. O outro foi para outro lugar, mas a sede deles sempre foi o Rio.
 
Yuri: Nenhum, então, faleceu em Goiás?

Elder: Não.

Yuri: Somente Leonel, não?
 
Elder: É mesmo, Leonel faleceu aqui.
 
Maria das Graças: Não, Benzinho, Mory também faleceu em Goiânia.

Yuri: Morando lá?

Elder: Morando lá.
 
Maria das Graças: Só Mory e Elder que ficaram em Goiás.
 
Yuri: Houve um incentivo dos seus pais para que vocês estudassem?

Elder: Ah, sim. Para estudar, sim. Não tinha nem dúvida.

Yuri: Qual era a condição financeira dos seus pais?

Elder: Era muito difícil.

Yuri: E ainda assim todos os filhos estudaram e a família construiu uma boa casa?
 
Elder: Bom, os militares, ao invés de pagarem, eles ganham, né? Isso facilitou a vida deles. E Mory e eu estudamos curso superior, né? E o meu irmão Léo, que foi pra Curitiba, lá ele arranjou um emprego e fez Química. Depois, tornou-se professor da Universidade Federal do Paraná.
 
Maria das Graças: Nós estávamos em Porto e o neto desse irmão que morou em Curitiba tinha desenhado a cadeira do Bispo de Porto. Estava lá escrito o nome dele.
 
Elder: Ele criou uma verdadeira obra de arte. Tanto é que está num museu.

Yuri: Outro artista plástico na família?

Elder: É.
 
Maria das Graças: Não, na verdade ele não é exatamente artista plástico. Ele desenhou essa cadeira por algum motivo. Artistas plásticos de ofício são Elder Rocha Filho e Leonel Brayner, um filho e o outro sobrinho de Elder.
 
Elder: O Leonel Brayner é meu sobrinho. Nasceu artista plástico. Ele mora em Salvador. É filho do meu irmão Leonel. Brayner é o sobrenome da mãe dele.
 
Yuri: Você teve alguma influência sobre o seu sobrinho?

Elder: Nenhuma.

Yuri: Será?
 
Maria das Graças: Nenhuma, nenhuma, nenhuma. A mãe dele faleceu no parto, a avó materna foi quem cuidou dele, que cresceu longe da família paterna.
 
Yuri: Seu irmão Leonel se casou por três vezes?
 
Elder: Foi. A primeira mulher dele era filha do general Floriano Brayner. A segunda era filha do dr. Claro Augusto de Godoy e a terceira era daqui de Goiás, filha do desembargador Eládio Amorim.

Yuri: Acho curioso como você sempre esteve rodeado por generais por todos os lados da sua família. No Rio havia um general importante que se chamava Anfrísio da Rocha Lima. Você o conheceu?
 
Elder: Meu parente. Geraldo e Anfrísio, eram irmãos. Ele foi para a guerra. Para Segunda Guerra Mundial, como o general Brayner. Mas não cheguei a conhecê- lo, não. Eu sei que eram dois irmãos, Geraldo e Anfrísio, filhos do “Avô-Joaquim”, um tio-avô meu — um homem enjoado, casado com uma mulher da família Sócrates.
 
Yuri: Como você se custeou enquanto estudava no Rio?

Elder: Mesada.

Yuri: Do seu pai?
 
Elder: Da família. E, numa ocasião, eu arrumei um trabalho. Mas não sobrava dinheiro para muita coisa. Não dava para sair no Rio nem nada. A primeira vez em que tomei um vinho foi junto com uns amigos de Goiás, a convite do dr. Guilherme Xavier de Almeida, que na época era deputado federal. Ele era solidário com a nossa situação e nos chamou para sair. Fomos a um ótimo restaurante e ele nos apresentou os melhores vinhos. Era um bon-vivant. Mas era rico sem depender da política. Foi poeta, tinha memória fantástica e era muito preparado. Aliás, a bancada goiana no Rio tinha um nível muito superior à de hoje.
 
Yuri: Quando você fala família, é seu pai ou mais gente?
 
Elder: É o pai e a mamãe mesmo. Teve um periodozinho em que ele ficou doente. Ele estava com dificuldade de sobreviver. Então, um dos meus irmãos me mandava mesada. Mas foi um curto período. E eu trabalhei uma época, ao menos uns dois anos, eu trabalhei num escritório que era do Cleone Vellasco, meu primo. Eu fazia projeto.
 
Yuri: O Cleone é arquiteto?
 
Elder: Não, ele é engenheiro. Havia o Cleone e o Colmar. Colmar é o pai de um comentarista da televisão, na Globo News. Ele é meu primo.
 
Maria das Graças: Ah, é. De vez em quando ele aparece.

Yuri: Quando foi que você criou consciência política?

Elder: No ginásio.

Yuri: No Liceu de Goiânia?

Elder: No Liceu de Goiânia.

Yuri: Em Goiás, qual foi a sua primeira escola?
Elder: O Grupo Escolar Modelo.

Yuri: Então, você não chegou a estudar aqui na Cidade de Goiás?
 
Elder: Não, na verdade estudei. No Primário, primaríssimo. Alfabetização.

Yuri: Onde?

Elder: No Colégio Santana.
 
Yuri: Algum professor daqui te marcou?
 
Elder: A Mestra Mariquinhas. É da família Veiga. Uma senhora gorda, com saia grande, que andava arrastando os pés.
 
Yuri: E você aprendeu a ler quando ainda estudava aqui em Goiás?

Elder: Sim, aprendi a ler aqui.

Yuri: Em casa ou na escola?

Elder: Na escola.

Yuri: Quando pequeno, você era avançado para a sua idade ou tudo transcorreu dentro do tempo normal?
 
Elder: Tudo dentro do tempo normal. Não tinha essa coisa de falar: “ah, gênio!”, nada disso. Não, nada disso. Meus pais podiam até considerar, mas não era nada disso.
 
Yuri: Entre os seus irmãos, houve algum que se destacou precocemente?
 
Elder: Não. Na verdade, eu tive relacionamentos muito difíceis com meus irmãos. Menos com Mory. Mory era ótimo e morava em Goiânia. Eu era ótimo companheiro para ele. Tinha uma fazendinha e era agrônomo. E Léo também era ótimo, mas, como morava em Curitiba, eu pouco o via. Só na época das férias dele, quando ele vinha para cá por causa, inclusive, do clima de lá.

Yuri: Bom, como você não citou os dois irmãos que eram do Exército, suponho que era com eles que você não teve boa relação.
 
Elder: Claro!
 
Yuri: E como é que foi a sua relação com eles na época da ditadura? O seu irmão Leonel foi reformado em alta patente, não?
 
Elder: É, eles nunca foram me visitar na cadeia, não. Me achavam perigoso.

Yuri: Intercederam ao seu favor?

Elder: Não. Não.
 
Maria das Graças: Há um certo dilurimento, não é, Bem? Digo, em relação a você e seus dois irmãos que não falaram nada e te deixaram ficar lá.
 
Elder: É.

Yuri: Você chegou a romper com eles?

Elder: Não.

Yuri: Mas houve reconciliação?
 
Elder: Não houve propriamente reconciliação, a coisa aconteceu normalmente.

Yuri: Quando eles faleceram, você conversava com ambos?

Elder: Não, não tenho nem dúvida. Yuri: Isto é, conversava? Convivia?

Elder: Sim, eu já convivia bem com eles.

Yuri: Quais as patentes dos seus irmãos?
 
Elder: Um morreu com alta patente e o outro nem tanto, porque morreu muito novo. O Leonel acho que foi reformado como coronel e o outro nem sei qual foi o posto no qual faleceu. Porque ele fez curso superior também, dentro do exército, né? De armamentos. E o outro, o Leonel, fez de Química.

Yuri: Bom, da infância, você me contou a respeito do ovo de ema na casa de Octo Marques. Algum outro aspecto cultural da Cidade de Goiás te chamava a atenção?
 
Elder: Não. Não.
 
Maria das Graças: Mas te chamava a atenção outra coisa que eu sempre achei muito interessante desde quando me contou. Sua mãe fazia o pratinho arrumadinho…
 
Elder: Ah, bom, é. Minha mãe fazia porque papai era muito caridoso, sentimental. Então, naquela época, os doidos eram trancados na enxovia ali do Museu das Bandeiras. Então, meu pai me mandava levar um prato de comida, não sei quantas vezes isso aconteceu, prum doido. E o sujeito ficava numa felicidade que eu ficava impressionado com o negócio. E comia aquilo com uma voracidade enorme e ria para mim. Foi uma lição de vida que eu tive.
 
Maria das Graças: Sim, mas você se lembra dele desenhando na parede da prisão, não?
 
Elder: Ah, não, era outro. Tinha um cidadão qualquer lá que tinha quase cem anos. Foi solto, né? Porque nessa idade, né? Cometeu um crime qualquer lá, não sei… E ele desenhava nas paredes.
 
Yuri: Você o via de fora ou entrava lá?
 
Elder: Não, de fora. E ele circulava por fora, né? Foi solto e circulava por fora da cadeia. Ele não tinha onde comer e por isso ficava lá, né? Pegando a sobra dos outros presos. Bom, com isso eu acabei prestando atenção nele e sempre lhe dava uma empada ou pastel. Eu era encarregado de vender pastéis. E o melhor lugar era a cadeia.
 
Yuri: Você vendia na cadeia?

Elder: Vendia.

Yuri: Quem fazia os pastéis?
 
Elder: Minha mãe. Eu ia lá na cadeia, entregava aqueles pastéis. Lá eu via aquele homem desenhando...
 
Yuri: Como é que os presos pagavam?

Elder: Ora, acontece que...

Maria das Graças: Isso você nunca me contou.
 
Elder: Não, acho que eu nunca te contei. Acontece que o papai tinha um curtume e tinha um combinado com os presos. Eles trabalhavam na cadeia fazendo chinelo, cinto, essas coisas todas. Então eles tinham um dinheirinho para sustentar a família lá fora e também para comprar os pastéis.
 
Yuri: O seu pai foi a Milena Curado de cem anos atrás.

Maria das Graças: Bem pensado.

Yuri: Não sei se você sabe, Elder, mas a Adelaide Carneiro de Mendonça, sua bisavó e mulher do cearense Franklin da Rocha Lima, tinha um curtume.
 
Maria das Graças: Ah, deve ter sido herança.
 
Elder: Ah, então é por isso que eu ouvia falar que meu bisavô é que tinha criado o curtume. Puxa, eu não sabia disso. Nossa Senhora, que coisa! Mas é um negócio curioso. Acho que eu nunca tinha comentado com você, não é, Graça? Tem a casa do curtume lá ainda…
 
Yuri: Então seu pai fazia esse tipo de trabalho, mandava o couro para a cadeia, os presos manufaturavam o couro, faziam chinelos e o que mais?
 
Elder: Cinto, chicotes, chapéu, essas coisas.

Yuri: Você anotava os pedidos dos presos?

Elder: Não, não. Eles tinham dinheiro no bolso.

Yuri: Tinham dinheiro no bolso? Que coisa curiosa!
 
Elder: Eu ia lá acompanhado por dois soldados armados, de fuzil, porque se fugissem eles os matavam, né? Nenhum fugia, nunca teve nada.
 
Maria das Graças: O curioso é que esse preso que foi solto, ele saía, vendia as coisas, andava na cidade, vinha e dormia na prisão.
 
Yuri: Ele tinha quase 100 anos?

Elder: É.

Yuri: Qual era o nome?

Elder: Não sei.
 
Yuri: Dando uma pausa nas perguntas, isso me fez lembrar de uma história: meu tio José Vital Sócrates, que foi o primeiro pediatra de Goiânia, quando chegou em Jaraguá viu algo que achou muito esquisito, é que na porta da prisão estava escrito: “o detento que voltar depois das 22h, dormirá na rua”. Até essa hora os detentos podiam sair. O delegado era um outro tio, coronel Castrinho.
 
Elder: Coronel Castrinho? Então eles chegavam em ponto. A sua família dominava totalmente Jaraguá, né?
 
Yuri: Parece, não sei. De mim, eu não falo nada; hoje quero saber de você.

Elder: Mas diz que a família tinha até cemitério particular dentro da igreja.

Maria das Graças: Eu soube que os Castros, lá na árvore genealógica, eles eram parentes próximos com os que brigavam. A mulher era Rios, não é?
 
Elder: E tinha um deles, que era casado com a filha do coronel Castrinho. que era médico, José Fleury. Ela era muito bonita.
 
Maria das Graças: Helena.
 
Elder: Tinha Geraldo Passos, engenheiro mineiro, meu amigo. Conheci também Manoel Demósthenes e Tristão Fonseca, engenheiros. E o Paulo Porto, que foi comunista e meu amigo.
 
Yuri: Não sei disso. Sei apenas que ele veio do Rio e era padrinho do Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta.
 
Elder: É, era carioca.
 
Yuri: Bom, voltando para você: depois que saiu daqui da Cidade de Goiás, na década de 1930, ainda não tinha passado por aqui um frei Confaloni, por exemplo…
 
Elder: Não.
 
Yuri: A Igreja do Rosário estava em construção, não?
 
Elder: Estava em construção. Quem fez a igreja foi o doutor Fritz Koehler.

Yuri: Um alemão.

Elder: E falso engenheiro.

Yuri: Seu tio.

Elder: É, tio por afinidade. Casado com a tia Iracema, irmã de papai.
 
Yuri: Então tinha mais uma pessoa ilustre o rodeando. Pelo que relatam, ele foi um bom professor na UFG.
 
Elder: É, ele foi um bom professor. Na verdade, ele era formado em Óptica. Era um sujeito muito inteligente. Ele se adaptou na cidade e falar que ele era óptico aqui não tinha nem sentido, né? Então ele se intitulava engenheiro, construiu a Igreja do Rosário, calculou e tudo.
 
Yuri: Você reparou o trabalho do seu tio Fritz de alguma forma ou não?

Elder: Não. Era algo distante. Próximo, mas distante.

Yuri: Que interessante: ao mesmo tempo que você fala que não tinha referência de profissionais da sua área na família, você tinha um primo engenheiro, um pai que projetou uma casa belíssima e um tio que projetou uma construção que destoa da cidade inteira. E sua prima Moema se casou nessa mesma época com o engenheiro dr. Rodrigo Soares Duque Estrada, apontado como o interlocutor entre o dr. Pedro Ludovico Teixeira e o urbanista Attilio Corrêa Lima.
 
Elder: Eu conheci o Duque. Era um picareta inteligentíssimo, culto, preparado. Mas não gostava de trabalhar. Certa vez ele quis que meu pai a avalizasse um negócio para ele, uma cervejaria. Meu pai era pobre e não podia fazer isso. Nunca mais nos procurou. Era comunista. Segundo ele, a célula dele se reunia no Copacabana Palace para não dar na vista.
 
Yuri: Quanto ao dr. Fritz, ele teria vindo para a Colônia de Uvá?

Elder: Não sei dizer.

Yuri: Eu tenho um caderno de viagem dele, original.

Elder: Tem? Não diga!?

Yuri É. De uma viagem que ele fez pelo Araguaia. Ele vai anotando várias observações sobre as cidades pelas quais passou ao longo do rio. Ele começa no Pará, acho que em Conceição do Araguaia, e vai até Aruanã, na época ainda se chamava Leopoldina.

Elder: Nós precisamos publicar isso, uai.
 
Maria das Graças: Nos interessa. O Gustavo Neiva está querendo lançar vários livros de viajantes, na Trilhas Urbanas
 
Yuri: Vamos ver.
 
Maria das Graças: Bom, é...
 
Yuri: Você tinha convivência com a sua família extensiva? Ou era só com seus pais e irmãos?
 
Elder: Pais e irmãos. Eu não conheci meus avós maternos. Já meu avô paterno, o Miguel da Rocha Lima, que foi político importante, era a criatura mais esquisita. Não tinha nenhum carinho pelos netos. Uma vez entrei no comércio dele, criança ainda, e ele perguntou pro Paulo Saddi, funcionário dele: “quem é esse menino?”. Mas a minha avó Anica, mulher dele, era um doce. Nos tratava muito bem. Mimava mesmo. Tinha uns olhos lindos. Foi uma velha bonita. É a única referência que tive de avó.
 
Yuri: Com o seu tio alemão você não conviveu?
 
Elder: Não, eu convivi com ele. Mas nós não nos dávamos muito bem. Ele era nazista.
 
Yuri: Mesmo? Mas ele era nazista em plena guerra ou depois da guerra?
 
Elder: Em plena guerra e depois, não abandonou. Eu só sei que quando a Alemanha perdeu a guerra, ele chorava como um desesperado. O papai tomou uma antipatia dele que nós não íamos lá.
 
Yuri: Então a malquerença era do seu pai, né?
 
Elder: É, e eu acompanhei. Mas ele era professor, reconhecido como um bom professor. Tanto aqui em Goiás como lá em Goiânia.
 
Maria das Graças: Não tem aqui um túmulo com uma suástica?

Yuri: Tem, de um polonês.

Maria das Graças: Não é do Fritz então?

Yuri: Não.

Maria das Graças: Ah, bom.
 
Yuri: Elder, você convivia com os seus primos de primeiro grau?
 
Elder: Muito pouco, e ainda menos com os filhos de tio Wadjou, irmão de papai. Não convivia com eles.
 
Yuri: Você teve um primo que foi o primeiro transexual de Goiás, certo?

Elder: É, o Aguinaldo. Depois, Nádia.

Yuri: E vocês tiveram algum contato?
 
Elder: Não. Conheci ligeiramente. Vi uma vez.
 
Maria das Graças: Muito interessante a história dela.
 
Elder: Nós éramos afastados pelo seguinte: o meu pai tinha tido uma questão qualquer lá que ele e o irmão dele, Wadjou, tornaram-se inimigos.
 
Yuri: Seu pai era bélico ou apenas sistemático?
 
Elder: Bélico nunca foi. O homem mais pacífico do mundo.

Yuri: Você já citou que ele não se dava com o cunhado Fritz.

Elder: Por ideologia.

Yuri: Não se dava com o irmão Wadjou.

Elder: Por certos princípios.

Yuri: E o seu pai tinha posição política?

Elder: Não, nenhuma.

Yuri: Algum espectro político?

Elder: Eu diria que ele era socialista.

Yuri: É mesmo?

Elder: É.

Yuri: Ele apoiava o interventor dr. Pedro Ludovico?

Elder: Muito.

Yuri: Foi um mudancista convicto?

Elder: Foi.

Yuri: Apoiou o Vargas?
 
Elder: Foi obrigado a apoiá-lo. Ele era diretor do Liceu de Goiânia e o Vargas veio para visitar a cidade.
 
Yuri: Como era a relação de seu pai com o concunhado dr. Domingos Neto Vellasco?
 
Elder: Não muito bem, não. Porque o tio Vellasco, na mudança da capital, nunca informou a ele que o dr. Pedro ia mudar a capital. Daí, ia até a casa do meu pai, via que ele estava construindo uma casa muito grande e não disse para o meu pai vender a casa enquanto estivesse valendo, porque depois da mudança despencou o valor e era uma boa casa.
 
Maria das Graças: Eu acho que essa mudança e a questão de Goiás ir quase à bancarrota mesmo, foi o que preservou a cidade.
 
Yuri: Você se lembra de algum amigo da sua infância em Goiás?

Elder: Não, não tinha um em específico.

Yuri: E em Goiânia?
 
Elder: Goiânia, sim. Eu tive muita amizade com os três irmãos: Haroldo, Renato e Élvio. Eram filhos do Francisco de Assis.
 
Yuri: Qual o sobrenome dessa família?

Elder: Britto.

Yuri: Ah, você foi amigo do Haroldo de Britto, o escritor?

Elder: Sim, ele foi poeta.

Yuri: Agora sei quem é. Você foi amigo dos três? Eram politizados.

Elder: Amigo dos três. E eles me influenciaram, porque os três eram comunistas.

Yuri: E, daqui de Goiás, da infância, tem algo de que você se recorde?

Maria das Graças: Além do ovo...
 
Yuri: Sim, além do ovo. Do dia-a-dia, o ovo é um fato.
 
Elder: Assim, do dia-a-dia, era ir na prisão levar um prato, algum passeio que se fazia ao Poço Rico, ao Poço do Bispo e à Sota. Nós todos frequentávamos. O Sucuri era longe, mas ainda me recordo de que uma vez fomos lá. Bem ali na Carioca teve uma fábrica de cerveja.
 
Yuri: Você conheceu?
 
Elder: Não. Mas meu pai dizia que o proprietário quebrou porque bebia a produção.
 
Yuri: Você diria que seu pai era remediado financeiramente? Lembrando que seu pai era filho de um comerciante rico que foi senador da República e chegou à presidência do Estado de Goiás mais de uma vez.
 
Elder: É, era isso, meu pai era remediado.
 
Yuri: Já seu tio Wadjou chegou a ser muito rico?
 
Elder: Muito rico. A situação do meu pai nunca foi como a do tio Wadjou. Nunca. Até hoje há descendentes dele com alguma herança. Eu admiro muito uma neta dele, também artista, que vim conhecer mais recentemente. É a Ana Christina da Rocha Lima.
 
Maria das Graças: Ela é genial.
 
Yuri: Muita gente escreveu sobre o sentimento coletivo em relação à mudança de capital.
 
Elder: Meu pai perdeu dinheiro com a desvalorização da casa, mas a minha mãe nem se abateu com isso. Ela achou ótimo desde o começo. Ela nunca voltou para Goiás, a não ser quando a tia Bella morreu e foi sepultada aqui e então minha mãe veio. Ela não gostava de Goiás. De jeito nenhum. Por causa do meu avô, né? Que foi perseguido pelos Caiados. Minha mãe nunca apagou isso e não tolerava Caiado. Havia uma exceção: a Sueli Caiado Parrode, que ela adorava e é casada com o meu primo Marcos Rocha Lima. A Sueli ela aceitou e adorava. A  vida inteira convivemos e gostamos muito desse meu primo Marcos, que é filho do meu tio Jutoribe, irmão do meu pai. Convivemos muito com o tio Jutoribe também.
 
Yuri: Então, a sua mãe gostou da mudança da capital?
 
Elder: Ela gostou. Ela era arrasada com relação à política dessa cidade aqui. Normalmente, quando eclode uma revolução ou alguma coisa é porque há uma insatisfação que vai crescendo, crescendo. A gente vê esse sentimento em Goiás antes de 1930, já. Havia o jornal Voz do Povo que mostrava a oposição em Goiás. A oposição estava grande, né? Os desembargadores já estavam posicionados contra o Totó Caiado. Então, quando a revolução ganha a nível nacional, porque aqui em Goiás ela foi sufocada, né? O doutor Pedro foi preso em Rio Verde. O pessoal já estava cansado daquilo. Há muito tempo! Esse sentimento que minha mãe tinha da perseguição que a família sofreu, era geral. Todo déspota começa perseguindo um, depois vai perseguindo todo mundo. Um se cala, né? Então persegue um grupo, persegue outro grupo, persegue outro grupo. Então, os Caiados já tinham mais inimigos do que amigos aqui dentro, inclusive na própria família que estava rachada.
 
Yuri: Quando você se muda para Goiânia, onde você vai morar?
 
Elder: Na casa que nós construímos. O papai construiu ali na Avenida Tocantins. Está arrasada hoje. É um estacionamento, parece.
 
Yuri: O projeto era dele também?
 
Elder: Não sei, eu tenho a impressão que era de um polonês que morava aqui, chamado Kaika. Era um excelente desenhista. O nome dele na verdade era Kazimir. Então tinha o apelido de Kaika. Ele fez até uma capa do livro do Pedro Gomes. Vou me lembrar o nome do livro…
 
Yuri: Pito Aceso. É uma caricaturazinha do próprio autor. Maria das Graças: Era do Pedro Gomes?

Elder: O perfil do Pedro Gomes com um cachimbo. Maria das Graças: Como você sabia da caricatura?

Yuri: O Pedro Gomes era casado com uma tia minha, Lídia Xavier de Almeida. Mas, claro, não os conheci. Somente uma filha, que era freira, chamada Sônia.
 
Elder: Conheci muito a dona Lídia. Ela parecia um fantasma.

Maria das Graças: Como assim?
 
Elder: Muito branca, magrinha, mal vestida. O Pedro Gomes também era mal vestido. Pegava o cabelo dele e fazia assim. Eu conhecia muito ele. Desculpa, mas eu sou franco. Alguém me perguntou se eu li o livro de Lena Castello Branco sobre os Caiados, muito sério respondi para o sujeito: “não, eu não gosto muito de ficção científica”.
 
Yuri: Isso eu posso colocar?

Elder: Pode colocar.

Maria das Graças: Agora, tem algumas histórias do Caiado que eu falei: “Elder, você precisava relatar isso, é história verídica”.
 
Elder: Mas acontece o seguinte, tem pessoas ainda vivas e que não merecem isso.

Maria das Graças: E vão achar chato, né?

Yuri: Vocês se referem a pessoas que não têm nada a ver e que poderiam ficar marcadas?
 
Elder: Isso.
 
Maria das Graças: É, eu acho que você tem razão, meu bem. Acho que você tem toda a razão.
 
Yuri: Voltando para Goiânia, quando vocês se mudaram para a Avenida Tocantins, você foi estudar no Liceu de Goiânia ou foi para o Grupo Escolar Modelo?
 
Elder: Não, eu fui para o Liceu e depois para o Grupo Escolar Modelo. Yuri: Ah, pro Liceu primeiro?

Elder: É, o Liceu também dava o curso dos índices.

Yuri: E quem foram seus professores já em Goiânia?

Elder: Pedro Gomes, meu pai…

Yuri: Pedro Gomes foi um bom professor?
 
Elder: Péssimo professor. Fazia uma aula só. O mesmo tema.

Yuri: Mas ganhou fama.
 
Elder: É, ganhou fama. Mas péssimo. Ele era meu companheiro de pescaria. Bebia que nem o diabo. Ele ia para beber, não era para pescar.
 
Yuri: E seu pai dava aula de quê?
 
Elder: Antigamente, a matéria dele se chamava Ciências Naturais.

Yuri: E Pedro Gomes?

Elder: Língua Portuguesa.
 
Yuri: Há algum outro professor do qual você se recorde?
 
Elder: Professor Joaquim Edson. Ele era professor de música. Mas eu era totalmente avesso a aprender música naquela época. É muito difícil, não é? E eu nunca entendi nada daquele negócio de clave, nada daquilo. E ele fazia canto orfeônico, solfejo… E já tinha um negócio de uma barrinha assim… Eu não entendia nada daquilo. Ele falava para mim assim: “só move a boca”. Porque era desafinado.
 
Maria das Graças: Na hora de cantar o Hino Nacional, ele também falava: “só move a boca”.
 
Yuri: E no Grupo Escolar Modelo?

Elder: Não me lembro de ninguém.

Yuri: Graça, só reparei agora que o seu vestido tem as cores de Elder, não?

Maria das Graças: Tem?

Yuri: Tem. O azul lembra.
 
Maria das Graças: É uma tela dele. Não está aqui não. É um quadro de dois metros por não sei quanto.
 
Yuri: Bom, você sai de Goiânia e vai para o Rio. Seus pais se mudaram para o hotel por quê?
 
Elder: Não sei, talvez para custear os estudos dos filhos.

Yuri: Havia muita gente em Goiânia que morou em hotel. A viúva do dr. Augusto Jungmann, a mãe do dr. Jorge Jungmann, morava num Hotel.
 
Elder: Tem uma história muito engraçada com ele, Jorge Jungmann. Ele é advogado, não é?
 
Yuri: Era. Ele já faleceu.
 
Elder: E ele era muito amigo da Lourdes Bastos, que era minha prima. Casada com o José Saddi.
 
Yuri: Prima pelo lado de sua mãe?
 
Elder: Pelo lado da minha mãe. Ela morava onde hoje é a Pousada do Ipê. E o Zé Saddi era jogador. O papai tinha horror de jogo. Porque o meu avô era jogador. Mas aí, o Jorge Jungmann um dia chegou lá na casa do casal, Lourdes e Zé, abriu uma pasta, trouxe uma série de papéis e disse: “estou desquitando vocês, assina aqui, porque se você continuar assim a sua mulher vai morrer de fome, você perde tudo”. E ele assinou de bom grado. Então ele ficou com o salariozinho dele, que era mixaria. E ele viveu a vida inteira assim com isso.
 
Yuri: O que eles eram do Reginaldo Saddi?
 
Elder: A tia Lourdes era minha prima. Mais velha, né? Era mãe dele.

Yuri: Então o Reginaldo era seu primo?

Elder: Era.
 
Yuri: Artista também, não? Outro artista da sua família.

Elder: É, músico e ator.

Yuri: Você sofreu algum choque cultural no Rio? Já tinha ido ao Rio antes?
 
Elder: O choque mais gostoso que eu tive foi quando eu vi o painel Guerra e Paz, do Portinari.
 
Yuri: Você o viu onde?

Elder: Vi no Teatro Nacional.

Yuri: E hoje está na ONU.

Elder: Está na ONU. E estava no Teatro Nacional porque era o único lugar que tinha quando ele terminou, era o único lugar que tinha para caber o painel, porque é um painel imenso. E ele foi para lá. E o interessante é que, quando eu estava lá, nós, vários alunos da Arquitetura se deleitando com aquele painel, entrou o Juscelino com aquele jeitinho apressado dele. Muito bem vestido. Entrou lá e tal. Aí o pessoal falou: “discurso, discurso!”. Ele falou sobre o painel por uns 15 minutos.
 
Maria das Graças: Improvisado?
 
Elder: Absolutamente improvisado. Ele conhecia muito bem Arte.

Maria das Graças: O Juscelino?

Elder: Sim.
 
Yuri: Então era igual ao Bolsonaro…

Elder: Não, peraí. Não esculhamba.

Maria das Graças: Meu bem, eu já te contei que, já casada com Paulo Bertran, levei alguns papos com o coronel Affonso Heliodoro dos Santos. Ele também era muito culto e era assim com o JK.
 
Yuri: O JK esteve aqui nesta casa na época da sua avó, não? Eu tenho essa foto.

Maria das Graças: Esteve, tem retrato deles.

Yuri: Elder, como era o acesso às obras dos artistas clássicos brasileiros quando você estava em Goiânia? Como é que isso chegava até você? As impressões dos jornais eram péssimas. Você tinha acesso a catálogos?
 
Elder: Não.
 
Yuri: E onde é que você via isso? O Leonam Fleury, que começou a pintar ainda muito novinho, tinha como referência a Delta La Rousse, a Enciclopédia Britânica, onde havia algumas figuras, fotos de alguns quadros famosos. Porque não tinha museu de arte em Goiânia.
 
Elder: Eu tinha muitas edições de uma coleção chamada “Tesouros da Juventude”. Era uma coleção de livros ilustrados.
 
Yuri: É difícil, por mais que se tenha criatividade, você pintar ou conceber qualquer coisa se não tiver um referencial.

Elder: É difícil. Eu sentia muito isso.
 
Yuri: E como é que eram as casas de Goiânia nessa sua juventude? O que havia nas paredes?
 
Elder: Nada. Praticamente nada. Ali tinha uma fotografiazinha…

Yuri: Você se lembra do hábito de pendurar tudo lá em cima?

Elder: Era assim.
 
Maria das Graças: Era muita fotografia de casamento.

Yuri: Mas era tido como objeto de arte?

Elder: Fotografia é arte, mas esses retratos não. Depende do retrato também. Mas os retratos assim não eram. Era no máximo isso com um prato decorado, uma coisa assim.
 
Yuri: Um prato azul-pombinho?!

Elder: É, desse tipo mesmo.

Maria das Graças: Você está falando aí e eu estou me lembrando da casa de meu avô Joaquim Craveiro de Sá, que era fotógrafo. O que tinha lá nas paredes eram as fotos que ele tirou da Serra Dourada e que meu tio Luiz Curado, genro dele e artista, ampliou. Então tinha fotos grandes de, sei lá, 60 por 80 centímetros, 80 centímetros por um metro. Painéis lá da Serra Dourada que eram fotos de vovô.
 
Yuri: Vejam, por exemplo, que o retrato daquela moça loura com que Augusto Rios presenteou dona Dolinha (avó de Graça) não é uma pintura, mas sim uma reprodução impressa na França, não?
 
Maria das Graças: É.
 
Yuri: Dá para ver que é uma coisa importada, você devia comprar por revista, algo do tipo, não tinha nada disso aqui. O que se pendurava nas paredes eram fotos, comendas, bula papal, bençãos eclesiásticas etc.
 
Maria das Graças: Exatamente isso. Era o que tinha na vovó.
 
Yuri: Em 1940, houve uma exposição em Goiás, organizada por João José Rescala durante a administração municipal do dr. Edilberto da Veiga Jardim. Tratou-se da primeira exposição das obras de Veiga Valle. Além de fotos dessa exposição com 25 obras, restam também arquivados na Fundação Frei Simão alguns outros documentos relativos ao evento, como artigos, crônicas etc. Essa primeira exposição aconteceu no Liceu de Goiás. Quase treze anos depois, houve uma nova exposição das obras de Veiga Valle, desta vez em Goiânia, na sede da EGBA, juntamente com a coletiva dos professores daquela instituição. Um ano depois foi a vez das exposições por ocasião do Congresso Brasileiro de Intelectuais. Fora esses eventos, como costumava ser o cenário das artes em Goiás?
 
Elder: Não existia movimento nenhum. Conheci o Rescala. Ele esteve em Goiânia. E logo quando chegou parecia que só eu sabia quem era ele. Ele trabalhava no IPHAN, veio inventariar o patrimônio arquitetônico e descobriu o Veiga Valle. Então ele fez uma carta para o dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade relatando esse fato. Aliás, ele escrevia para burro. Não era errado, não. Escrevia mal. E ele ficou celebrizado na época.
 
Yuri: Como pesquisadores não? Porque a pintura dele é péssima.

Elder: A pintura dele é péssima.

Yuri: Eu já vi. Os retratos também, os motivos religiosos, tudo é terrível.
 
Elder: Mas aí começou esse negócio em torno de Veiga Valle que explodiu. Eu não vi essa exposição. Pelo menos não me lembro.
 
Yuri: Um outro artista que passou por Goiás e também veio pelo Iphan foi o Edgar Jacinto. Arquiteto e bom fotógrafo, que produziu excelente repositório fotográfico do patrimônio goiano, trouxe uma museografia contemporânea para diversos museus brasileiros e dá nome a uma sala do Iphan, no Rio de Janeiro. Você chegou a conhecê-lo? Sei, por relatos e fotos, que ele era amigo do Bernardo Élis, da Regina Lacerda e do Oscar Sabino Júnior, o qual, pouca gente sabe, tinha parentesco com o Gustavo Capanema, arquiteto da primeira normativa federal sobre patrimônio histórico e cultural.
 
Elder: Não o conheci. Mas sabia quem era. Porque ele era muito amigo do Bernardo Élis e também do dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade.
 
Yuri: Você foi amigo do dr. Rodrigo?
 
Elder: Fui. Porque quando ele vinha visitar o patrimônio daqui, ele passava em Goiânia e sempre ia lá no meu escritório. Nós batíamos longo papos. Ele também era amigo do Domingos, que você citou.

Yuri: Eu não sabia. Mas tinha conhecimento de dois amigos deles em comum: Aníbal Machado e Abgar Renault. O dr. Rodrigo era sobrinho de Afonso Arinos (o tio) e de Afrânio de Mello Franco, este morou aqui em Goiás
 
Elder: O Afrânio morou aqui?
 
Yuri: Sim, foi aluno de Mestra Nhola quando seu pai, dr. Virgílio Martins de Mello Franco, foi juiz de Direito do Alto Tocantins e colocou o filho para morar na casa do senador Antônio José Caiado, avô do Totó.
 
Elder: É mesmo. Eu já ouvi uma história dele em Pirenópolis. Inclusive, foi o Bertran quem me contou. Tinha a ver com um processo bem anterior ao tempo do Virgílio de Mello Franco como juiz. Era relacionado ao assassinato na fazenda do comendador Joaquim Alves de Oliveira. Um crime passional que foi abafado. O Virgílio de Mello Franco foi juiz do Norte. Não sei se chegou a ser em Pirenópolis. E ele já veio numa época posterior a esse assassinato da mulher da família. Quando o Paulo me contou essa história direito, eu falei: “Paulo, pelo amor de Deus, faça isso não como romance, dê os nomes”. Eu já fui aluno do colégio que se chamava de Mestra Nhola..
 
Yuri: Mestra Nhola, quando morreu, deixou um álbum. Nesse álbum tinha produções literárias dos alunos que ela julgava brilhantes. O professor Basileu Toledo França esteve com esse álbum e até escreveu sobre isso em seu livro “Cadeira Número 15”. Entre outras produções, tinha escritos de Afrânio de Mello Franco.
 
Maria das Graças: Um dia já de noite eu cheguei da Escola Piaget, que eu fundei e dirigia, e o Paulo estava sentado lá em casa. Aí ele pôs um negócio assim e tampou. Ele me perguntou: “você conhece essa letra?” Eu falei: “lógico, essa letra é de meu pai”. “Você tem certeza?”, ele insistiu. Eu falei: “óbvio.” Era uma carta de meu pai, Augusto Fleury, para Rodrigo de Mello Franco, datada de 1950. Foi dentro do dossiê de tombamento da cidade. Paulo tampou a assinatura para saber se eu reconhecia a letra de meu pai. Mas eu reconheci imediatamente. Falei: “lógico, imagina, é a letra de papai”. Papai tinha escrito essa carta pedindo a Rodrigo que olhasse por Goiás. Goiás estava no limbo. E meu pai então escreveu a ele. Essa carta foi para o dossiê. Puseram essa carta no dossiê para o tomamento da cidade.
 
Yuri: Elder, você está cansado?

Elder: Eu estou exausto.

Yuri: A gente continua depois?

Elder: Claro, continua.
 
Yuri: Já foi metade, eu acho. Na realidade, tem mais 70 anos pela frente. Elder: Está vendo, meu bem?

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AUTOBIOGRAFIA DE ELDER ROCHA LIMA
 
  1. Tenho uma certa dificuldade em falar sobre mim mesmo - não acho que seja uma questão de modéstia, mas talvez porque sou um enrustido mesmo. De qualquer maneira vou tentar falar como se fala a um amigo. Retire dessa minha fala o que for pertinente e o restante desconsidere.
 
ORIGENS
 
  1. Nasci na Cidade de Goiás em 1928. Meu pai era professor do Liceu e fazendeiro e a minha mãe era de lides domésticas. Passei parte de minha infância na minha Villa Boa - fato que me deixou marcas bastante profundas. Há uns poucos anos paguei a dívida com minha cidade escrevendo e desenhando-a, o que resultou num pequeno livro que chamei de Guia Afetivo da Cidade de Goiás. Esse livro foi editado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1937 minha família mudou-se para Goiânia - a minha casa foi uma das primeiras 100 casas na nova capital. Assisti, então, a cidade nascer e crescer. Goiânia me espantava porque era o avesso da minha cidade natal e não perdia oportunidade de rever a minha cidade, como até hoje, aliás. Cursei o Liceu de Goiás que funcionava no mesmo edifício sóbrio, digno e singelo que existe até hoje e que merece ser estudado, pois nunca se tornou obsoleto. Após minha formatura no secundário iniciei-me como desenhista de arquitetura. Trabalhei alguns anos no ofício.
 
FORMAÇÃO NO RIO DE JANEIRO
 
  1. Em 1950 meus pais me encaminharam para o Rio de Janeiro, atendendo ao meu desejo de estudar arquitetura. Em 1951 ingressei na Faculdade Nacional de Arquitetura e em 1955 formei-me. Voltei para Goiânia deixando no Rio uma noiva que era minha colega de turma. Estou casado com ela há 54 anos. Em Goiânia iniciei minhas atividades como arquiteto inicialmente trabalhando na Secretaria de Viação e Obras Públicas e também como profissional liberal. Não foi um início fácil, pois a figura do arquiteto não era muito reconhecida pela população e éramos muito confundidos com engenheiros civis bons para enfeitar fachadas. Na Secretaria interessei-me bastante pelos problemas urbanos da cidade cujo desenvolvimento não só tinha ultrapassado o projeto inicial como ocorria de uma maneira desordenada, sem diretrizes que pudessem evitar problemas futuros. A primeira tentativa de um Plano Diretor fracassou, mas nem por isso desisti do intento - sempre insistindo sobre o assunto, inclusive em artigos de jornais. Não consegui muita coisa e ainda hoje vejo com preocupação a cidade crescer, ou melhor, inchar ao sabor das conveniências dos especuladores imobiliários, embora se diga que tenha um plano diretor.
 
MAGISTÉRIO SUBVERSIVO
 
  1. Logo após minha chegada comecei a lecionar na Escola de Engenharia recém- criada - não se ganhava nada com isso, mas acho que satisfazia uma vocação para o magistério que sempre julguei ter. Como arquiteto realizei um número grande de projetos - alguns razoáveis, outros nem tanto, mas sempre me esforçando para melhorar meu desempenho profissional. Por essa época projetei alguns edifícios para a recém-criada Penitenciaria Agroindustrial de Goiás. Por ironia da sorte, em 1964, fui preso pela ditadura militar nesta penitenciaria, certamente, penso eu, para que pudesse testar a funcionalidade dos meus projetos! Nesse tempo fui demitido da já instalada Universidade Federal de Goiás, sem que eu pudesse saber quais as razões e nem pudesse me defender. (Era professor também na Escola de Agronomia e no Centro de Estudos Brasileiros, este último fechado pelo governo militar - estudar o Brasil era coisa de subversivo!).
Quanto às razões da minha demissão, fui tomar conhecimento delas com minha prisão e instalação de um Inquérito Policial Militar a que tive que responder. Além dessa demissão sofri uma série de restrições profissionais, tais como impedimento de abrir conta bancária no Banco do Brasil, ocupar qualquer função pública e também não poderia realizar projetos em que o Estado estivesse envolvido.
 
  1. Só me restava trabalhar duro no escritório, eu e Beatriz, minha mulher. Felizmente não me faltaram clientes que não me acharam muito perigoso como os militares. As razões de minha demissão eram "atividades subversivas" traduzidas em um movimento que estávamos empreendendo, eu e outros professores, para reformar a estrutura da universidade. Essa reforma compreendia supressão da figura anacrônica do catedrático, e mais: criação de uma carreira de magistério; organização dos Institutos básicos para início de cada curso em várias áreas; preferência para professores de dedicação exclusiva em todas as unidades; participação do aluno nos órgãos colegiados e atualização de toda a programação dos cursos que estavam precocemente obsoletos. Usávamos como modelo para estas reformas principalmente as universidades americanas e a Universidade de Brasília que estava em fase de implantação. Isso tudo foi considerado subversivo, mas, curiosamente, parte expressiva dessa pretendida reforma foi implantada ainda durante o regime militar. Era inevitável que isso ocorresse - eram exigências internas das grandes universidades do país.
 
A ESCOLA DE ARQUITETURA DA PUC GOIÁS

  1. Em 1968 fui procurado pelo professor Amaury Menezes e pelo reitor da Universidade Católica de Goiás levando o convite de ajudá-los a criar o curso de arquitetura. Meu espírito quixotesco funcionou outra vez - assim o professor Amaury, eu e Frei Nazareno começamos, antes de tudo, a sonhar com uma escola de arquitetura que fosse menos formal que as outras. Houve nesse ato, primeiramente de minha parte, reconheço, um impulso de caráter utópico. Não nos preocupávamos muito com a forma do curso - isso era problema do currículo mínimo do Ministério. O que desejamos era reunir uma equipe de professores que tivesse certa experiência profissional, mas que fossem, antes de tudo, idealistas e corajosos para experiências novas. Reunimos uma pequena equipe e um número razoável de candidatos ao vestibular. Antes do vestibular fizemos um curso para prepará-los - queríamos pessoas aptas, vocacionadas, bem preparadas e que estivessem dispostas a enfrentar um curso que comportaria algumas experiências que poderiam ser consideradas extravagâncias para alguns.Nessa fase já contávamos com um entusiasmo acima do comum do reitor Padre Cristobal Alvarez - ele depositava em nossa tentativa uma esperança enorme e chegava até a imaginar que poderíamos influenciar outros cursos da universidade que ele considerava muitos rotineiros.
 
  1. Assim, com todo entusiasmo fizemos o primeiro vestibular e iniciamos o curso. Confesso que em virtude de concepções íntimas minhas o curso estava moldado numa filosofia de arquitetura muito voltado para as artes plásticas, e isso era bem aceito pelo Amaury e pelo Frei Nazareno. No decorrer do curso procuramos estabelecer um relacionamento amigável e íntimo com os alunos, procurando romper todas as barreiras entre mestres e discípulos, no que, acho, tivemos um certo êxito - buscávamos, antes de tudo, um espírito de oficina, quase aos moldes das guildas medievais. Estabelecemos também um sistema de apreciação e julgamento dos projetos elaborados pelos alunos, de forma coletiva, provocando debates e competente defesa do autor - com isso criou-se um bom ambiente pedagógico e uma forma prática de compreensão da natureza do projeto, criando e desenvolvendo a criatividade, e, ainda mais, criou-se um espírito de equipe, sem ranços de individualismo.
 
INTERVENÇÃO MILITAR
 
  1. Num belo dia recebo em minha casa a visita do Padre Cristóbal - ele foi me comunicar que o Ministro da Educação da época, o Coronel Jarbas Passarinho, exigia a minha demissão da Universidade (os dedos-duros já tinham funcionado!). Avisou-me o Reitor que ele se recusara a cometer tal ato. Nessas alturas afirmei ao Reitor que ambos seríamos presos por essa atitude e disse-lhe ainda que se ficássemos numa mesma cela seria até interessante, pois ele poderia, como bom jesuíta, me ensinar a prática dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e poderíamos também desenvolver grandes papos, pois éramos grandes amigos. Mas com não era garantido que isso ocorresse, isto é, ficarmos numa mesma cela, era conveniente que eu me demitisse, o que ele, Reitor, não poderia me impedir. Mais uma frustração na minha vida, mais um projeto que não consegui levar avante.
 
  1. Em 1973, atendendo a um convite que na ocasião me parecia irrecusável, mudei-me para Brasília. Fui trabalhar numa empresa e cuidava da parte de projetos de arquitetura e implantação de um viveiro para futuras atuações no campo do paisagismo. A coisa não deu certo e a empresa fechou. Tentei uma atividade industrial com pré-fabricados de concreto armado, mas logo verifiquei que não tinha a menor vocação para empresário e vendi minha parte para meu sócio. Quando o dinheiro dessa venda acabou entrei num buraco negro. Estava com cinco filhos em colégios particulares, tinha as prestações de um apartamento que comprara e, afinal, tinha que me alimentar, vestir etc. O pensamento de voltar para Goiânia aconteceu, mas os filhos estavam matriculados em escolas e não era tempo de transferência. A solução que nos pareceu viável foi eu e minha mulher trabalharmos como desenhistas de arquitetura e foi o que fizemos num escritório instalado em casa. Vivi um longo tempo assim, dia e noite debruçado sobre a prancheta (naquele tempo os computadores individuais não existiam e, portanto, CAD). Demos um passo adiante, passaram a nos confiar desenvolvimento de projetos, recebíamos os croquis e dávamos forma final, com o projeto executivo. Daí para conseguir encomendas de projeto do começo ao fim foi um passo e abri meu pequeno escritório. Trabalhamos, eu e Beatriz, para Goiânia e Brasília, durante alguns anos.
 
TOUR DE FORCE
 
  1. Em especial trabalhei para as Organizações Jaime Câmara, projetando e executando obras, inclusive para sua sede na Serrinha (hoje bastante desfigurada por acréscimos inadequados). Trabalhei também na Terracap, numa equipe que elaborou o projeto da cidade satélite de Samambaia, onde introduzimos algumas novidades, inclusive uma rede de ciclovias que atingia toda a cidade. Posteriormente esse projeto foi alterado e suprimiu-se inclusive a rede de ciclovias. Com a anistia mudei-me para Goiânia, reassumi minha posição na Universidade Federal de Goiás, mas, a pedido do Reitor Joel Pimentel, amigo de longa data, fui para a área técnica, compondo o Escritório Técnico da Universidade, que estava com um enorme volume de dinheiro a fundo perdido para a Universidade destinado à construção de edifícios e aquisição de mobiliário e equipamentos de várias unidades que estavam carentes. A Universidade estava a ponto de perder as verbas oriundas do BID, pois a administração anterior do escritório não tivera capacidade de gastá-las, o que deveria ser feito segundo um cronograma imposto pelo BID. Foi uma aventura empolgante e um autêntico tour de force - tivemos de providenciar, em um amo, projetos para a Escola de Odontologia, Escola de Enfermagem e Nutrição, Biblioteca Central, Instituto de Patologia Tropical e Instituto de Artes e outras obras menores. Nosso escritório era sui generis - éramos cinco arquitetos, três engenheiros e três desenhistas - dois principiantes e um alcoólatra. Passamos a projetar e desenhar os projetos a lápis, dispensando o concurso dos desenhistas e com bom resultados. Os projetos que não conseguíamos elaborar foram empreitados a bons escritórios a quem fornecíamos um programa de necessidades detalhado e acompanhávamos os seus trabalhos até o término de todos os projetos, inclusive os complementares. Em seguida licitávamos as obras e fazíamos dobradinha com os engenheiros na fiscalização das mesmas.
 
PIRENÓPOLIS, O ATELIER
 
  1. Finalmente gastamos todo o dinheiro que nos foi entregue, executamos as obras em tempo hábil, com elogios do BID. A equipe de arquitetos foi exemplar e trabalhava dia e noite, sem medir esforços. Por essa época já tinha atingido meu tempo de aposentadoria e resolvi fazê-lo e empenhar-me mais na atividade de pintor que já exercia esporadicamente, além de escrever principalmente sobre nossas cidades do ciclo do ouro - sua arquitetura vernácula e seu espaço urbano orgânico. A pintura que pretendia realizar era bastante ligada à arquitetura, pois estava retratando minha Vila Boa de Goiás, com uma liberdade relativa, pois pretendia fazer uma arte de características documentais, como faço até hoje, na maior parte dos meus quadros ou desenhos quando se voltam para nossas cidades históricas. Reconheço que meu trabalho como pintor é, digamos, um desdobramento de minha atividade de arquiteto. Apesar de amar Brasília e me sentir muito bem nela, resolvemos, eu e Beatriz, fazer outra morada, a mais singela possível, e escolhemos a cidade de Pirenópolis, de onde se origina parte de minha família. Temos sido bastante felizes lá e minha mulher pode fazer o que sempre desejou - lidar com a terra e plantar um pomar-jardim. Lá tenho um pequeno atelier e, no momento, além de trabalhos de pintura, principalmente da cidade e imediações, estou preparando um livro sobre 3 artistas naïfs que vivem lá e um livro encomendado pelo IPHAN sobre Pilar de Goiás, cidade que também nasceu no ciclo do ouro e teve seu fastígio no século XVIII. No mês passado, orgulhosamente, recebi o título de Cidadão Pirenopolino, que me foi outorgado pela Câmara de Vereadores.
 
AULA MAGISTRAL DO DOUTOR HONORIS CAUSA
 
  1. Na oportunidade, antes de tudo, gostaria de uma retificação: o verdadeiro fundador do curso de arquitetura foi meu amigo e irmão de ideais Amaury Menezes. Fui, no máximo, um cofundador, juntamente com o Frei Nazareno Confaloni, essa maravilhosa figura que Florença nos entregou e que provocou a eclosão do movimento moderno das artes plásticas em Goiás. Essa criação revestiu-se de conteúdos utópicos: queríamos uma escola, antes de tudo, de confraternização e de trocas de pensamento. Não nos interessava muito a estrutura burocrática do curso, interessava-nos o élan de professores e alunos. Desejávamos que fosse especialmente uma escola experimental, sempre experimental, permanentemente experimental. Seria, provavelmente, uma certa afronta à pedagogia e a uma didática excessivamente acadêmicas, mas o tempo certamente poliria as arestas mais agudas.
 
VOCAÇÃO ACADÊMICA
 
  1. Durante toda a minha vida sempre me julguei vocacionado para a vida acadêmica. Os fatos me impediram de atingir tal objetivo. Imaginem, então, os senhores a minha alegria quando me resgataram agora essa pretensa vocação de maneira tão honrosa. Concederam-me um galardão, "Doutor Honoris Causa". Com toda a sinceridade, não sei se mereço, mas doravante farei um grande esforço para fazer jus a essa honraria. Só não prometo diminuir minha inquietação de um permanente rebelde.
 
HOMO CERRATENSIS
 
  1. No entanto, um atributo podem me conceder: fui sempre envolvido com a cultura goiana em todos os seus ângulos e faces. Como arquiteto, desenhista, pintor e escritor, sempre mantive os olhos voltados para esse polígono geográfico de tantos lados, o Planalto Central do Brasil. Considero-me um autêntico homo cerratensis. Não vai nisso nenhum regionalismo exacerbado, mas a preocupação que se reconheça que temos por cá uma natureza e uma cultura com características próprias, dignas de serem preservadas e estudadas. Essa minha atitude se reflete clara e principalmente nos meus trabalhos como pintor - contrariando as tendências da moda e as extravagâncias que a mídia, ávida pelo insólito, divulga. Adotei, com muita consciência, um trabalho de características documentais, seja de nossa arquitetura do passado, seja da nossa natureza, especialmente do cerrado, que me entusiasmam e comovem. Reivindico e defendo essa postura de mergulho no que faz parte das minhas vivências e convivências. Assim, lembro a expressão de Tolstoi: "se queres abordar o universal, veja tua aldeia.
 
GLOBALIZAÇÃO
 
  1. Estou convicto que a globalização é o nome de uma disfarçada americanização. Entre parêntesis: quero deixar claro, tenho o maior respeito e admiração pela civilização e cultura americanas, mas não pela sua política externa, que para nós sempre foi constituída de interferências obscurantistas, desrespeitosas e interesseiras. Temo, repito, que essa apelidada globalização conspurque nossa cultura, que começou talvez há 10.000 anos, que é o tempo em que o homem caminha por essas paragens, pela nossa Pindorama, paraíso para sempre perdido. A chegada aqui do branco, fato e acidente histórico revestidos de uma violência que toca as raias do genocídio, não foi uma "descoberta" (nada estava escondido ou inexistia), mas uma invasão, que transformou a cultura indígena e amalgamou-a com a europeia e a africana, mudando um perfil de comportamento social, cultural e econômico ingênuos e primitivos, mas com enormes valores humanos que, hoje, talvez tardiamente, reconhecemos. Entretanto, infelizmente não temos competência para ser índios! Estou plagiando o mestre Washington Novaes, mas, como dizem os espanhóis, o plágio só é crime quando envolve derramamento de sangue.
 
ANTROPOFAGIA
 
  1. Em hipótese alguma considero que nós brasileiros devamos recusar as informações culturais e tecnológicas que nos enviam, ao contrário, devemos acolhê-las com sofreguidão e agradecidos. Porém, creio que, principalmente, devemos adotar o comportamento defendido por Osvald de Andrade, um dos criadores da Semana de Arte Moderna de 22, a antropofagia. Segundo o escritor e pensador paulista, devemos imitar o gesto dos tupiniquins, que devoraram o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha quando chegou, naufragado, às costas da Bahia. Foi devorado e completamente digerido; foi um repasto totêmico para adquirir as qualidades e os méritos de tão ilustre figura, mas sem que os deglutidores perdessem sua identidade. Era uma questão de "tupi or not tupi". (Que o nosso santo Bispo perdoe ao Osvaldo de Andrade e a mim pela irreverência! )
 
HABITAR O PLANALTO CENTRAL
 
  1. Nós habitamos, aqui no Planalto Central do Brasil, um espaço que tem manchas diversificadas de ocupações urbanas, representando pontos altos da criatividade humana: Goiás, Pirenópolis, Corumbá de Goiás, Pilar, Goiânia e Brasília. Esta última, em escala maior e com edificações mais conspícuas. Acho isso inédito, isto é, ter à nossa disposição, à nossa vista, experiências às vezes paradigmáticas, aparentemente antagônicas, de ocupação territorial. Nossas cidades históricas nos oferecem o passado colonial barroco e uma arquitetura vernácula. Goiânia, uma intenção de nos introduzir, à época, na vida moderna, que, infelizmente, teve e tem seu desenvolvimento em grande parte prejudicado pela especulação imo-biliária. Finalmente, temos Brasília - uma proposta utópica e exemplar que ainda não se esgotou, uma grande contribuição ao Brasil do futuro, uma lição de organização espacial que pode conduzir a uma situação de plenitude na vida urbana. As invenções surpreendentes e encantadoras da superquadra e das unidades de vizinhança (infelizmente não ultimadas) estão abertas e expostas ao nosso estudo. O urbanismo e a arquitetura de Brasília, em vista da sua importância como proposta física e espiritual, podem, diríamos, quase configurar uma disciplina acadêmica.

PRESENTE DO FUTURO
 
  1. Não nos assustemos com a longa abrangência de tempo em que as coisas ocorreram - Brasil colonial e Brasil de hoje, isto é, "antigo" e "moderno "; lembremo-nos do conceito de tempo do velho Santo Agostinho nas Confissões: o passado, o presente e o futuro não existem, o que existe é o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.
Assim, as universidades que se situam nesta região, principalmente a Federal e a Católica, que não possuem a vocação de caixas registradoras, têm a oportunidade de viver num laboratório vivo ao alcance de nossas mãos para que estudemos as questões do viver urbano, dos fatos construtivos e dos caminhos arquitetônicos. Com isso é possível libertarmo-nos do eixo Rio-São Paulo que há muito e ainda hoje tem criado obstáculos ao desenvolvimento, impedindo-nos de alcançar o sonho de criar o Brasil não litorâneo. Esse Brasil litorâneo é nossa herança do colonialismo português, que necessitamos corrigir: éramos unicamente produtores de matéria-prima exportável para a Europa. Deixemos de ser caranguejos de praia que, inclusive, andam de lado.
 
ARQUITETURA DA UTOPIA
 
  1. Esta Universidade, por intermédio de muitas iniciativas, tem buscado ver esse panorama, mas, de maneira ambiciosa, sonho vê-la tomar um rumo mais integrado e amplo. Vejo, por exemplo, um papel importante para os estudantes de arquitetura e relembro que nós arquitetos somos, em primeiro lugar, por tradição e definição, profissionais da área, sobretudo, das ciências humanas. Nossas relações com a tecnologia são de instrumentos para viabilizarmos nossas ideias e não cerne operacional. Deveremos ser mestres das obras e lidadores do tectônico, do arqui-tectônico, e não fabricantes de máquinas de morar.

  1. Aqui emerge uma saudade dos tempos de estudante de arquitetura, quando achávamos que mudaríamos o mundo com ela. Delicioso e, acho eu, profícuo utopismo: as utopias nos são indispensáveis, infelizes os tempos que não as contemplem. Sonho ver os cursos de arquitetura de nosso país como um vasto laboratório de estudos quanto ao destino de nossos espaços construídos e não simples máquina expedidora de diplomas, como vejo nas universidades caça- níqueis que proliferam no Brasil. Acho mesmo que deveríamos, à exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil, submeter esses portadores de diplomas a exames de capacidade, aliás como fazem outros países, e não permitir que a profissão seja adulterada e empobrecida por formação em meia-confecção.
 
PRESENTE DO PASSADO
 
  1. Por outro lado vejo com satisfação que alguma coisa está sendo feita aqui, resultando em produtos culturais onde nossas cidades e nossa arquitetura são

debatidas e analisadas com muita proficiência. Queria, à oportunidade, lembrar aqui o nome venerável de Dom Fernando Gomes dos Santos, este homem extraordinário, representante do que de melhor tem a nossa igreja e que foi o fundador desta universidade. Desejo também lembrar, com carinho, a figura desse inesquecível sacerdote que foi o Padre Cristobal Alvarez, reitor à época da criação do curso de arquitetura, autêntico soldado de Cristo, que teve uma particular afeição e entusiasmo pela iniciativa de criação do curso.
 
  1. Finalmente, quero dizer: acho que tudo que fiz na minha vida foram coisas pequenas, na dimensão de minha capacidade e com os poucos talentos que me foram entregues e que não enterrei, mas as fiz, podem estar certos, com honestidade e da melhor maneira possível. E mais: as fiz com sincero regozijo espiritual. Por outro lado, poderia dizer como Fernando Pessoa: "Tudo que fizemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensamos em fazer".
 
MINHA BEATRIZ
 
  1. Olhando daqui vejo, com alegria e bem-querer, os rostos dos meus amigos e parentes, mas, sobretudo, vejo o rosto de minha Beatriz, companheira de 54 anos, na alegria e na dor. Ela é, especialmente, esposa, mãe, avó e sogra na plenitude das expressões. E, em especial, meu grilo falante.
  1. Me perdoem se não fui muito acadêmico nesta fala. Muita idade e pouco juízo me induziram a isso.
 
Elder Rocha Lima


*Yuri Baiocchi é poeta, pesquisador e marchand
 
 

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