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Gismair Martins Teixeira

Roberto Carlos e o zeitgeist de Moby Dick

| 23.10.24 - 19:18
 
No dia 24 de outubro Goiânia comemora os 91 anos de sua fundação. Dentre as diversas solenidades comemorativas agendadas, a cidade receberá o show de um dos mais importantes nomes da Música Popular Brasileira, o cantor Roberto Carlos. Com uma atividade artística que já se conta por décadas de atuação, o cantor fará uma apresentação com base em seu vasto repertório, de onde pinçará canções que seu imenso público conhece de cor.
 
Roberto Carlos possui uma curiosa e pouco comentada relação intertextual com a literatura através de suas letras musicais, que se contam às centenas. Essa relação remete a uma temporalidade artística que transcende, muitas vezes, a datação, remetendo a categorias culturais instigantes, como por exemplo uma referencialidade ao termo zeitgeist, que o filósofo alemão Friedrich Hegel popularizou a partir de sua língua natal e que aparece conceitualmente nas páginas de sua obra clássica intitulada “Filosofia da História”. Usado de forma esporádica na literatura germânica até a publicação do tratado hegeliano, zeitgeist significa literalmente, em português, espírito de época. É o conjunto de características culturais de um tempo em todos os departamentos da vida social alusivos a uma geração.
 
A literatura canônica, além das demais expressões artísticas, encarrega-se de registrar os marcadores culturais que vão caracterizar o zeitgeist de uma era. A obra-prima será aquela produção que conseguirá fugir aos marcos de um tempo, apresentando aspectos que a farão transcender ao datado. Ao comentar sua obra “Sombras de Reis Barbudos”, de 1972, por exemplo, o escritor goiano José J. Veiga ressalta o cuidado que o autor deve ter para que sua produção não se torne um produto com data de validade, pois esse romance veigaiano alegorizou em sua narrativa aspectos que foram lidos como uma referência tácita ao regime militar instaurado em 1964 no Brasil. Trata-se disso também, mas não é só, conforme o próprio J. Veiga ressalta.
 
Neste contexto, no ano de 1851 era publicado nos Estados da América o portentoso romance que viria a tornar-se um clássico da literatura norte-americana, “Moby Dick”. De autoria de Herman Melville, o extenso relato do narrador que embarca em um navio caçador de baleias se caracteriza por um profundo zeitgeist derivado da prática econômica do século 19: a pesca baleeira com a finalidade de movimentar a indústria de óleo desse animal que possuía diversas aplicações práticas, sendo a principal delas a iluminação pública das grandes cidades cujas lamparinas tinham seus pavios umedecidos no espermacete, uma variedade do óleo do grande cetáceo dos oceanos mundiais.
 
Com a finalidade de narrar a rotina dos corajosos e aventureiros marujos que se lançavam ao mar alto sem grande parte dos recursos tecnológicos dos dias atuais, Herman Melville leciona ao longo das centenas de páginas de seu extenso romance as filigranas da profissão de baleeiro daquele tempo, sondando as motivações dos integrantes do Peaquod, o navio que enfrentará uma exótica cachalote branca que dá nome à obra. Moby Dick é a baleia gigantesca e alva, figura ímpar entre os da sua espécie, que Ahab, o capitão que teve sua perna parcialmente devorada por ela, caça com um ódio feroz e cego, fechando-se a todas as sugestões de prudência de conselheiros e marujos que gostariam apenas de experimentar o básico de sua profissão, e que se constituía em conseguir o máximo possível de baleias e voltar para casa com um bom suprimento de óleo e carne para lucrar e levar a vida da melhor maneira possível.
 
Entre o insano projeto de vingança do capitão do Peaquod e a economia movida a óleo de baleia do século 19, Herman Melville constrói um clássico que escapa à datação por conta desse etos todo particular do ser humano, a loucura de levar ao extremo a vingança contra um ser da natureza que se move unicamente por instintos, sem qualquer traço de racionalidade ética. No vão desse abismo de insanidade, o escritor norte-americano apresenta um perfil detalhado da economia e do conhecimento de seu tempo em torno do imenso ser marítimo, comparado profusamente ao leviatã bíblico.
 
A imersão na exuberante narrativa transporta o leitor àquele período em que o óleo de baleia era fator essencial na economia, instaurando em seu ânimo a solidariedade àqueles marujos que muitas vezes perdiam suas vidas nos azares da profissão e no confronto com os gigantes dos mares. O tempo passou, a economia sofreu incontáveis transformações em sua logística. Na atualidade, a prática de caça baleeira já não mais serve para iluminar cidades. No ânimo coletivo a atividade se tornou repulsiva por sua flagrante violência. O zeitgeist da atualidade é, neste contexto, totalmente contrário ao que Herman Melville apresenta em “Moby Dick”.
 
As demandas econômicas, que sempre afetam a natureza diretamente, continuam presentes, mas já não têm mais nas baleias um dos principais alvos. Instituições de proteção a elas surgiram ao longo dos anos. Neste contexto, artistas têm se dedicado à natureza, colocando seus talentos à disposição com a finalidade de proteção dos recursos que vão tornando-se cada vez mais escassos, num mundo que caminha a passos largos para a insustentabilidade que, se não for contida, selará um destino terrível para a humanidade.
 
No Brasil, o cantor Roberto Carlos tem pautado sua longa carreira por uma dinâmica de defesa dos bens naturais em várias de suas canções. Diversos hits seus têm na natureza, em suas diversas expressões, a sua temática. No ano 1981 este importante artista da Música Popular Brasileira lançou de sua parceria com Erasmo Carlos a música intitulada “As Baleias”. Com base na referencialidade, pode-se dizer que a letra dessa música se caracteriza como um intertexto implícito ao romance de Herman Melville. O zeitgeist, no entanto, difere completamente. Se em “Moby Dick” o autor traça o perfil do marujo baleeiro como sendo o de verdadeiros heróis em suas caças predatórias à baleia, em sua música de defesa desses animais extraordinários Roberto Carlos estabelece um diálogo com eles, baleeiros, invectivando a sua prática profissional como sendo a de alguém que precisa tornar-se consciente dos males causados à natureza.
 
Canta o ídolo do movimento musical conhecido como Jovem Guarda, dos anos 60: “Não é possível que você suporte a barra/De olhar nos olhos do que morre em suas mãos/E ver no mar se debater no sofrimento/E até sentir-se um vencedor neste momento//Não é possível que no fundo do seu peito/Seu coração não tenha lágrimas guardadas/Pra derramar sobre o vermelho derramado/No azul das águas que você deixou manchadas//Seus netos vão te perguntar em poucos anos/Pelas baleias que cruzavam oceanos/Que eles viram em velhos livros/Ou nos filmes dos  arquivos/Dos programas vespertinos de televisão/O gosto amargo do silêncio em sua boca/Vai te levar de volta ao mar e à fúria louca/De uma cauda exposta aos ventos/Em seus últimos momentos/Relembrada num troféu em forma de arpão”.
 
Curiosamente, o arpão é descrito por Herman Melville em minúcias impressionantes, numa autêntica fetichização desse instrumento de morte para as baleias. Trocadilho à parte, a intertextualidade de Roberto Carlos com a literatura é, de fato, algo a ser investigado com mais detalhes.
 
Gismair Martins Teixeira é Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras pela UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da SEDUC-GO.
 

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