Como escrever sobre este norte americano de origem chinesa (Ha Jin) para o público brasileiro que lê pouco sobre o Extremo Oriente? Eis o meu dilema, ao começar este artigo. A questão central que quase me faz desistir deste artigo, quando iniciei a escrita, pensando a China, e esta série de artigos como um esforço de divulgação da literatura asiática (Japão, Coreia inclusas) – coisa que faço há cinco anos.
Embora não seja muito tempo, é um período intenso. Leio sobre os eslavos há muito mais tempo, sobre os europeus há mais que o triplo, mas os escritores asiáticos representam uma paixão recente de leitura. E tento transmitir essa paixão de modo racional sem perder a emoção.
Inicialmente, há uma contenda entre Oriente e Ocidente, que tentei resolver em artigos anteriores, evocando André Malraux, excepcional autor francês e apaixonado pelo Oriente, para entender as diferenças do que ele intitulou Tentação do Ocidente: “Nada poderia melhor que os nossos sonhos esclarecer a diferença que separa nossas sensibilidades. Se sonhamos é apenas para pedir aos nossos sonhos a sabedoria que nos recusa a vida. A sabedoria, e não a glória. “O movimento no sonho” – escrevia o senhor. Eu respondo-lhe: a calma no sonho”. (...) Por muito singular que tal possa parecer-vos [o respeito que ele inspira] o Chinês imagina, se posso exprimir-me assim, sem imagens. É isso que o faz ater-se à qualidade e não à personagem. É por isso que a ideia do mundo, esse mundo que ele não poderia imaginar, corresponde para ele a uma realidade.”
Este trecho de uma carta do chinês Ling ao francês A.D. no livro de Malraux pode ser uma chave para entender o que podemos falar após lermos os livros chineses, que resgatam a força do sonho e o contraste com a realidade, às vezes dura, implacável e insuperável. É o caso de um chinês que se fez cidadão norte-americano por não aguentar mais a realidade autoritária de seu país (Ha Jin). A narrativa é antes, e sobretudo, um realismo que choca os ocidentais, mas a vida do autor é, certamente, mais chocante.
Em "Waiting" (Espera), Ha Jin aborda de maneira intensa e profunda os conflitos familiares e pessoais que surgem devido às circunstâncias externas, como políticas e sociais, que impactam diretamente as vidas dos personagens. O romance narra a história de Lin Kong, um soldado chinês que se vê preso em um casamento sem amor enquanto anseia por se casar com outra mulher, mas é incapaz de obter o divórcio de sua esposa atual devido às restrições burocráticas e políticas do regime chinês.
Os conflitos familiares em "A espera" são exacerbados pela espera prolongada e pela sensação de impotência dos personagens diante das circunstâncias. Lin Kong, por exemplo, é retratado lutando contra suas próprias emoções e desejos, confrontando as expectativas sociais e as limitações impostas pelo sistema. Sua esposa, Shuyu, representa a outra face desse conflito, mostrando a resignação e a amargura de uma mulher que não consegue compreender ou aceitar o desejo de Lin Kong por outra mulher.
Ha Jin utiliza esses conflitos familiares para explorar temas mais amplos, como a tensão entre o individualismo e as expectativas sociais, o peso das tradições e o impacto das decisões pessoais em um contexto cultural e político particularmente repressivo na era Mao Zedong. Ha Jin captura as complexidades das relações familiares e os dilemas morais enfrentados pelos personagens de uma maneira que ressoa universalmente, mesmo que o cenário seja profundamente enraizado na realidade específica da China contemporânea. As questões do relacionamento problemático entre Lin, Shuyu e Manna são universais e ganham eco nas teorias do francês René Girard sobre o triângulo amoroso, embora o amor ali esteja em falta em todos os vértices.
É possível concluir que "A espera" não é apenas um drama familiar, mas uma exploração detalhada dos conflitos interiores e das dinâmicas de poder que moldam as vidas dos personagens, revelando as profundezas da psicologia humana sob circunstâncias adversas, sendo que no caso específico a mão pesada do Estado (e do partido Comunista Chinês), decidem sobre o bem e o mal, enfim, sobre a felicidade de nossos personagens.
Ha Jin, cujo nome verdadeiro é Jin Xuefei, é um renomado escritor chinês-americano. Ele nasceu em 21 de fevereiro de 1956 em Liaoning, China1. Do pseudônimo que ele usa, o “Ha” foi adotado em homenagem à sua cidade favorita, Harbin1. Ele cresceu na China durante o caos da implantação do comunismo, e foi para o Exterior com uma bolsa de estudos na Universidade Brandeis (EUA). Com os protestos dos estudantes na Praça Tiananmen em 1989, seguido da forte repressão do governo chinês aos estudantes, o autor se convenceu a emigrar para os Estados Unidos, passando a escrever em inglês "para preservar a integridade de seu trabalho".
No mestrado em uma universidade americana teve como um dos seus mentores o crítico literário Eugene Goodheart. Ha Jin é conhecido por ambientar muitas de suas histórias e romances na China, na cidade fictícia de Muji. Ele ganhou o National Book Award for Fiction e o PEN/Faulkner Award por seu romance, “Waiting” (A espera, em 1999), além de três prêmios Pushcart para ficção e um prêmio Kenyon Review.
“A Espera” é uma triste narrativa sobre um divórcio que demorou 18 anos para se concretizar, e cujo estilo realista, típico da ficção chinesa, chega aos ouvidos do Ocidente como algo novo e original, às vezes cansativo e enovelado demais, porém bem oriental. Aqui ele narra as vidas de suas personagens ao longo de várias décadas de mudanças políticas e sociais na China1. O livro conta a história de Lin Kong, um militar-médico que tenta se divorciar de sua esposa, Shuyu, durante 18 anos, para poder se casar com Manna Wu, uma jovem enfermeira do hospital onde trabalha1. Durante estes longos anos, Lin Kong e Manna Wu mantêm um relacionamento sem contato corporal.
O livro explora temas como o medo da solidão, as armadilhas da honestidade, a fragilidade dos vínculos familiares, a força da internalização das normas sociais e a inexistência de privacidade numa sociedade vigiada, tornando-se um retrato vívido e comovente da vida de seres humanos na China de grandes mudanças e repressões. Ha Jin explora com sensibilidade as complexidades do amor, do casamento e da lealdade em uma sociedade que valoriza a conformidade acima da individualidade.
O livro também destaca a luta entre o desejo pessoal e a obrigação social, e a dificuldade de equilibrar as duas coisas sob um regime autoritário. Por isso, é uma leitura envolvente, porém enovelada, mas emocionalmente rica que oferece uma visão única da vida na China moderna. A escrita de Ha Jin é clara e evocativa, um pouco alongada para os padrões do romance atual, mas suas personagens são profundamente humanas e aceitáveis. Este livro é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada em literatura chinesa contemporânea ou em histórias de amor complexas e emocionalmente carregadas.
Leia também:
A China vista pela leitura (Parte1)
A China vista pela leitura (Parte 2 A)
A China vista pela leitura (Parte 2 B)
Adalberto Queiroz é jornalista e poeta, membro da Academia Goiana de Letras e autor de Os fios da escrita (ensaios literários, 2017)