Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 14º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Adalberto de Queiroz

A China vista pela leitura (Parte 2 A)

| 08.06.24 - 18:57

Capa do livro Viver (Foto: Reprodução)

Neste segundo artigo desta série em que lanço meu olhar para o Império do Centro, a grande China, a partir dos livros, tenho sobre a mesa “Viver ”, do celebrado Yu Hua (nascido em Hangzhou em 1960), o primeiro escritor chinês a receber o Prêmio James Joyce Award em 2022, além de outras importantes distinções internacionais. 
 
De forma bem-humorada, ele diz que se tornou escritor porque estava cansado de ser dentista prático e não queria passar a vida examinando a boca dos seus clientes. Optou por expor sua alma em livros que são um sucesso em todo o mundo, o que fez dele talvez o mais influente autor chinês, ao lado de Mo Yan.
 
Desde 1983, Yu Hua dedica-se inteiramente à escrita, primeiramente em um grupo de escritores vanguardistas e depois tomando seu próprio caminho, com uma missão de mostrar a história da China ao mundo. e publicou cinco romances, seis coleções de contos e cinco ensaios, e já foi traduzido para mais de 45 idiomas. 
 
Entre suas obras mais importantes estão Irmãos, Crônica de um vendedor de sangue e China em dez palavras (já disponíveis em português) e Cries in the Drizzle, The Seventh Day (não traduzidos). Por sua obra, Hua recebeu inúmeros prêmios e distinções internacionais, incluindo o Prêmio Grinzane Cavour (1998), Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres (2004), Prix Courrier International (2008) e Giuseppe Acerbi Literary International Prize (2014). O diferencial entre todas essas comendas, é que ele ter sido o primeiro escritor chinês a receber o prêmio James Joyce (2022).
 
“Viver” (título que deveria ser traduzido por “Vivendo”) deu origem ao filme de mesmo nome, dirigido por Zhang Yimou e foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri de Cannes, BAFTA Awards, entre outros. O livro pode ser considerada uma espécie de "autobiografia", na qual a vida do protagonista Fugui é repassada, num raconto feito por ele próprio a um coletor de histórias rurais, um andarilho que é o narrador anônimo (e onisciente) que nos conduz pela história do protagonista.
 
“Quando eu era dez anos mais moço, consegui um trabalho fácil. Tinha de ir ao interior recolher músicas folclóricas. No verão daquele ano, eu era comum pardal sem rumo, vagando pelas lavouras repletas de sol e cigarras. Eu gostava do chá amargo dos camponeses. 
(...) 
 
“Quando encontrei um velho chamado Fugui, o verão começara havia pouco. Naquele início de tarde, me instalei sob a copa enorme de uma árvore...Essa pessoa dez anos mais jovem do que sou hoje, deitada entre as folhas e a relva, dormiu cerca de duas horas...Acordei do meu sono profundo. Escutava claramente uma voz e, ao me levantar, vi um velho ralhando com um búfalo que estava numa lavoura próxima.”
(...)
 
“- Sendo búfalo, are o campo; sendo cachorro, zele pela casa; sendo monge, peça esmolas; sendo galo, anuncie o amanhecer; sendo mulher, teça o pano. Qual o búfalo que não ara o campo? Essa é a ordem natural das coisas, desde a Antiguidade. Ande búfalo, ande! – o búfalo, cansado dos gritos do velho, pareceu reconhecer seu erro. Levantou a cabeça e, puxando o arado, pôs-se a andar para a frente.”
 
Sentados embaixo da copa de uma árvore, o andarilho (como a cigarra da fábula) e Fugui (como a formiga), “naquela tarde radiante de sol”, tornam-se o narrador e protagonista a nos desvendam a história da vida de um velho chinês, repassando quarenta anos da história pessoal, familiar e, por que não, de seu próprio país. 
 
É, pois, a partir dessas viagens às áreas rurais, onde o ofício do narrador anônimo era coletar canções folclóricas que somos levados à imersão nas histórias de Fugui. Por esta razão que o texto desta "autobiografia oral" é tornado simples como se estivéssemos ouvindo um camponês com pouca (ou nenhuma) instrução formal, mas com a sabedoria popular que se veio acumulando entre erros e acertos, tipificando-o como um típico “herói problemático”.
 
Sabe-se que a história oficial não pode nem está interessa em registrar todas as "figuras românticas", heroicas de um país. Como pode haver espaço para separar um grupo tão grande de pessoas e escrever sobre elas como indivíduos? Essa lacuna só pode ser preenchida pela literatura – daí, a França de Stendhal, de Flaubert ou Proust não ser jamais a França oficial; ou tal como o Brasil de Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos (para pegar dois arcos tão diferentes da nossa criativa literatura) elaboram um país na nossa imaginação (de leitores), sem perder o pano de fundo das “histórias oficiais”.
 
De modo similar, vemos esse resultado alcançado pelo autor de “Viver”. Ele trouxe uma pessoa comum para o centro da narrativa da turbulenta história chinesa num arco de quarenta anos, tomando alguns exemplos do que poderia ser chamado de “a escória humana”, que a história oficial relega ao esquecimento ou trata como estatística, para, habilidosamente, moldá-lo como o barro criador de seu registro romanesco, a partir da própria força de Fugui. 
 
Essa espécie de autobiografia oral mantém escondidas as figuras românticas de heróis clássicos, pois se ocupa dos humilhados e ofendidos, dos que sobrevivem seguindo regras e até mesmo ao recrutamento forçado, que faz de Fugui um soldado do exército nacionalista que quase perde a vida nos embates dos nacionalistas na guerra civil, em luta contra os comunistas, que culmina com a tomada do poder por Mao Zedong.
 
Assim, Fugui nos conta como sobrevive aos principais eventos históricos nos últimos quarenta anos, através de um narrador anônimo nascido da pena habilidosa (e realista) de Yu Hua, mesmo que a realidade sirva apenas como pano de fundo da narrativa: a rendição do Japão, a Guerra de Libertação, a reforma agrária, as comunas populares, o Grande Salto e a produção de Aço (que leva ao confisco de panelas nas aldeias e cidades), os Dez Anos de Desassossego e o Sistema de Responsabilidade do Contrato Doméstico, a Grande Fome e as filas para buscar comida no refeitório comunal. 
Continua... (leia a parte 2 deste artigo amanhã)

Leia mais:
A China vista pela leitura (Parte1)


Adalberto Queiroz é jornalista e poeta, membro da Academia Goiana de Letras e autor de Os fios da escrita (ensaios literários, 2017)
 

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:
Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351