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América do Sul

Crise no Equador é resultado de “tempestade perfeita", avaliam especialistas

País enfrenta conflito armado com narcotráfico | 22.01.24 - 10:26 Crise no Equador é resultado de “tempestade perfeita", avaliam especialistas (Foto: Exército Equatoriano/X)José Abrão
 
Goiânia – A crise na segurança pública no Equador tomou o noticiário mundial nas últimas semanas. As imagens de criminosos ligados ao narcotráfico sequestrando participantes de um programa de televisão da TV estatal chocaram os brasileiros que, em sua maioria, sequer imaginavam que nosso vizinho sul-americano passa por uma situação tão precária. Pouco depois do início das atos, o presidente equatoriano, Daniel Noboa, botou o exército na rua, decretou toque de recolher e outras medidas. Além disso, declarou “conflito armado interno” no país. Mas como o Equador chegou nessa situação e como a crise no país pode afetar o Brasil?
 
Segundo Rabah Belaidi, professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Goiás (UFG), o Equador não era um país muito violento e, na verdade, até hoje não faz parte da produção do tráfico internacional de drogas. O que ele é, na realidade, é uma rota para os países vizinhos Colômbia, Peru e Bolívia escoarem a cocaína produzida. “Nos últimos anos o Equador se tornou, vamos dizer, o hub do transporte aéreo do tráfico de drogas. Mais da metade da droga que está na Colômbia passa pelo Equador”, explica.
 
Segundo o professor Camilo Pereira Carneiro, do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (Iesa/UFG), o Equador é um país exportador de petróleo e há uma dependência do país em relação a esse único produto, o que gera uma fragilidade econômica muito grande. “É um país que tem poucas oportunidades de trabalho para os seus habitantes. Não por acaso, o Equador tem uma enorme diáspora em países como a Espanha e os Estados Unidos. Tem grandes quantidades de equatorianos vivendo fora do país por conta das dificuldades existentes lá. O Equador tem 18 milhões de habitantes e 27% da população vivendo abaixo da linha de pobreza”, pontua. 
 
Essa precariedade socioeconômica aumentou desde meados da década passada, com a instauração de governos neoliberais em sequência e crises políticas e institucionais permanentes. Outro fator econômico que agravou a situação foi a dolarização da economia ainda nos anos 2000. Isso contribuiu, na visão do pesquisador, para um cenário de “tempestade perfeita”. “Você vai ter um país em crise, que não oferece alternativas à população, um Estado ausente e que não consegue garantir a segurança da sua população, e que os grupos criminosos ligados aos cartéis estrangeiros operam livremente por meio de corrupção policial, judicial e no governo”, resume o professor Camilo.


Daniel Noboa (centro) instaurou Conselho de Segurança junto ao Exército (Foto: perfil de Noboa no X)
 
Camilo salienta que desde 2017 os governos equatorianos que passaram pelo poder investiram integralmente e sem sucesso em repressão, levando a uma escalada da violência que culminou na crise deste ano, aprofundando a insegurança da população e das instituições. Nos últimos cinco anos, conforme o poder das gangues cresceu, houve sucateamento e enfraquecimento das forças de segurança e das políticas educacionais no Equador. No primeiro semestre de 2023, foram 3.513 assassinatos no país. Apenas em 2023, foram 770 assassinatos de crianças e adolescentes. Entre 2016 e 2022, o país passou de seis homicídios por 100 mil habitantes para 25 por 100 mil.

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Enfraquecimento das instituições
O professor Giovanni Okado, do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Puc Goiás), é especialista em crime organizado na América Latina e hesita, porém, em chamar o Equador de um “narco-Estado”, termo cunhado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para se referir a um país que teve todas as instituições penetradas pelo narcotráfico. Na visão dele, termos como esse ajudam a justificar medidas radicais. “No Equador, por exemplo, a solução radical hoje passa pelo combate militarizado das organizações criminosas em uma série de decretos de estado de exceção”, cita. 
 
Usar medidas de exceção para combater o narcotráfico pode virar uma bola-de-neve que arrisca culminar em um regime ditatorial. “Eu acho que o combate militarizado ao narcotráfico e, de maneira geral, ao crime organizado nunca é a melhor opção”, avalia Giovanni. “Eu acho que essa é a resposta mais visível do ponto de vista político, de que o governo está agindo de maneira enérgica para evitar que o problema se torne ainda pior. Historicamente falando, sempre que houve o combate militarizado às organizações criminosas na América Latina, o resultado sempre foi mais violento”, lembra. “Eu chamo os militares como bombeiros para apagar um incêndio, mas não crio as condições para evitar que o incêndio comece novamente”, afirma. 
 
“O penúltimo presidente do Equador, se não me engano, decretou mais de 20 vezes o estado de emergência. Aí que a gente entra no centro da questão. Se trata de uma guerra civil ou se trata de um caso de delinquência comum? Juridicamente, a resposta deve ser uma resposta policial de direito comum. Só que a situação é tão despreparada, o descaso é tão alto, que os governos preferem, para tranquilizar a população, chamar o exército, como se fosse uma guerra”, avalia Belaidi. O professor chama atenção para o fato de que o Noboa classificou 22 gangues como grupos terroristas, o que ele percebe como verdadeiro até certa medida, mas que serve, de certa forma, como uma legitimação pública para validar medidas mais duras de exceção, como o uso da força militar e de leis marciais.

Os professores Rabah Belaidi, Giovanni Okado e Camilo Pereira (Foto: acervo pessoal)
 
Como a crise pode afetar o Brasil
Para Camilo, a crise no Equador pode levar a um influxo de imigrantes daquele país para o Brasil, já que o Equador serve de principal rota de entrada para imigrantes venezuelanos e haitianos pelo Acre. O agravamento social do vizinho pode atrair equatorianos para o Brasil como forma de fugir da crise instaurada. “O Brasil tem um histórico de garantir vistos humanitários. O Itamaraty já tem essa expertise lidando com migrantes do Haiti e da Venezuela. O Equador pode entrar nessa equação nos próximos meses”, diz Camilo.
 
Mas medidas de exceção no Equador também preocupam o cenário brasileiro em que, em nome da segurança, possamos abrir mão de direitos. “Há uma criminalização do social. Existem, aos poucos, muitas medidas que são colocadas em diversos sistemas jurídicos para fragilizar o direito de defesa dos manifestantes e permitir uma atuação da polícia cada vez mais intensa. Isso  é uma tendência que é vista não só no Brasil, mas em vários estados tidos como democráticos. Com certeza devemos ser muito vigilantes e a sociedade civil deveria fiscalizar isso”, avalia Belaidi.
 
Soluções
Os professores concordam que não há uma resolução a curto prazo, mas há caminhos possíveis de serem percorridos que passam necessariamente pela reforma do sistema prisional, fortalecimento das forças de segurança pública e investimento público em áreas de base como obras de infraestrutura, saúde, saneamento básico, moradia e educação. Não há qualquer indicativo, porém, que o governo Noboa vá adotar qualquer medida nesse sentido.
 
“A população mais pobre não tem muitas alternativas e acaba sendo cooptada por esses grupos criminosos que têm mais de 200 mil membros no Equador hoje”, conta Camilo. “No primeiro momento, o governo deveria fortalecer a autoridade policial e combater a corrupção para, num segundo momento, atender essa população que fica muito vulnerável na ausência do Estado”, completa.


Alguns dos invasores do estúdio de TV presos no mesmo dia no Equador (Foto: Exército Equatoriano/X)
 
“O sistema prisional do Equador hoje é uma verdadeira máquina de fazer bandido. A própria história das organizações criminosas no Equador demonstra que o sistema penitenciário equatoriano acabou fortalecendo cada vez mais as lideranças e as organizações criminosas. Acho que uma reforma do sistema prisional é a primeira medida”, avalia Giovanni. O segundo passo seria resolver os problemas institucionais do próprio governo.
 
“Sem resolver os problemas institucionais, os problemas políticos pelos quais o Equador tem passado nos últimos anos tendem a continuar. Dificilmente as organizações criminosas vão deixar de ter um peso importante na própria sociedade. É um dos principais fatores que têm gerado crise na segurança pública e que leva aos decretos de exceção. São medidas extremas”, completa o pesquisador.
 
Desde quando Daniel Noboa declarou conflito armado interno no dia 9 de janeiro, um promotor foi assassinado; um juiz acusado de corrupção foi preso; 1.105 criminosos foram presos e o governo afirma ter desbaratado 28 gangues menores. Até agora, 413 armas foram apreendidas. O governo equatoriano não está divulgando números de mortos e feridos. Ao menos 500 soldados do exército atuam em Quito e Guayaquil, principais cidades equatorianas.


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