José Abrão
Goiânia – A publicitária Anna Flávia de Castro é mais conhecida agora por outro nome: Maria Malasangre. A DJ goianiense volta à terrinha para tocar um set nesta sexta-feira (21/2) no Shiva Alt Bar, em Goiânia, após se tornar uma cidadã do mundo. Desde 2011, morou em São Paulo, Buenos Aires e diversos países latino-americanos antes de ir para Barcelona, na Espanha, e, mais recentemente, se instalar no Marrocos, onde fundou a primeira escola feminina de DJs do país.
A história começou na época em que ela cursava Design de Moda na Universidade Federal de Goiás (UFG) e decidiu fazer um curso na Argentina enquanto a faculdade estava em greve. “Nunca tinha morado em outra cidade. Nunca tinha morado em outro país. Era realmente muito goiana, tinha 20 anos, era ingênua e sem muito conhecimento do mundo lá fora. Aí vou para Buenos Aires para fazer esse curso, fico lá seis meses, e acabaram se transformando em sete anos”, conta.
Por lá, começou a trabalhar em albergues, bares, como fotógrafa em baladas e em tours com turistas enquanto fazia o curso. Ao longo dos anos, morou em 11 casas, sempre dividindo com outras pessoas. “Comecei a ter um contato muito grande com pessoas de outros países da América Latina, coisa que em Goiânia eu não tinha. Pessoas do Equador, do Chile, do México, da República Dominicana, enfim, isso começou a me abrir a cabeça para ritmos musicais, para comidas, coisas que eu não sacava. E agora, quando olho para trás, vejo que isso foi muito importante para o lugar em que me encontrei na música hoje em dia”, avalia.
Nesse período na Argentina, Anna Flávia se formou em Publicidade e voltou para o Brasil, para São Paulo, onde começou a atuar na área. Lá, tornou-se amiga próxima de uma chilena e de uma argentina. “Nos reuníamos sempre e, numa dessas reuniões na casa de uma delas para tomar cerveja e tal, conversando, a gente falou: nossa, eu queria muito ir para uma festa de reggaeton, né? Não tinha festa de reggaeton em São Paulo, em 2018. E aí eu falei: cara, vou fazer uma festa de reggaeton.” E quem seria a DJ? Ela mesma.
Na mesma época, viu um estudo que dizia que apenas 4% dos brasileiros se consideravam latinos. Por meio da música, encontrou uma forma de misturar todas as sonoridades que havia conhecido até então: “provar que o Brasil é parte da América Latina é reforçar a latinidade brasileira”.
Maria Malasangre (Foto: divulgação)
Veio a pandemia, e ela se mudou para o litoral paulista, trabalhando à distância. Então veio o clique: se estou trabalhando remotamente agora, por que não trabalhar remotamente de qualquer lugar? Mudou-se, então, para o México, efetivamente começando sua vida nômade e sendo gradualmente inserida em outras culturas. No México, começou a tocar e produzir músicas com artistas locais, além de colaborar com músicos da Colômbia, Guatemala e Marrocos, estudando trap, cumbia e outros estilos.
Em pouco tempo, circulou por outros países da América Central, voltando a se estabelecer por um período no Panamá. Para produzir suas músicas durante as curtas estadias nos países, ela se embrenhava nos rolês da cidade, perguntando e conhecendo produtores e artistas locais.
No Panamá, começou a dar aulas de DJ para mulheres, principalmente iniciantes. “Comecei a desenvolver esse método para ensinar do básico, de forma muito simples e intuitiva. Eu não uso termos técnicos, queria algo que você conseguisse entender”. Teve oito alunas lá. Outras meninas se interessaram e foram atrás querendo aprender.
Rumo ao Marrocos
Nesse momento, conseguiu uma bolsa de pós-graduação em Barcelona. Durante três meses antes do início das aulas, viajou pela França, Espanha, Croácia e Marrocos. No Marrocos, postou em um grupo para ver se alguém tinha interesse em fazer aulas de DJ de graça: “E apareceram 22 meninas em uma vila de 5 mil habitantes”. Foram cinco encontros. “Passei mais tempo no Marrocos do que em Barcelona durante a pós”, pontua.
Ela está morando lá desde abril de 2023, após várias visitas em 2022. “Foi essa janela de oportunidade que eu encontrei, de ensinar essas mulheres”, afirma. Da primeira vez, disse que foi toda coberta, com medo, lembrando que a imagem que o brasileiro tem do país é a que ficou eternizada na novela O Clone, e que não condiz em nada com a realidade. “O Marrocos é um dos países mais abertos do mundo árabe, é a portinha do mundo árabe. Existem pessoas de outras religiões, tem igreja católica, é bem aberto a outras religiões, tem uma comunidade judaica muito grande. Pela sua localização geográfica, também é um país acostumado com gente do mundo inteiro", relata.
Sobre a escola de DJs, ela afirma que não é uma ideia nova e que não criou nada do zero: “A única coisa que eu fiz foi ter a visão de fazer isso em um país onde não estava sendo feito. E aí eu entrei em contato com vários outros coletivos do mundo para tentar não replicar um modelo já existente em outros lugares, mas encontrar o que cada modelo podia me oferecer para criar um [mais a ver com o Marrocos]”.
Maria Malasangre (Foto: divulgação)
Cenas diferentes
Outra questão de estar pelo mundo foi participar de diversas cenas alternativas ao redor do globo. “A diferença que eu posso sentir de uma cena para outra é que, claramente, o que é mainstream em um lugar pode ser alternativo em outro. A linha do tempo não é igual em todos os lugares. O que era mainstream na Europa em 2015 só chegou em 2017 na Argentina e está chegando agora ao Brasil, essa parte do reggaeton. Então, cada cena se move de uma maneira diferente, de forma independente”, comenta.
No mundo árabe, ela enxerga que os desafios para a inclusão das mulheres, ao menos no Marrocos, são muito semelhantes aos enfrentados no Brasil e em toda a América Latina, onde muitos produtores são homens que não contratam mulheres tão facilmente. “Eles falam: ‘Ah, porque eu não conheço nenhuma’. Mano, primeiro que, se você não conhece, você é muito preguiçoso, saca? E esse papo é o mesmíssimo que acontece no Brasil, que acontece em todo lugar. Então, o mundo árabe é realmente tão diferente?”, questiona.
Por fim, a DJ destaca a importância da cena independente para a criação artística, lembrando que frequentou o Centro Cultural Martim Cererê quando era adolescente, algo que a influenciou como artista tantos anos depois. “Eu acho que a cena underground é muito importante, porque a gente não tem acesso a muitas coisas. A cena alternativa é essencial para a cultura artística, para criar esse movimento, para que a coisa não morra. Seguir mantendo, seguir gerando gente nova”, garante.
Ela destaca que a comunidade de DJs mulheres em Goiânia é muito unida, algo incomum no mundo e que ela sempre tenta levar adiante. “Talvez essa seja a minha raiz com Goiânia: a mentalidade de fazer as coisas juntas, lutar pelos nossos direitos de artistas. Provavelmente, isso vem da minha criação em Goiânia”, finaliza.
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