Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 12º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Sobre o Colunista

Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

PROJETOR

Dos riscos da política no cinema

| 04.02.25 - 08:32



Afirmar que toda arte é política, além de uma banalidade, esconde o fato de que essa relação está longe de ser pacífica. No cinema, especialmente no documentário, muitos filmes carregam óbvias mensagens políticas - isso quando não assumem diretamente o papel da necessária denúncia.
 
Isso não quer dizer, entretanto, que lançar-se à política seja uma espécie de missão inescapável ou selo que valide criticamente o cinema. Ao contrário, o uso ingênuo e sobretudo militante da arte e do cinema sempre resulta em má arte. O documentário, em especial, como alerta João Moreira Salles, não se presta muito bem às grandes narrativas. Não que não existam excelentes documentários que tentem dar conta de grandes momentos históricos ou que reflitam sobre as questões humanas mais profundas. São poucos, entretanto. O risco desse tipo de empreitada é enorme, e elas quase sempre fracassam. O resultado é, em geral, ingênuo, esquemático, moralista ou presunçoso - ou essas quatro coisas juntas.
 
Tais advertências levam-nos ao documentário Trilha Sonora para um Golpe de Estado, empreitada ambiciosa do diretor belga Johan Grimonprez, que acaba de estrear no Brasil e concorre ao Oscar de Melhor Documentário em Longa-Metragem. É um filme que praticamente inaugura um novo gênero, o do “Doc Político-Musical”, unindo duas das vertentes mais robustas do filme documentário: os filmes musicais e os docs políticos. Não à toa, Primárias, de Robert Drew, que retrata as primárias democráticas em que Kennedy foi escolhido candidato, e Don't Look Back, de D.A. Pennebaker, que acompanha a turnê inglesa de Bob Dylan em 1965, são tidos como dois dos principais pilares do documentário contemporâneo.
 
O filme de Grimonprez, a partir de materiais de arquivo de diversas fontes, reconta a história da independência do país que é hoje a República Democrática do Congo, o antigo Congo Belga, e do golpe de Estado que se sucedeu, culminando com o assassinato do primeiro-ministro Patrice Lumumba - feitos realizados com algum nível de participação direta da ONU, da Bélgica e dos Estados Unidos. Tudo isso é costurado com trilha e performances dos grandes mestres e vozes do jazz, cuja relação com o continente africano e os Estados Unidos são, por óbvio, profundas e radicais.
 
É um dos trabalhos de montagem, tanto de imagens, quanto de som, mais incríveis que já vi. O filme costura de uma maneira muito competente as imagens de arquivo para, sem narração, traçar, em primeiro lugar, um panorama complexo do momento histórico: 1960, rescaldo da Guerra da Coreia, Revolução Cubana, Guerra Fria, auge da descolonização africana, surgimento do Movimento Panafricano e o temor e agitação provocados na geopolítica internacional, e em especial nas Nações Unidas, pela turbulência no continente.
 
Ao mesmo tempo, internamente, os EUA também viviam época de grande agitação, com o movimento dos direitos civis em forte ascensão e visto pelo establishment como uma potencial ameaça interna num tempo em que o fantasma do comunismo assombrava o país e era usado como espantalho político.
 
O jazz evidentemente tem tudo a ver com isso. Gênero essencialmente negro, mescla-se de muitas formas à história da época: com o ativismo de várias de suas estrelas, sua ligação com o panafricanismo e a simpatia em relação à descolonização, mas também por seu uso pelo governo americano como ferramenta diplomática e ideológica, especialmente nesse momento da história africana, quando o magnetismo da União Soviética inevitavelmente atraía muitas das agora ex-colônias.
 
Hoje, é bem sabido, e o filme nos lembra disso, que estrelas americanas, como Louis Armstrong, Nina Simone, Benny Goodman, Duke Ellington e Dizzy Gillespie, foram enviadas a países africanos (e de outros continentes), algo ingenuamente, em programas do Departamento de Estado Americano relacionados, de diferentes formas, também às agências de inteligência. Num contexto de guerra cultural, eram símbolos da liberdade, vitalidade criativa e suposta igualdade americanas.
 
Vários deles se davam conta, ou o perceberam posteriormente, da hipocrisia das iniciativas, já que internamente os EUA viviam conflitos complexos herdados da escravidão e muitos estados do sul ainda mantinham leis segregacionistas e viviam uma rotina explícita de racismo e violência contra a população negra. Por isso, por exemplo, Louis Armstrong, em 1957, cancelou uma turnê à União Soviética quando estudantes negros foram impedidos de entrar em uma escola pública no Arkansas, declarando: "O governo pode ir para o inferno."
 
É impressionante, dessa forma, como o filme consegue conectar o jazz e a política em várias camadas. É genial, por exemplo, a maneira como a montagem casa a cena de protesto do premiê soviético Nikita Khruschev, batendo ritmicamente as mãos sobre a mesa, durante a Assembleia Geral da ONU, e a batida do jazz. Pontes sonoras como essa abundam na edição do filme. São muito boas as diversas ironias conseguidas com cortes de imagens de arquivo, em que políticos e diplomatas parecem reagir a acontecimentos mostrados em cenas anteriores. Há muitas associações temáticas entre os conteúdos de músicas e fatos históricos.

O filme tem, nesse sentido, uma estrutura formal muito sólida, resultado de um diretor e editores que conhecem profundamente o documentário e seu ofício.
 
Todavia, se na relação entre jazz e política, Grimonprez consegue traçar um quadro complexo e multifacetado, explorando essa ambivalência dos próprios músicos diante da hipocrisia americana no quadro interno de profundo racismo, o mesmo não se dá do ponto de vista do relato histórico mais amplo.
 
Naquilo que aprendemos sobre o momento político do início dos anos 1960, a guerra civil congolesa e o assassinato de Lumumba, saímos do cinema com a alma lavada daqueles que se colocaram do lado certo da história. Trilha Sonora para um Golpe de Estado não deixa de sucumbir ao maniqueísmo comum em filmes militantes que sobram no mercado e no line up dos festivais.
 
Sabemos evidentemente que as mãos dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais estiveram por trás do assassinato de Lumumba, apoiando e armando seus opositores, assim como em tantos outros crimes políticos na África, na Ásia e na América Latina. É vergonhoso igualmente compreender o papel subserviente da ONU naquele momento histórico, colaborando, às vezes ativamente, outras por omissão, com os propósitos americanos e das ex-metrópoles europeias. Nada disso é novo e, mais um mérito do filme, esse episódio é narrado com solidez e farta documentação histórica.
 
Todavia, como dizia o mestre Eduardo Coutinho, fazer filmes contra algo ou alguém é sempre o mais fácil - e talvez o menos interessante. Um espectador mais desavisado sai da sessão de Trilha Sonora para um Golpe de Estado acreditando que Khruschev e Fidel Castro tenham sido verdadeiras Madres Teresas de Calcutá, e a União Soviética e Cuba, uma espécie de Nárnia onde reinavam a igualdade e a liberdade humanas.
 
Reitero: não se está aqui endossando, nem negando, tudo o que os Estados Unidos e a CIA fizeram durante a Guerra Fria. Aliás, o que sabemos muito provavelmente não deve ser nada perto daquilo que não sabemos. Só não me parece um papel interessante para um filme - embora essa seja hoje a regra -, montar um quebra-cabeças deixando de fora várias peças, numa narrativa que termina por empobrecer a história e a política ao construir um sentido simplório e binário em torno de um dos momentos mais complexos da sociedade humana. Filmes são bons quando saímos da sala incomodados e com novas dúvidas, e não com nossas certezas renovadas.
 
Trilha Sonora para um Golpe de Estado muito provavelmente ganhará o Oscar de Melhor Documentário e eu recomendo o filme, mas Grimonprez fica nos devendo uma sequência, ao som de balalaika, hinos operários e gypsy brass, para contar a história, com a mesa riqueza de detalhes sórdidos, vista pelo lado de lá da Cortina de Ferro.

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:

Sobre o Colunista

Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351