De Puerto Natales, à beira do labirinto de canais e fiordes que ligam os Andes ao Pacífico Sul, são apenas 30 quilômetros até o Paso Dorotea, onde entramos novamente na Argentina. A primeira cidade do outro lado é Rio Turbio, surgida em torno de uma mina de carvão ainda em atividade e que movimenta a economia dessa região no extremo sul do continente.
Olho para as pessoas nas ruas e penso que suas vidas deverão mudar muito nas próximas décadas com o gradual abandono dos combustíveis fósseis. Elas sabem disso, como indicam as frases pintadas em muros e paredes pela cidade: “Carbón es el pan en nuestra mesa”, “Carbón es energía para la vida”.
Toda viagem é movida pela ilusão de sairmos de nós mesmos, mas acaba sendo sempre na verdade apenas um inevitável retorno a nós mesmos, quando não um encontro incômodo ou mesmo apavorante. O que nos motiva a pegar a estrada e conhecer lugares diferentes é a ideia de nos abrirmos àquilo que é diverso. Todavia, o confronto com o que é diferente não serve se não como espelho para nos enxergarmos.
Nesse sentido, essa viagem à Patagônia contém retornos em profusão, num jogo infinito de espelhos. Hoje, queria falar sobre um deles, que é uma viagem dentro da viagem e vários retornos em muitas direções - ao passado, a meu pai e a questões que desde sempre me movem.
Nele, o autor faz uma viagem de moto, acompanhado do filho, entre Minnesota e Montana, retornando a lugares de um passado difícil. É uma jornada de arqueologia interior e a uma vida anterior. Pirsig fora professor universitário em Montana, um cientista e filósofo genial que enlouquecera na exploração dos limites e armadilhas da razão moderna.
Compulsoriamente internado, foi submetido a sessões de eletrochoque e saiu do hospital com uma nova personalidade, menos angustiada e obcecada com a busca intelectual, mas ainda assim movida pelo questionamento sobre os limites da racionalidade, a relação entre afetos e razão e sobre nossa maneira de conhecermos o mundo e, a partir disso, nos constituirmos como indivíduos.
Logo, retornamos à Ruta 40, que seguimos por boa parte dessa viagem até aqui, e ela oferece uma última visão do maciço do Paine, com seus picos nevados e lagos azuis, que nossos pés e olhos percorreram com tanto esforço e prazer nos últimos dias. É certamente um dos lugares mais bonitos que já conheci.
A Patagônia desértica e vazia então se abre à nossa frente, mas o plano agora é cruzá-la pela parte sul, mais estreita, e começar a voltar para casa pela costa argentina, conhecendo um pouco da Patagônia marinha.
Zen e a Arte de Manutenção das Motocicletas é portanto essa história de arqueologia pessoal. A partir de fragmentos de memória não apagados pelos eletrochoques e de outros despertados pelos lugares por onde passa, o narrador vai reconstituindo não apenas sua tentativa de expandir os limites da razão, como também quem era Fedro, que é como batiza, em homenagem a um personagem grego, essa outra pessoa que fora um dia.
Enquanto relata a viagem, os lugares, os encontros com os Estados Unidos profundos e suas impressões, Pirsig progressivamente constrói uma reflexão sobre os sintomas de sua época, os anos 1970, onde brotava e se espalhava um incômodo crescente com a tecnologia e seus efeitos colaterais. O autor atribui esse incômodo à própria incapacidade da racionalidade técnico-científica moderna em compreender o mundo para além de uma abordagem funcional e utilitária.
A primeira visão do mar é breve e surge pouco antes de Puerto San Julián, que é nosso destino por hoje. Por mais que o conheça, pareço sempre ser assaltado por um pasmo essencial quando vejo novamente o oceano. Ele sempre me assusta - pelo contraste, pela enormidade, pela insondabilidade.
A cidade pequena fica à beira de uma baía estreita, cujo abrigo foi muito buscado ao longo do período colonial. Por aqui, passaram viajantes famosos, como Fernão de Magalhães, Charles Darwin e Francis Drake. As ruas são amplas, a temperatura agradável, e a maré baixa expõe o esqueleto de um barco encalhado na praia bem ao lado da réplica meio cafona da caravela de Magalhães. O lugar tem um ar de cidade turística que perdeu seu glamour, com hotéis de fachadas antigas e restaurantes que aspiram a um luxo que já não tem mais sentido. Mas talvez esse tempo de agitação em verões passados jamais tenha existido.
Zen e a Arte de Manutenção das Motocicletas fez grande sucesso nos anos 1970 e 1980 e se tornou, em alguma medida, um ícone literário da contracultura, ainda que seja crítico da visão romântica de mundo do movimento hippie e de seu preconceito pouco matizado com a tecnologia.
Uma das coisas que me parecem mais interessantes no Zen, nesse sentido, é justamente o fato de poder ser lido por diferentes filtros e, por isso, agradar a pessoas de perfis opostos. Os românticos anti-sistema vêm nele apenas a crítica à racionalidade técnico-científica. Os entusiastas do progresso apreciam as setas atiradas contra a ingenuidade contracultural e o valor dado à razão e ao método científico.
Pirsig obviamente não foi o primeiro. Muitos pensadores antes dele já se inquietavam com os pressupostos da razão moderna e as profundas inconsistências das ideias de objetividade e de uma verdade absoluta e externa dada por leis imutáveis do mundo natural. Impressiona todavia como sua reflexão é pioneira em apontar o início e a raiz profunda de uma crise civilizatória cujo ponto mais agudo talvez vivamos hoje, mas que, à época da escrita do livro, ainda mal se desenhava.
Essa cisão de visões em relação ao conhecimento está no centro da crise contemporânea. Essa crise generalizada - política, geopolítica, econômica, espiritual, ambiental - tem como raiz os limites e efeitos colaterais de um padrão de racionalidade, nascido entre os séculos 16 e 18, fruto da tripla revolução - científica, política e econômica. Foi ao longo desse período que criamos todo um mundo e um tipo de individualidade centrados na radical separação entre sociedade e natureza e na ideia de um conhecimento objetivo, absoluto e neutro. São esses pilares que já não dão mais conta de explicar o mesmo mundo que ajudaram a criar e sobretudo de justificar os efeitos colaterais trazidos pela tecnologia em sua profunda associação com o capitalismo.
Basta olhar para a polarização política e perceber como as visões contrastantes dos polos sobre todas as questões têm como norte sempre problemas associados ao conhecimento. Não se trata de dizer que a esquerda é romântica e a direita racional ou vice-versa. Ambos os lados flutuam entre essas duas maneiras de abordar os problemas, ora incorporando uma, ora outra, conforme o debate. O que não muda é o fato de estarem sempre referenciadas a discordâncias que, de alguma maneira, envolvem o conhecimento. Nossa crise é epistemológica antes de ser politica.
Se há muito anticientificismo na direita, não nos esqueçamos que o movimento antivacina tem suas raízes também à esquerda, onde argumentos válidos em relação à escusa associação entre a ciencia médica e interesses econômicos são frequentemente usados para tentar legitimar práticas duvidosas.
Se na direita há o desejo reacionário de retorno a um passado idealizado, onde valores tradicionais incorporavam o conhecimento validado e ditavam a melhor forma de nos relacionarmos com o mundo, na esquerda, há também uma nostalgia análoga. Desse lado do espectro, entretanto, a referência epistemológica são os povos tradicionais e sua maneira diversa de conhecer e viver não contaminada pela razão moderna.
Em cada conflito, basta procurar, e o problema do conhecimento estará colocado, de forma explícita ou não. Pirsig percebeu isso muito antes.
O tráfego vai se tornando mais intenso à medida em que avançamos rumo ao norte na Ruta 3 e adentramos regiões menos remotas do país, embora ainda distantes do dinamismo da província de Buenos Aires. A estrada alterna entre bordear o mar e adentrar as mesas estépicas do interior. É muito diferente de tudo esse lugar onde o deserto e o mar se encontram. Literalmente, as arenosas estepes patagônicas saltam para dentro do Atlântico aqui.
Vemos um bando de leões marinhos na praia e fazemos o retorno para observá-los. Felipe tem medo que sejam agressivos. Vendo os machos alfa rugirem com suas jubas amareladas dá para entender o porquê do nome da espécie. Mas as fêmeas e os outros membros do grupo são pura preguiça sob o sol vespertino e não tomam conhecimento da nossa presença.
Li Zen pela primeira vez há uns 20 anos. Na época, eu mal começava a compreender essas questões relacionadas à natureza do conhecimento. Penso que o livro me encantou então já por sua tentativa de criar pontes entre as duas visões, entre essas duas formas de nos aproximarmos da realidade a que Pirsig denomina “visão clássica” e “visão romântica”.
Mas fora meu pai quem me apresentara ao livro anos antes. Ele ouvira falar do Zen à época de seu lançamento nos EUA e pedira a um amigo que lhe trouxesse um exemplar. Ficou tão apaixonado que chegou a começar a traduzi-lo, mas não concluiu a empreitada, não sei exatamente por quê.
O Zen portanto vem sendo uma viagem dentro da viagem à Patagônia. É um reencontro com meu pai e com o que temos em comum nessas inquietações sobre a relação entre razão, afetos e apreciação estética do mundo. É um reencontro com o próprio livro que soa muito diferente tanto tempo depois.
Coincidentemente também a viagem à Patagônia é uma jornada de pai e filho. Felipe é meu companheiro. Ele tem 12 anos, que deveria ser mais ou menos a idade do Chris de Pirsig na jornada de moto do livro. Nossa viagem tem certamente sido cheia de encontros e desencontros entre nós. O mais desafiador é, como pai, me despir das expectativas em relação ao que a jornada deveria ser para ele e deixar que a viva à sua maneira, permitindo-me mais me surpreender com o inesperado em suas atitudes e reações, do que me frustrar porque ele não se comporta ou reage conforme eu idealizei.
O termômetro do carro indica 38 graus do lado de fora - um calor absurdo para essa latitude mesmo no verão. À esquerda, o terreno plano a perder de vista, à direita, na distância, o mar muito azul recuado centenas de metros na maré baixa em relação aos abruptos penhascos de arenito. No espaço deixado pela água, cresce um tapete de algas que cria uma inusitada praia verde. Estamos na Península Valdés, uma das principais casas de verão de pinguins, leões, elefantes marinhos, baleias francas e orcas no Atlântico Sul.
Aqui, a casa é dos animais. Na área protegida, há alguns poucos espaços delimitados, com pequenos mirantes e trilhas, de onde se podem observar os visitantes da Antártica. É uma curiosa inversão, observa Guilherme de forma arguta. Aqui, somos nós que estamos no zoológico, e eles, livres. Parece justo, mas me dá um pouco de pena ver essas vastas e longas praias vazias, esse mar tão claro, esse sol, e não poder pisá-las. A estação de reprodução dos leões marinhos já vai adiantada e há muitos filhotes em meio aos bandos.
Como para Robert Pirsig, essa viagem, também para mim, tem algo de arqueologia pessoal. Vim pela primeira vez à Patagônia há 25 anos para escalar as primeiras montanhas verdadeiramente altas e geladas que subi. Portanto, estar aqui e especialmente voltar ao Cerro Tronador, em Bariloche, é igualmente rever um Pedro com um quarto de século a menos e o grosso da vida que passou veloz desde então. É percorrer alguns dos mesmos lugares e, de forma similar, ser surpreendido por lampejos de memórias soterradas que escavo e limpo com cuidado, tentando entender como se encaixam em relação a outros fragmentos próximos. O que mantenho dessa pessoa estranha que usava meu nome há 25 anos? Quanto devo a ele? Muitas vezes me envergonho de sua imaturidade, de sua ingenuidade, de suas fraquezas, mas devo admitir que foi ele quem abriu o caminho para que eu fosse essa pessoa de quem me envergonho bem menos hoje e de que às vezes até me orgulho. Ele é, portanto, meu credor.
A viagem segue. Hoje, oficialmente, após mais de três semanas, deixaremos a Patagônia, que, descobri por esses dias, é em geral entendida, na Argentina, como todo o território a sul do Rio Colorado. Em breve, estaremos no Brasil e de volta à casa.