Goiânia - Circula há algum tempo (e ainda) pelas redes sociais afora uma montagenzinha com foto do Joaquim Barbosa com os dizeres: de faxineiro, filho de pedreiro a presidente do STF, Parabéns Joaquim Barbosa. Os altos números de compartilhamento dessa imagem indicam o tipo humano mais admirado nessa sociedade: o vencedor. A nossa missão nessa vida? Vencer.
Se há vencedores, pressupomos que há uma competição. E se alguém ganha, alguém perde. A lógica desse raciocínio culmina na conclusão de que viver é competir e as pessoas com quem convivemos são nossos adversários e precisamos ser os melhores para levar o troféu para casa. É por isso que, sinceramente, não gosto dessa história de admirar vencedores.
A necessidade de haver vencedores indica apenas a sociedade doente que temos. Eu gostaria que Joaquim não fosse um vencedor. Gostaria que não fosse uma surpresa termos um negro no STF. Desejaria que todas as crianças com quem ele dividiu uma pobre infância também pudessem ter se tornado algum tipo de “doutor”. Ele é vencedor porque, naturalmente, as condições em que foi formado não facilitariam ser um ministro do STF ou médico ou qualquer outra coisa com status de “doutor”. Ninguém tem obrigação de ser vencedor quando a vida só apresenta privações.
Soa quase bizarro admirar vencedores. Bizarro porque é admitir e naturalizar as condições difíceis e precárias em que nascem vencedores. Eles nascem da fome e da pobreza. Sobrevivem à violência, alcoolismo, lares desestruturados, tráfico de drogas ou prostituição que o circundam. Nossa sociedade não precisa de vencedores que superam esse cenário e conseguem atingir a dignidade e até a autoridade. Nossa sociedade precisa, antes, que esse cenário não exista. Ou, pelo menos, que não seja tão violento como o que temos.
O pior. Esse vencedor, na maioria esmagadora das vezes, está relacionado a uma vitória absolutamente individual. Ele conseguiu tal emprego e um cargo x, comprar uma casa assim, um carro assado. Conseguiu construir uma família e montar uma empresa. A vitória gira em torno do sucesso profissional, afetivo e material. Vencedores não são quem faz história. Quem briga por mudanças. Eles, não raramente, são os autores de livros de auto-ajuda.
Esse fim de semana estive fazendo uma reportagem pela TV em que trabalho em um assentamento, em São Luís do Norte. Depois que chegamos à cidade, a 280 quilômetros de Goiânia, enfrentamos uma estrada de terra caótica cheia de lama, pegamos balsa para atravessar o rio para finalmente chegar até as fazendas. Ali do outro lado vivem 51 famílias que, basicamente, só tem a terra. Os benefícios prometidos ainda não chegaram. Uma das famílias é de Seu Paulíneo, semi-analfabeto.
Estive na casa dele; sem reboco, sem laje, sem sofá, sem a dignidade que a família dele merece. Ele me contou que os filhos têm 225 faltas na escola. O ônibus não passa para levar as crianças para a escola que fica a 26 quilômetros dali. Vive estragando. As crianças acordam de madrugada e debaixo de chuva caminham até o ponto onde o ônibus deveria passar, mas nem sempre passa. Fiquei olhando seus filhos e pensando que, se nada for feito, vão acabar no mesmo caminho do pai – semi-analfabetos brigando pelo básico. E, sinceramente, eles não têm obrigação de ser vencedores, superar a pobreza e se tornar ministros do STF.
Pelo contrário, eles têm direito a morar numa casa onde não haja escorpiões e lacraias, por conta da ausência do reboco. Têm direito a ter um ônibus os levando todo dia para escola ou que exista alguma nas redondezas das fazendas. E, chegando lá, têm direito a uma educação que vá fazer deles mais que alfabetizados. Um pouco mais cidadãos, quem sabe. E quando voltarem para casa, têm direito a não sentir a barriga roncar.
Gostaria de um dia ter notícia dos filhos do Seu Paulíneo. Que estão dominando o que está nos livros, criticando o que se passa no Jornal Nacional e pagando as contas de casa com dignidade. Trabalhando com o que quiserem e, quem sabe, ocupando espaços de poder. Mas não por serem vencedores, mas porque, simplesmente, as condições em que viveram proporcionaram isso. Tiveram boa escola, uma casa decente, comida na mesa. Não seriam, portanto, vencedores. Seriam pessoas dignas de admiração, ponto.
Eu não deixo de admirar os chamados vencedores porque o problema não está neles. Meu repúdio, antes, é pela admiração exagerada e perigosa que as pessoas lhes conferem. Os atributos e características admiradas que naturalizam o que não é normal. Programas de televisão e páginas de revista para falar de histórias de vida e de superação.
Vocês vejam, por exemplo, nossos atletas medalhistas. As lágrimas que escorrem quando sobem ao pódio não se devem apenas ao esforço individual e determinação que os conduziram até ali. Por trás, sempre há uma história pesada, envolvendo as palavras-chave fome, drogas, pobreza. Nadam contra maré e chegaram ali com parco apoio de governos e instituições.
Clemilda e Janildes Fernandes: duas irmãs medalhistas goianas. Um irmão foi assassinado em 2006. O outro na noite do último domingo (2/12). Os dois negros e jovens. Todos, naturalmente, pobres. Dois irmãos são estatísticas: jovens, pobres e negros assassinados. As duas irmãs são dignas de matéria de revista com história de superação. Têm minha profunda admiração. Mas me indigna a história das duas ter mais destaque que a dos irmãos assassinados.
Os olhares da sociedade voltam-se para a superação das garotas, mas a miséria e o contexto de pobreza e violência em que os quatro foram criados são enxergados por olhos cegos ou bastante míopes. A vitória delas não deve ser a regra. Ninguém precisa viver o inferno para ter um objetivo alcançado, um sonho realizado ou, minimamente, decência para se viver. Ou no caso dos irmãos de Clemilda e Janildes, o direito de se viver.
Eu estou farta de precisarmos de vencedores. Farta das condições precárias e vergonhosas em que nascem esses vencedores. E enfadada da admiração exagerada que dedicam à gente que “cresceu na vida”, naturalizando a situação de onde vêm. Enquanto houver essa superestimação a esses vencedores, ninguém vai se dar conta do absurdo que é não tratar as pessoas com igualdade. Continuaremos num salve-se quem puder. E viva os vencedores.