Brasília - O Projeto Escola Sem Partido, que tramita no Senado, não traz apenas um questionamento sobre discussão de política em sala de aula. Trata-se de uma disputa por um modelo de sociedade que tentam impor e usam do espaço mais importante para formação dos cidadãos: a escola. Trata-se de uma tentativa, deliberada, de fazer da escola um espaço de conformação e de castração intelectual.
Não tenho dúvidas de que o maior desafio da vida é lidar com as diferenças entre as pessoas. É na pluralidade que reside a grandeza humana, mas também o maior perrengue. Você pode pensar essa frase a partir de sua perspectiva individual e tomar seus espaços privados: sua família, seu relacionamento com seu parceira ou parceiro, seu ambiente de trabalho, seu círculo de amigos. Bom, mas daí expanda para a vida em comunidade: o problema apenas aumenta de proporção. Lidar com as diferenças é, sim, o maior desafio da política.
Ninguém é igual a ninguém. Sermos irrepetíveis é a maior graça da vida. Como é incrível que haja quem seja bom com as palavras, outros fazendo contas, outros aconselhando, outros criando. Que tenha gente mais calma, outros mais explosivos sem papas na língua, outros ponderados. Não é assim que a gente encontra o equilíbrio em todos os espaços e encontramos um lugar aconchegante pra todo mundo?
Exemplifico assim, numa perspectiva interpessoal, para que a gente possa pensar num cenário amplificado: que bom que vivemos em um mundo em que há héteros, gays, lésbicas, transexuais. Gente que se identifique mais com Marx ou com Smith. Que aplauda os textos de Duvivier ou do Jabor. Que bom que existe quem acredite em Tupã, em Orixás, Jesus ou Maomé. Mas colocar todo mundo sob um teto acolhedor e que todas essas singularidades sejam respeitadas, não tenho dúvida, é o maior desafio político da humanidade. Criar um cenário, inclusive, institucional e jurídico para que isso seja possível é nosso dilema.
Se é um desafio de todos nós e em todos nossos ambientes – públicos ou privados - como não seria a escola o principal espaço para começarmos a aprender a lidar com as diferenças?
Eu me lembro bem daqueles professores que tive e dos quais, duvido, algum colega tenha se esquecido. Eram aqueles que tinham a convicção de que o conhecimento estava muito além dos livros didáticos. E seu ofício era muito maior do que repassar o que ali estava escrito. Eles faziam questão de trazer aquelas discussões que mexiam com a sociedade – assuntos quentes ou frios – e jogavam na mesa. Bum! Dá-lhe opiniões e perspectivas. Ali todos saiam do papel de meras esponjas que deveriam absorver conhecimentos, para o papel de construção de cidadãos. Que têm posicionamentos e engajamentos. Que sabem se posicionar frente aos dilemas que concernem a todos nós enquanto membros de uma comunidade.
Ali deixávamos de ser meros alunos. No sentido literal desta palavra: sem luz, que deve ser iluminado. Como se nós não trouxéssemos, seja lá quais eram nossas trajetórias, experiências e pensamentos que pudessem nos iluminar uns aos outros e até mesmos os professores. E é justamente esta a ideia que o projeto traz no artigo 2º, parágrafo V “reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado”. O avesso do que Paulo Freire tentou, exaustivamente, deixar claro em seu legado. Uma absurda subestimação daqueles que estão em sala de aula e que ensinam desde quando nem sabem falar.
Subestimar os milhares de alunos que nos deram um show de cidadania e política desde o ano passado ao ocupar suas escolas reivindicando nada menos do que consta na Constituição. Que souberam se organizar, se engajar e deram uma lição a todos marmanjos sobre política. Em tempos de crise de representação, em que todos torcem o nariz para política acreditando que ela é sinônimo dos péssimos representantes que ocupam o poder, mostraram qual é o caminho para que tenhamos nossos direitos garantidos e para que não sejamos vítimas de figurões oportunistas: reivindicando e fazendo a participação política direta.
É esse o tipo de estudante que temem. Que tenha consciência do seu poder de engajamento e de onde pode chegar com isso. Que reconheça que é a participação política, a ação em conjunto, o caminho para a construção daquilo que seja justo e bom para todos. Temem o estudante que esteja menos preocupado em ser empreendedor de si mesmo, e apenas de si mesmo. Que tenha em vista que o caminho para o sucesso é sua dedicação exclusiva à absorção acrítica dos conhecimentos repassados, o investimento em si próprio e a batalha competitiva por seu lugar ao sol. Aquele em que pode comprar seu próprio carro. Comprar sua casa em condomínios. Pagar pelo seu plano de saúde e passear no shopping no fim de semana em paz.
Temem aqueles que acreditam que, talvez, a felicidade esteja numa cidade em que o transporte público seja de qualidade e acessível. Onde morar sem cercas e sem medo de polícia não seja privilégio, mas direito. Uma cidade onde haja saúde de qualidade, pública e gratuita, acessível a todos. Em que lazer é ocupar as praças aos fins de semana, tranquilamente, para dançar hip hop ou andar de skate. Em suma, Constituição entrou na moda. E estão temendo aqueles que entenderam isso.
Tanto temem que tentam freia-los no artigo 5º, parágrafo III “não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”. O que se teme, no fim das contas, é do perigo que é termos seres que pensam por si, que assumem sua singularidade, que tenham consciência de seus direitos. Inclusive de brigar por aqueles que são sistemática e violentamente negados.
Trata-se de um esforço deliberado e multifacetado para suplantar a tal pluralidade em nome da ordem. De formar cidadãos que não apenas não tenham suas diferenças respeitadas, como não sejam capazes de reconhecer as diferenças alheias e respeita-las. Reside, aqui, a importância de se impor o comportamento resignado aos estudantes ao ter que lidar com os questionamentos que vêm dali.
É de se espantar o aumento em 775% em dez anos do uso de ritalina por crianças e adolescentes, de acordo com pesquisa da UERJ. O uso é recomendado, inclusive, por professores, conforme testemunhos. Esse metilfenidato é usado principalmente em crianças e adolescentes para o tratamento de déficit de atenção e hiperatividade. Contudo, são muitos os especialistas que acreditam que o estrondoso aumento do uso do medicamento levanta o alerta de uso indevido da substância, inclusive por pessoas saudáveis. Aqui, reforço para não ser mal compreendida: a tônica do que espanta no aumento está no uso indevido. Isto é, o diagnóstico precipitado de um comportamento natural de crianças e adolescentes, mas que, no bom português: dá trabalho.
Caminhamos, assim, rumo à educação que pretende formar seres acomodados, conformados e obedientes, do que cidadãos que possam questionar o que lhes é ensinado, reivindicar o que lhes é negado, florescer sua singularidade e respeitar a alheia. Cidadãos que estejam engajados no desafio de construir um mundo que abrigue todas as pessoas em suas mais radicais diferenças. A educação que estimula o uso indiscriminado de ritalina, sem diagnóstico, como droga da obediência. Que impõe ao professor o papel de “dador de aulas” e criminaliza seu ofício de educador. Que impede, legalmente, que a escola seja o espaço do questionamento, da reflexão e do engajamento.
Se está difícil de se lembrar, os piores momentos vividos na humanidade foram aqueles em que todos caminharam juntinhos como massa, entoando os mesmos hinos. Desrespeitando, criminalizando, violentando e matando tudo e todos que representassem quaisquer diferenças daquilo que era imposto como padrão. As sementinhas são essas que vêm como o Projeto Escola Sem Partido. Qual fruto de sociedade a gente quer colher? Fico com os questionamentos e dispenso a obediência. Troco ritalinas por ocupações de escolas.