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Márcio Jr.
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Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. / marciomechanics@hotmail.com

GUERRILHA POP

O tempo de um homem que passeia

| 01.06.19 - 08:24

Me considero um privilegiado. Vivo e trabalho com aquilo que amo. Música, cinema, arte, quadrinhos, estudo, literatura, educação. É daí que arranco meu sustento. 
 
Nunca fui muito bom em ganhar dinheiro. Me dedicar profissionalmente àquilo que gosto foi um meio de atalhar o caminho em busca da sempre volátil felicidade. Me ocupando de algo ao mesmo tempo realizador e prazeroso, não preciso naufragar no poço sem fundo do consumismo. Não dá para reclamar. O que não quer dizer que seja fácil.
 
Para viver assim em Goiânia, Goiás, Brasil, é preciso ser ninja. Um trocado aqui, outro acolá. Burocracias infinitas ao lidar com editais e concursos. Trabalho, trabalho e mais trabalho. Correria infinita, noites mal dormidas, cansaço que parece crônico. Procuro ficar atento àquilo que disse o filósofo sul-coreano Byung Chul-Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”.
 
O que me falta? Tempo e tranquilidade. Inclusive para digerir e fruir de maneira mais plena as coisas que faço. Meu “sonho de consumo” consiste numa cadeira na praia, debaixo de um guarda-sol, para ficar ali, sentado, sem fazer absolutamente nada, a não ser olhar o movimento do mar. Vale também uma casinha no campo, observando árvores, vegetação. Sem ansiedade ou aquele sentimento opressor de culpa por não estar “fazendo nada”.  
 
Tal busca por uma existência mais simples, leve e contemplativa é também a matéria-prima de “O homem que passeia”, mangá de Jiro Taniguchi que retorna às livrarias em nova impressão da editora Devir.  
 
Um pequeno parêntese para os não iniciados: mangá é o nome que as histórias em quadrinhos têm no Japão. Ao contrário dos Estados Unidos – e nosso eternamente colonizado Brasil –, lá as HQs não são entendidas como produto infantil, mas como um meio de comunicação capaz de lidar com quaisquer temas, para quaisquer faixas etárias. É o maior mercado do planeta. 
 
Em “O homem que passeia” não encontraremos monstros, robôs gigantes, alienígenas, raio laser, porradaria, superpoderes. O livro de 244 páginas traz tão somente as livres e singelas caminhadas de seu protagonista. 
 
Apesar de negar a formulação de uma filosofia da caminhada, na prática é isso que a HQ de Taniguchi oferece – de forma poética e sublime. Em entrevista ao escritor e cineasta Jean-Philippe Toussaint, o autor pontua que “dentre as ações cotidianas dos seres humanos, a caminhada é a mais natural”. Uma experiência que se aprofunda na medida em que não possui meta, finalidade ou tempo determinados de antemão.
 
A caminhada proposta pelo mangaká é o inverso daquela a que estamos acostumados a ver pelas ruas: gente apressada, fones de ouvido, olhos colados no chão – ou nas telas dos celulares. Uma caminhada aberta ao mundo e à vida, atenta a pequenos detalhes – que podem se revelar grandes maravilhas –, localizada no diâmetro oposto da alienação individualista que o capitalismo contemporâneo nos impõe. Caminhada como possibilidade de encontro – com a natureza, com o outro, consigo mesmo. E, portanto, como resistência a um sistema que não nos deixa escapar do pesadelo da produtividade sem tréguas. 
 
A beleza do traço de Taniguchi (falecido em 2017) amplifica a experiência de “O homem que passeia”. Sua linha clara e precisa, prenhe de toda a tradição do mangá, bebe também em águas europeias. A influência de Moebius – outro poeta da contemplação gráfica – se faz notar, ainda que passe longe de obscurecer a identidade do artista. 
 
Os capítulos/passeios se alternam no uso de retículas e aguadas. A exceção fica para o final da obra, desenhada em sólido nanquim preto, sem meios-tons, como a nos lembrar que mesmo quando buscamos serenidade, a vida pode nos atropelar com perdas e melancolia.
 
Além da entrevista concedida a Toussaint, a edição da Devir traz ainda um prefácio do antropólogo-pop Hermano Vianna. O pecado fica por conta de converterem as poucas (e belas) páginas em cores aquareladas do original para o preto e branco – o que parece ser regra na coleção Tsuru, exclusivamente dedicada a mangás. Nem por isso “O homem que passeia” deixa de ser indispensável. 
 
A recente leitura da HQ de Taniguchi fez ressurgir em mim as reflexões acerca do tempo. Desde o golpe de 2016 e as eleições de 2018, elas estavam adormecidas. Algo mais urgente havia tomado seu lugar: a sobrevivência. Mas depois eu penso nisso. Agora, me basta dar uma volta pela vizinhança.
 

Comentários

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  • 01.06.2019 19:49 Luiz Fafau

    Um pouco de fracasso lhe fará refletir sobre os sucessos.

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Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. / marciomechanics@hotmail.com

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