Não é novidade para ninguém o meu anacronismo. Sou, essencialmente, um ser analógico. Num mundo tomado pela virtualidade, defendo cada vez mais os suportes físicos. Ainda que seja a nossa mente a nos definir, é no corpo que a coisa acontece. E pega fogo.
Trato a questão como se fosse pessoal. Algo relacionado ao gosto e às minhas próprias experiências. Prefiro papel à tela de um computador. Vinis ao invés de mp3. Uma escolha, poderia dizer – e geralmente digo. Evito julgamentos de valor. Mas não é bem assim...
Alguns anos atrás, mesmo não gostando muito de internet e redes sociais, tive uma epifania. Assistindo o mundo se emaranhar em infinita trama virtual, vislumbrei uma utopia involuntária. Uma espécie de efeito colateral positivo que salvaria a humanidade.
A parada seria mais ou menos assim: Mais e mais pessoas conectadas por meio de celulares. Como os celulares são dispositivos móveis, as pessoas ficariam conectadas por mais tempo. Os celulares ficariam cada vez menores. Até virarem um microchip, que seria instalado direto no cérebro do usuário. A partir daí, a conexão passaria a acontecer em tempo integral.
Ao invés da foto que o amiguinho posta no instagram, você veria, em tempo real, o que ele vê. E vice-versa.
Conectados 24 horas por dia, teríamos acesso não ao que os indivíduos publicam, mas àquilo que vivenciam – e vivenciaram, já que o sistema arquiva todos os dados. Não mais compartilhamento de textos ou imagens, mas sim de experiências propriamente ditas.
Se uma pessoa perde um ente querido, eu sentiria sua dor. Se outra goza em êxtase radiante, fruiria as mesmas sensações. Experimentaríamos todos a criatividade dos artistas, o conhecimento dos cientistas. Empatia absoluta. Cada um de nós fazendo parte de um único ser: a humanidade.
A linguagem, obviamente, seria superada. Ela nunca foi capaz de traduzir integralmente o que somos, queremos e pensamos. Os ruídos inerentes à comunicação desapareceriam de uma vez por todas.
Se sou capaz de acessar o outro em sua essência, sem mediações, a mentira e a dissimulação se dissolveriam no ar. Se sua dor se torna a minha dor, como ser indiferente? Se experimento o amor de alguém, como não fazê-lo meu também?
Não confio nos ricos. Muito menos nos bilionários. De modo que nunca tive gente como Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg em elevada estima. São gênios da raça. Mas se movem por grana e não por apreço ao ser humano. A suprema ironia seria, justamente, estes caras terem criado as condições para uma nova sociedade, uma nova humanidade. Por acidente, claro.
Se eu sou você, o que é seu é meu. E, novamente, vice-versa. Fim da propriedade privada. Tudo pertence a todos. Em minha epifania, um sorriso de vitória tomou meu rosto ao pensar que hipercapitalistas seriam os responsáveis por uma espécie de metacomunismo espiritualista.
Eu não poderia estar mais enganado.
Os chips ainda não estão implantados em nosso córtex cerebral, mas a onipresença dos celulares já não surpreende ninguém. Aparelhos cada vez mais velozes, entupidos de aplicativos. Horas e horas diárias mergulhados naquela maldita telinha – portal para um mundo virtual que, progressivamente, toma o lugar do mundo físico. Mas o acerto de minhas previsões morreu por aí.
Eu imaginava que quanto mais conectados, maior seria nossa empatia em relação ao outro. A realidade se mostrou exatamente o oposto. Cada vez mais, nos refugiamos no pseudo-conforto de nossas bolhas, negando qualquer alteridade. Estamos nas redes para ouvir o que já pensamos e acreditamos. Ai de quem discordar.
Quando eu era moleque, ficava maravilhado com as proezas do batcomputador da série de TV. Qualquer que fosse o problema, bastava o Batman (vivido por Adam West, seu maior intérprete desde sempre) formular a pergunta. A resposta surgia em segundos, num cartãozinho perfurado. Hoje, estamos muito além do PC morcegoso. Você sequer precisa saber formular a pergunta adequadamente, e o google te devolve uma miríade de respostas. “Quem é Alan Best?”, você pergunta. “Você quis dizer Adam West”, o google te corrige, e já emenda a resposta: “O melhor Batman de todos os tempos.”
Ou seja, todo o conhecimento ao alcance de um clique. E o que temos? Terraplanistas.
A Biblioteca de Alexandria é brinquedoteca de jardim da infância diante do saber disponível na rede. Quer conhecer a obra dos maiores pensadores da humanidade? Digite (ou pronuncie) seu nome. Nem precisa soletrar corretamente. Tudo isso à mão, e o Brasil chama de filósofo uma criatura grotesca, desprezível e que sequer superou a fase anal.
Impossível discutir com Umberto Eco acerca da legião de imbecis agremiada pelas redes sociais. Parafraseando Olavo de Carvalho, o buraco é mais embaixo. Antes do facebook e similares, o imbecil – dada sua própria condição – era um sujeito atomizado. Seu alcance se restringia à mesa do bar ou à igreja neopentecostal extremista da esquina. Em ambiente virtual, seu ódio se espalha e reverbera, imantando intelectos do mesmo calão. As redes os articulam de um modo que seria impossível por si mesmos – afinal, são imbecis.
Enquanto isso, seguimos atuantes nas redes sociais. A impressão de atuação não passa disso: mera impressão. No facebook, por exemplo, constituímos um catálogo de almas que o Sr. Zuckerberg vende para quem bem entender. Não sabemos quem compra e com qual finalidade. O que recebemos em troca? Nada além de migalhas. Tenho 5000 amigos e um post recebe 12 curtidas. É como diria Vilém Flusser: não somos nós que programamos a máquina. É ela que nos programa. Trabalhamos o tempo todo para ela. Escravos digitais.
Em pleno século XXI, quem seria capaz de acreditar em kit gay ou na espetacular capacidade do Queiroz nos negócios? (Cadê ele, falando nisso?) Por mais dramática que possa ser, a resposta para esta questão é: muita gente. E nisso, mais uma vez, as redes sociais cumprem papel decisivo.
Na minha nada modesta avaliação, as eleições presidenciais de 2018 foram decididas pelo whatsapp. Se na utopia digital que eu imaginei estava prevista a superação da linguagem, o que a realidade esfregou na minha cara foi sua regressão a este peculiar fenômeno contemporâneo: o meme. A questão é que o meme não traz nenhum vínculo obrigatório com aquilo que o senso comum chama de realidade. O kit gay é um exemplo capital. Nunca existiu. Mesmo assim, foi alçado ao patamar de verdade. Ao invés de adentrarmos em definitivo a era do conhecimento, caímos no precipício da pós-verdade.
Cristãos defendendo assassinato. Trabalhadores defendendo a reforma da previdência. Pobres defendendo o acúmulo de capital dos super-ricos. Educação, arte e ciência sob ataque contínuo. Fundamentalismo religioso ameaçando qualquer lampejo de liberdade. Uma extrema direita de contornos fascistas mostrando suas garras mundo afora.
Duvido muito que sem a internet e as redes sociais estaríamos tão próximos deste pavoroso abismo. Evento cultural recente, a world wide web mudou a face do planeta. E continuamos a lidar com ela segundo parâmetros de um mundo analógico. Não está funcionando. Enquanto isso, o universo virtual segue sem limites, leis ou regulamentação. Mas tem donos – que, através dele, se apropriam também do mundo físico.
Cheguei a acreditar que éramos nós que constituíamos a rede. Hoje, nos vejo aprisionados nela. A utopia digital que ousei sonhar foi fruto de uma profunda ingenuidade – que poderia facilmente chamar de otimismo. Logo eu, que sempre me considerei um pessimista. Hora de voltar pra terapia e rever isso aí.