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Márcio Jr.
Márcio Jr.

Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. / marciomechanics@hotmail.com

GUERRILHA POP

Chato mesmo é acreditar na chatice

| 20.04.19 - 09:21

Esta é uma daquelas velhas questões de “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”. Eu é que não vou mergulhar na etimologia da palavra, mas chato é o nome popular da pediculose pubiana. Se é que alguém não se lembra, trata-se de uma doença sexualmente transmissível onde um parasita enche o nosso saco. Literalmente. De forma que o paralelo faz todo o sentido.
 
Não sou muito afeito a conceitos que se pretendem universais. A vida é muito complexa para que os fenômenos se mantenham inalteráveis independente de época, cultura, região, circunstância. Mas hei de convir que pouca coisa tende mais à universalidade do que um chato – e não estou falando do parasita. Geralmente, quando consideramos alguém chato, muitas outras pessoas têm a mesma opinião. Sei disso porque sou um deles. Pode perguntar pros meus amigos, mãe, esposa e filhos.
 
 
Na contramão da potencial universalidade do indivíduo chato, existe a chatice atribuída às – digamos assim – coisas. É esta que me preocupa. Principalmente quando usada como argumento.
 
Os antenados e descolados dos anos 90 lançavam mão desse sofisma com frequência avassaladora. Meus jornalistas e críticos favoritos, inclusive. Pink Floyd, Emerson, Lake & Palmer e quaisquer representantes do rock progressivo eram chatos. Legal era Ramones. O cinema de Godard era considerado insuportável, assim como o de Glauber Rocha. Bom mesmo era Roger Corman e Zé do Caixão. Ópera e música erudita? Chatice do cacete. Teatro então, nem se fala. “Vá ao teatro, mas não me chame”. 
 
Acredito que esta atitude estava diretamente ligada ao período que o país atravessava. A república bananeira havia saído de uma sangrenta ditadura há pouquíssimo tempo. Então, estávamos mais interessados em a) falar o máximo de merda possível, sem muita responsabilidade, já que não havia mais censura; b) varrer para debaixo do tapete uma etapa tão vergonhosa, uma vez que ninguém em sã consciência – nem mesmo a direita mais apoplética – gostaria de se ver novamente sob o jugo dos milicos. Como tal página da história parecia definitivamente virada, evitá-la sugeria um caminho menos doloroso. Hoje, pagamos um preço altíssimo por não lidar de forma séria e comprometida com questões tão... chatas. 
 
Quem fez frente à ditadura foi, grosso modo, a turma de sempre: movimentos sociais, professores e intelectuais. Sem militares no comando – e loucos para esquecê-los –, parece que a intelectualidade perdera o sentido. Desbunde e tempos mais leves eram um desejo palpável. Por este viés, chata era qualquer coisa complexa e ambiciosa. Pastei muito nesse mato. 
 
De um ponto de vista empírico, aquilo que desafia minha compreensão é chato. Um filme, um livro, uma aula. Por outro lado, quando passo a entender o funcionamento do objeto, ele se converte em pura delícia. Isso vale para uma música a princípio muito esquisita, mas que após sucessivas audições se revela espetacular. Vale também para uma equação matemática: depois que aprendemos a solucioná-la, nasce um gozo. 
 
Política é uma chatice sem fim? Constate que a esmagadora maioria das pessoas que sustentam essa opinião come na mão de terceiros. Sem saber.
 
Ainda em campanha, o presidente eleito caprichou: “Esse Brasil tá muito chato. Contar piada de cearense cabeçudo dá o maior problema do mundo, de gaúcho macho, de goiano... Não pode mais brincar no Brasil, cara”. A ocasião me trouxe à memória uma lista xerocada contendo dezenas de piadas racistas que circulou em Goiânia nos anos 80. Quem apontasse o mau-gosto daquelas anedotas era imediatamente taxado de chato e sem humor. 
 
Reduzir complexidades à mera chatice é uma cilada na qual caímos. O poço não tem fundo. E é um dos nascedouros da ignorância – que avança sem trégua. Daí o ataque frontal à educação, à arte e à ciência. Daí a plateia para Jesus na goiabeira, Terra plana e o escambau. Daí um picareta intelectualmente indigente se passar por filósofo a apitar rumos num país tomado por mentecaptos.
 
O fato é que toda vez que o conceito de chatice é utilizado de forma universal e inequívoca, privilégios se mantêm e preconceitos se solidificam. O conhecimento traz à tona a diversidade da vida e é um antídoto contra a tosquice reinante. Xarope, pra valer, é a ignorância.
 
E eu, sinceramente, espero que este texto não tenha sido chato demais.
 
 
 
 

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Márcio Jr.
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Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. / marciomechanics@hotmail.com

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