Faz um tempo que penso sobre a desigualdade de disponibilidade de tempo para artistas mulheres. Resolvi trazer essa reflexão para cá, para pensarmos juntos e, dentro do possível, buscar formas de amenizar esse impacto estrutural.
Desde 2020, atuo como jornalista numa secretaria de Cultura. Na Comunicação da pasta, acompanho de perto as demandas dos artistas junto às políticas públicas, especialmente durante a implantação das leis de fomento à cultura — Aldir Blanc, Paulo Gustavo e agora a Pnab. Essa vivência ampliou meu repertório profissional e pessoal, mas também escancarou uma realidade que me incomoda profundamente: as galerias públicas inauguram muito mais exposições assinadas por homens. E não estou falando apenas de projetos financiados por editais. É uma tendência que se repete, silenciosa e persistente.
Mulheres são maioria da população brasileira — 51,5%, segundo o Censo do IBGE — e também predominam nos cursos de artes visuais. No entanto, essa representatividade não se reflete nos acervos e nas oportunidades. No MASP, por exemplo, apenas 21,5% dos artistas representados são mulheres. Na Pinacoteca, esse número sobe para 24%, ainda muito distante da paridade.
Mas o problema não é só de espaço. É de tempo. Segundo o IBGE, em 2022, as mulheres dedicaram quase o dobro de horas semanais aos cuidados domésticos e familiares em comparação aos homens — 21,3 horas contra 11,7. Isso significa menos tempo para pesquisa, produção, inscrição em editais, circulação e formação de rede. E tempo é insumo essencial para qualquer carreira artística.
Ilustro com uma memória pessoal: um aquarelista renomado com quem fiz curso anos atrás contou que se trancou no ateliê até virar referência. Casado, pai, hoje vive em Portugal e viaja o mundo aquarelando. Mas uma mulher, mãe (ou não), poderia fazer o mesmo? A pergunta ecoa no silêncio ensurdecedor da conivência e conveniência secular.
A arte feita por mulheres exige mais esforço para se materializar. Criar requer solitude, estudo, tempo e oportunidades — elementos que nem sempre estão ao alcance do sexo feminino. Sim, há muitas mulheres artistas, mas poucas conseguem transformar sua prática em subsistência e independência financeira de fato. Criamos muito, eu sei. De filhos à arte, mulher cria. Mas até para concorrer com equidade em um edital, é preciso tempo para elaborar o projeto. E tempo é o que nos falta — entre louça na pia, comida no fogo, casa para limpar e cabelo por lavar.
Essa reflexão é um convite à escuta, à revisão de práticas institucionais e à formulação de políticas que considerem a desigualdade de gênero como um fator determinante, também, na produção artística. Porque criar não é o problema. O problema é quem pode continuar criando quando sua existência está vinculada aos bastidores de uma vida.
Ketllyn Fernandes, artista plástica autodidata, jornalista, redatora e social media