(Foto: Reprodução)
Em meados de fevereiro passado, estava numa livraria local em minha cidade quando me deparei com uma bela edição da Bazar do Tempo que pelo texto da 4ª. capa me ganhou ao ser rapidamente folheado.
Para quem não havia lido uma página sequer da obra da escritora foco do trabalho de Discacciati, foi amor à primeira vista. Comecei a ler o livro em paralelo a releituras de Viagem à Itália, de J. W. von Goethe e dias depois já havia encomendado o primeiro volume da tetralogia da Ferrante (A amiga genial, que ganhou seriado da HBO Max como My brilliant friend). Dias depois disso, me senti passeando com Discacciati pelos cenários dessa sua cartografia à tetralogia Ferranteana, concordando com Fabiane Secches quando diz no prefácio que Isabela é “uma artífice da narrativa” que nos consegue transportar no tempo e no espaço:
“O livro se apresenta como um guia que destrincha aspectos fundamentais da obra da Ferrante, ao mesmo tempo que é, ele mesmo, um trabalho literário...
“Em alguns momentos [para mim, quase todos] temos a sensação de caminhar junto dela [Discacciati] pelas cidades italianas, conversando sobre monumentos, vulcões, sereias, guerras, amores e desamores. (...)
Poderia fazer aqui uma resenha técnica e fria, mas vou falar como o viajante que se prepara para mais um périplo pela terra de Dante, Torquato Tasso e Tomasi di Lampedusa, principalmente destes, pois, afinal, esta viagem planejada tem como destino o sul da península. Mas não se iluda o leitor dessas notas.
Não estamos diante de um guia de viagens e sim de uma jovem autora que é uma “observadora perspicaz das paisagens interiores das personagens de Ferrante” e assim o leitor pode se valer de um mapa sentimental e psicológico dentro do que Secches denomina, apropriadamente, “adentrar o labirinto de Elena Ferrante”. Estamos, mesmo, diante de uma “geografia literária”.
Dividido em cinco partes, “Para além...” começa e termina em Nápoles, um dos meus destinos nessa planejada viagem de retorno à Itália.
Começo, portanto, essa aventura, como usual na véspera de meus périplos ao exterior, antes de cruzar a fronteira do desconhecido, embarco em uma jornada interior. Construo um mapa mental dos lugares que almejo conhecer, guiado por autores que os habitaram e os visitantes que os imortalizaram em livros.
Foi assim com a Coreia, o Japão e a China, quando conheci autores surpreendentes que me aproximaram daqueles países antes que o avião me anunciasse a chegada ao destino. E Isabela tem sido, assim, ao lado de Goethe, uma boa guia para o que sonho realizar na Primavera deste ano no sul da Itália.
As cinco partes do livro de Discacciati passa por Nápoles, a ilha de Ischia, Pisa, Florença e retorna a Nápoles – cidades que seguem, segundo a autora, as fases das protagonistas da obra de Ferrante e seguem as fases de vida das protagonistas da tetralogia (da infância à velhice) em que o leitor se depara com as aventuras (e desventuras) de Lenu e Lila.
Isabela Discacciati (Foto: Reprodução de Edit. Bazar do Tempo)
Discacciati conduz sua narrativa e sua pesquisa com um enquadramento histórico e suporte de dados, em que ganham relevo a sociedade agrária do sul do país, a violência nos relacionamentos domésticos e no coletivo, a influência do fascismo e as feridas do pós-guerra, o início da industrialização e a decadência deste processo, a migração de trabalhadores do sul para o norte do país, o movimento estudantil, a ação operária, o feminismo (o divórcio e o aborto), os anos de chumbo e, principalmente, a importância da religião, dos rituais e da sabedoria popular napolitana. O leitor deverá se divertir e se revoltar com as histórias dentro da História italiana, mas por certo descobrirá muito mais do que um mero interesse superficial por essa “cartografia fragmentada da Itália” – porque Discacciati é tudo menos superficial.
“Construir um mapa para a tetralogia é, de alguma forma, percorrer estradas comuns a todos nós. Uma cartografia fragmentada de uma Itália dividida entre norte e sul, marcada por uma história recente de desenvolvimento e decadência, liberdade e opressão. Que poderia representar de certa forma, nossos passos como humanidade, entre vales, onde tocamos as profundezas, e colinas, de onde vislumbramos novos horizontes. e Buscar Lenu nas ruas de Nápoles, nas praias de Ischia, em Pisa e Florença, cidades que também pertenciam à minha própria história, pareceu-me algo palpável durante a pesquisa.
Mas Lila, sempre fugidia e abstrata, eu tive de procurar nas paisagens do golfo. Em uma das minhas viagens a Nápoles, peguei um ônibus que me deixou na Piazza Sannazaro, uma praça muito movimentada com uma rotatória decorada por uma fonte, de onde desponta a belíssima escultura de uma sereia, muito diferente da sereia da Fontana delle Zizze, no centro histórico. Ali, o caos sonoro das buzinas se mistura com o cheiro da maresia, e o panorama do golfo é um descanso para os olhos.
A sereia, muito formosa, está posicionada em cima de um rochedo. Aos seus pés, um cavalo, uma tartaruga, um leão e um golfinho. Aos seus pés, um cavalo, uma tartaruga, um leão e um golfinho a sustentam para que ela possa, em um movimento de torção, segurar em um de seus braços uma lira, instrumento associado aos mitos da Antiguidade Clássica. O outro braço aponta para o alto, como se ela aponta para o alto, como se ela quisesse avisar que algo de terrível ou de esplêndido está prestes a acontecer.1
Entre os tantos escritores e personagens citados ao longo dessas duzentas e poucas páginas, escolhi dois para destacar, esperando que o leitor se interesse por este livro – Vergílio e Leopardi – dois poetas separados pelos séculos e que estão unidos ao solo italiano do sul. Na ponta de Posillipo, a poucos passos do mar repousam os bardos diz Discacciati – “O sepulcro de Vergílio fica aos pés da colina de Posillipo, no Parque Vergiliano, um monumento que oscila entre doses de beleza e sinais de abandono, e é conhecido também como parque dos poetas. É lá também, entre trilhas silenciosas que está o túmulo de Giacomo Leopardi, o poeta cuja obra Lila não pôde estudar, mas sobre o qual Lenu formula uma belíssima apresentação em um exame escolar, inspirada elos discursos da amiga. Leopardi passou os últimos dias de sua vida em Nápoles e poucos meses antes de sua morte (1837), aos 39 anos, escreveu o poema “La ginestra” [A gesta], que é considerado seu testamento lírico-filosófico. A composição faz referência à giesta, flor que cresce nas encostas do Vesúvio, o vulcão cuja erupção do ano 79d.C. destruiu as cidades de Pompeia e Herculano...a potência destruidora da lava do Vesúvio revela a condição da miséria humana, elaborada por Leopardi como propulsora de um movimento de solidariedade entre os homens.” (p.218)
Reler Leopardi foi o subproduto, não menos valioso, que tirei da leitura deste livro de Discacciati – e isso não é pouca coisa.
1 DISCACCIATI, Isabela. Para além das margens: a Itália de Elena Ferrante. 1ª. ed., Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024, 232 p. 20 cm.
*Adalberto de Queiroz é jornalista e poeta.