JORGE DE LIMA(*)
No dia 26 de fevereiro de 2025, participei como palestrante no evento "Quarta Cultural" em Anápolis. A iniciativa da Diretoria de Cultura da Prefeitura Municipal intitulada “Entre Versos e Acordes: Uma Viagem pelo Modernismo” reuniu música de qualidade, interpretação de poemas e duas palestras (com debate) - em que dividi o palco com o professor Carlos Alberto Neiva.
O professor Neiva se ocupou da poesia de Drummond, fazendo uma excelente síntese da vida e obra do poeta mineiro. De minha parte, falei sobre "O quarteto dos poetas de Deus" do Brasil.
Este artigo traz para o leitor de A Redação uma síntese da poesia do primeiro deles – Jorge de Lima (1893-1953), que assim é referido pelos biógrafos e enciclopedistas: Médico, político, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro.
No entanto, mais apropriado seria dizer: Jorge de Lima, poeta, católico; sobretudo, Poeta e poeta de qualidade.
Jorge de Lima (Foto: Reprodução)
Retomo assim, a série de ensaios sobre “Poetas católicos do Brasil” que publiquei em 2020, realçando a necessidade de as novas gerações conhecerem a poesia de Jorge de Lima, propondo aqui uma avaliação crítica das obras dele, de Murilo Mendes, Schmidt e Tasso da Silveira, a partir de uma mirada que não os deixe marcados apenas com o selo da “modernidade”, mas que amplie a visão do leitor para o sentido místico, metafísico dessa poesia que marca quase um século de produção específica e de valor nem sempre devidamente reconhecido no cenário da poesia brasileira.
Da tríade que se amplia a um quarteto, tomo Jorge de Lima como o primeiro, de quem é fácil demonstrar a riqueza imagética e o “valor de Eternidade” que lhe atribuíra o católico Mário de Andrade, figura de proa do modernismo brasileiro e ele próprio católico, embora “católico que fingia não o ser”, para usar a expressão do crítico José Carlos Zamboni.
Sim, é preciso dizer e repetir, para que as novas gerações tomem conhecimento da grandeza destes poetas. Jorge de Lima é antes, e sobretudo, um poeta católico e este poeta está situado bem acima do rótulo restritivo de poeta modernista.
O poeta que aos 59 anos consuma a sofisticada obra final – “Invenção de Orfeu”, poema com cerca de 10 mil versos –, é também o escritor perfeccionista do “Livro de Sonetos”, o parceiro-poeta de outro autor católico, o amigo Murilo Mendes, onde se torna “o visionário multiplicador de imagens ameaçadoras” de “Tempo e Eternidade”, e o viajante em busca de “um valor de eternidade, de permanência” em “A túnica inconsútil”:
“PORQUE o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.”
Aí está a chave de leitura por excelência que as academias não podem (ou não querem) compreender. A poesia propriamente metafísica de Jorge de Lima, que no dizer de Fábio Andrade, citando estudo de Roger Bastide, acentua que esta é na poesia de Jorge uma vertente que nasce com “a descoberta de um Deus acima do tempo e do espaço”, que “seria feita pela figura do Cristo, humana primeiro, depois divina” (Bastide):
“A poesia propriamente metafísica de Jorge de Lima nasce com essa descoberta, do conflito entre a experiência da pluralidade sensível do mundo e a ideia de uma fonte transcendente única e acima das contingências do tempo. Bastide vê na celebração da multiplicidade do mundo a primeira forma que Jorge de Lima encontra para celebrar a criação e converter a ideia da unidade divina palpável e menos ameaçadora (a Unidade “abrasa, funde e destrói”, o poeta quer mais registrar a nostalgia desta ideia do que reivindicar sua posse). Aparece em sua poesia, então, o interesse pelos milagres de multiplicação, presentes na “diversidade das coisas” e na experiência amorosa”.
Essa poesia metafísica com nuances repetidas em Jorge aparece com outros aspectos mais ou menos refletidos na luz dessa “experiência amorosa” em Murilo Mendes, em igual ou menor medida em Augusto Frederico Schmidt e, seguramente superior, em Tasso da Silveira. Afinal, como ressalta o crítico-professor Fabrício Tavares de Moraes, para estes poetas e para outros escritores cristãos, a literatura é o verbo e a imaginação postos em equilíbrio, numa resultante em que “palavra e sentido convergem-se na beleza do Verbo que se fez carne” (o Cristo).
Da perspectiva deste cronista, a visão é a de que Jorge de Lima está acima do rótulo de modernista e pode ser visto, lido e apreciado como um poeta metafísico. E, ao se aproximar de um poeta (seja ele católico ou budista), cabe ao cronista o dever de “sacerdote da imaginação”: zelar pelo altar da obra. Poetas de qualquer crença mentem, fingem, pensam – profundamente, no mais das vezes; agem, atuam na vida cotidiana em maior ou menor grau de ativismo (no mais das vezes com muita generosidade).
Ora, como nos adverte Paul Mariani, quando estamos diante da vida (e da obra) de um poeta é mandatório que lhes observemos com precedência os poemas que estes nos deixaram – esta a primeira tarefa, pois, afinal “são os poemas a razão de nos aproximarmos das biografias dos poetas” e só há um critério de permanência da vida do poeta e que a tudo supera: a qualidade da poesia que estes nos legaram.
Como se sabe, o arco de tempo, que vai do nascimento desta plêiade de poetas católicos aqui examinados – do nascimento do primeiro desses poetas até à morte do mais longevo, é de parcos 82 anos; ou seja, estamos falando de menos de um século de poesia (1893 a 1975). Isto é um piscar-de-olhos na história da literatura universal; nem por isso, seria uma piscadela a que o leitor pudesse ficar alheio.
É do crítico alemão Theodor Haecker, falando sobre a poesia de Virgílio, a descoberta da tríade de motivação para a poesia: “labor, pietas et fatum” (trabalho, piedade e destino). Em Jorge de Lima, quando nos debruçamos sobre sua vida e obra, salta o trabalho do médico, a generosidade pessoal e o amor ao próximo como a face primeira do homem público e do amigo, que na esfera do relacionamento privado dá mostras de sua intensa humanidade (como entre outros, o atestou o escritor francês Georges Bernanos).
No sentido original de piedade, eis o poeta cristão pleno de devoção e de respeito às coisas divinas, fazendo seus versos renderem homenagem constante a este “dom do Espírito Santo”:
“Tenho movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros, como as estrelas do mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, Amém!”
O lugar de Jorge de Lima na poesia brasileira, já se sabe, está mais do que assegurado e respaldado por uma fortuna crítica relevante. Nessa obra poética que é, afinal, a afirmação de uma verdadeira “transfusão de luz nos seres opacos”, Jorge nos conduz por uma estrada estreita, pois preferiu o caminho mais difícil. Talvez por isso mesmo, Mário de Andrade tenha visto na poesia de Jorge de Lima o viés do “inimitável” – “poeta que não se sujeita à menor imitação” e que “é, na melhor expressão da palavra, um [poeta] tradicional, apresentando em suas poesias, perfeitamente modernas e apegadas à poética moderna, um valor de eternidade, de permanência, que não sinto na maioria dos nossos poetas contemporâneos “.
Eis a limitação do católico que se esconde: Jorge de Lima é mais que moderno, é poeta metafísico, que supera a periodização e os estilos de época. Jorge de Lima transforma água em vinho. Para nós, leitores da poesia supra metafórica de Jorge, é uma graça que se alcança: deixar-nos levar pela abundância de imagens, pela riqueza da linguagem que não é deste mundo apenas e, no entanto, dele não se deixa desprender de todo, um poeta de uma espiritualidade que não é abstrata nem dissociada do mundo real.
A poesia de Jorge de Lima leva o cronista a pensar, a exemplo do que Paul Mariani sublinhou, falando sobre a poesia de Richard Wilbur, “como outros escritores da tradição cristã, eu compartilho com Flannery O´Connor e Richard Wilbur (e com Dante, com Cervantes, com Gerard Manley Hopkins, e com John Berryman) uma linguagem que paga seu tributo e rende homenagem à esplêndida energia do mundo físico [real], tanto quanto ao esplendor e à consolação advindas do mundo espiritual”.
Elevando o cotidiano à esfera do misterioso, poetas como Lima, Murilo Mendes, Schmidt, Adélia Prado, João [Fernandes] Filho, Sônia Maria Santos, Wladimir Saldanha, Tasso da Silveira proveem o leitor uma “poesia do sentido da presença eterna de Deus nas coisas passageiras deste mundo” (Mariani) e esta manifestação acontece em momentos de graça e se faz de pequenos achados criativos.
A poesia de Jorge de Lima é perpassada pelo mistério infuso de um mundo que não foi criado por nós, seres humanos. Algo que se exala do capítulo 9 do livro salomônico de Provérbios, como “o banquete da Sabedoria”: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e a ciência do Santo, a prudência”. E cabe repetir com Paul Mariani que não se trata apenas da elevação do quotidiano ao nível do espiritual, mas a elevação do simples ao nível da suma experiência só disponível no sopro do Alto – uma pequena voz entre “as vozes do homem”:
“E sua língua se sumiu diante das vozes que vinham da inteligência,
dos sonhos e da memória.
E outras vozes saíram de seu passado e da noite secular da confusão das línguas.
O homem não sabia se era o bom ou o mau ladrão.
E suas vísceras foram crucificadas uma a uma e seus membros
suaram sangue e se afundaram na terra.
E seus ossos foram reduzidos à poeira sonâmbula
que erra pelas estradas até o dia do julgamento final.”
O poeta sacramental clama ao leitor que ainda não foi capaz de saber de sua ligação umbilical com a linguagem que só se realiza no Verbo divino. É o que sai “das profundezas do pecado original”, clamando: “Ó pais primitivos que das profundezas do pecado original/me transmitistes o vosso sangue revoltado/que corre nas minhas vísceras, /que corrompe as minhas mãos, /que cega os meus olhos e o meu entendimento,/quanto vos sou semelhante…”
“Ó pais primitivos,
que me enviastes para uma existência que eu não solicitei,
e para a qual cheguei nu, humilhado e chorado,
eu vos perdoo pelo sangue de Cristo que me obrigastes a derramar,
pela traição de Judas meu irmão e teu filho,
pela negra expiação que me esmaga na Terra!”
E os leitores que buscarem em Jorge de Lima a marca da poesia metafísica e do sentido místico do cristão, encontrarão mais do que as marcas temporárias de uma geração e de um tempo. Lerão versos eternos de um “poeta de Deus”; um que extasiado exclama:
“E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;
sou a balança, a criação, a obediência;
sou o arrependimento, sou a humildade;
sou o autor da paixão e morte de Jesus;
sou a culpa de tudo.
Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!
*Adalberto de Queiroz é jornalista e poeta.
1Original publicado no livro de minha autoria “Os fios da escrita”, Ed. Mondrongo, Itabuna (BA), 259 pág., 2020.
2LIMA, Jorge. “Obra completa”, vol. I, 1ª. ed., Ed. J. Aguilar, 1959, pág. 425. Todas as demais citações de poemas de JL são desta edição.
3ANDRADE, Fábio de Souza. “O engenheiro noturno”: a Lírica final de Jorge de Lima. São Paulo: Editora da USP, 1997, pág. 39.
4MARIANI, Paul. “God and the Imagination: on poets, poetry, and the Ineffable”, University of Georgia Press, Athens, Georgia, 2002, pág. 113.
5Cf. Nota 2 (supra).
6ANDRADE, Mário. “Nota preliminar” ao livro “A túnica inconsútil”, in: “Jorge de Lima/Obra completa, vol. I, pág. 419 (1959, cf. nota i.).