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O conceito de intertextualidade é apresentado em sua rica história e complexidade pela pesquisadora francesa, Tiphaine Samoyault, em seu tratado intitulado “Intertextualidade”. Neste trabalho, Samoyault informa que a noção de intertexto apresenta tanto uma significação mais estrita quanto uma mais extensa, informando que de uma aparente banalidade a conceituação tende a migrar para uma abordagem mais sofisticada na teoria do conhecimento sobre as fontes textuais que permeiam a literatura. Seja como for, o conceito veio para ficar, mostrando-se bastante funcional.
Num panorama geral, o intertexto diz respeito a todo diálogo manifesto ou implícito entre textos, tanto numa perspectiva atemporal quanto espacial, que no universo relativístico einsteiniano formam um contínuo, o que foi captado pela intuição artística de mestres consumados da ficcionalidade literária do século 20, de que Marcel Proust e seu colossal “Em Busca do Tempo Perdido” constituem exemplo máximo. Assumindo de forma rápida o roteiro cinematográfico como a manifestação literária no cinema, o filme lançado há pouco pela Netflix sobre a vida de Maria de Nazaré traz uma licença poética singular em termos de intertextualidade e seu conjunto de referencialidades.
Estrelado pelo excelente ator veterano, Anthony Hopkins, já laureado com o Oscar da academia hollywoodiana, com performances que deram vida a personagens tão díspares quanto o célebre canibal Hannibal Lecter, o deus asgardiano Odin e o pai da psicanálise, Sigmund Freud, Hopkins encarna o rei Herodes nesta produção recém-lançada pelo maior serviço de streaming do mundo, emprestando seu reconhecido talento artístico para dar vida ao rei de triste memória nos eventos que são narrados nos Evangelhos em torno da vida de Maria de Nazaré, seu esposo José e o menino Jesus, cuja missão marcaria de forma definitiva a história humana em seus desdobramentos infinitos.
Sob a direção de D. J. Caruso e roteiro de Timothy Michael Hayes, o filme lançado em dezembro de 2024 traz em seu elenco, além de Hopkins na pele do rei Herodes, os jovens atores israelenses Noa Cohen e Ido Tako nos papéis de Maria e José, o que despertou críticas de teor geopolítico e ideológico, como tem se tornado comum nos conturbados tempos de mundo perpetuamente online e sem ter mais o que fazer. No entanto, o que desperta a curiosidade em relação ao filme é o conjunto de licença poética e intertextualidade de que lança mão o roteirista Michael Hayes.
Em função da própria natureza do cinema, existe uma impossibilidade de transposição literal de grande parte das obras literárias para a telona. Mesmo que a obra não seja tão extensa, a dinâmica cinematográfica pede adaptações para tornar a releitura mais atraente para o espectador. Em “Virgem Maria” não foi diferente. Em seu roteiro, alguns elementos da narrativa evangélica são deixados de lado, enquanto outros são sobrepostos ao texto original da peça literária ou da narrativa dos livros sagrados.
O roteirista de “Virgem Maria” preservou, por exemplo, elementos como a concepção virginal de Maria, dando um enfoque, no entanto, bastante peculiar à narrativa, pois centra a sua trama no peso social da gravidez que causou estranheza pelo fato de Maria ainda não ter consumado o casamento com José no momento em que a sua condição é anunciada. (Alerta de spoiler). Apesar de o anjo Gabriel tê-la avisado de que conceberia de maneira excepcional, como se encontra nos textos sacros, o emissário celestial no filme não aparece a seu esposo José com a finalidade de elucidá-lo, como se encontra descrito no Evangelho de São Mateus em seu primeiro capítulo.
Dessa forma, o pai humano de Jesus de Nazaré teve de guiar-se pela sua intuição e pelo amor à jovem esposa. Não somente isso. Teve de defendê-la à força. E neste ponto o roteirista Haye foi admirável em seu recurso à intertextualidade. No caso, a uma espécie de autointertexto, pois retira uma passagem do Evangelho de João, em seu oitavo capítulo, que narra a história da mulher adúltera trazida à presença de Jesus como uma armadilha da astúcia sacerdotal do tempo, pois se o Cristo negasse o apedrejamento, que era a punição indicada, estaria negando a lei de Moisés e, portanto, estaria em apuros diante da lei judaica. Se o indicasse, estaria negando a lei de amor de que se fazia o emissário por excelência.
Jesus Cristo resolve o dilema dizendo à multidão que a primeira pedra deveria ser atirada por aquele que estivesse sem pecados. Ninguém se atreveu. A sabedoria divina atingiu a consciência dos presentes em cheio. Michael Haye traz para o filme que roteiriza uma cena bastante parecida, em que Lúcifer se mistura à multidão para acusar a jovenzinha de adultério, indicando que ela deveria ser lapidada conforme mandava a lei. À turba cada vez mais hostil e já propensa ao ato sinistro se opõe José, de forma bastante poética e amorosa, cobrindo Maria grávida com seu corpo, de maneira aconchegante e protetora.
Antes que alguém lapidasse sua amada, José se antecipa e atira uma pedra grande em Lúcifer, desfazendo o magnetismo que envolvia a turba prestes a cometer a insanidade. A presença da sinistra personagem funciona também como uma intertextualidade a uma outra peça cinematográfica de 2004, “A Paixão de Cristo”, do diretor e ator Mel Gibson, que apresenta Lúcifer abeirando-se de Jesus nos momentos dramáticos de sua existência, quando em atrito com multidões hostis, como a indicar que o adversário estava sempre nos bastidores atuando para que grupos indisciplinados atentassem contra a integridade física do filho de Maria. Heyes resgata esse etos gibsoniano de forma precisa em “Virgem Maria”.
Embora haja quem afirme que a narrativa da mulher adúltera possa ser uma interpolação, ou seja, teria sido inserida posteriormente por copista piedoso, sua excepcionalidade ética e literária justifica plenamente sua permanência. E insere o debate no universo da concepção de Aristóteles, quando afirma em sua “Poética” que se o historiador narra o que aconteceu, o poeta narra aquilo que poderia ter acontecido, sendo, portanto, mais filosófica a narrativa poética. No caso da mulher adúltera, a narrativa teológica.
Outro intertexto que dialoga com o recurso do roteirista, constituindo-se também um exemplo da proposição aristotélica, encontra-se na exegese apresentada na obra “O Tratado dos Evangelhos”, do Dr. Emídio Silva Falcão Brasileiro. Ao tratar dessa passagem sobre a mulher adúltera, levanta o pesquisador questionamentos instigantes e remissivos ao contexto da poética aristotélica:
“Não se sabe se aquela mulher voltou a praticar o adultério. É mais provável que tenha se tornado uma discípula fervorosa do Cristo. Também não se sabe se era noiva ou casada, mas, devido a esse ensinamento do Cristo, é provável que tenha suportado e superado com dignidade as dores morais advindas dos seus familiares e dos seus entes queridos. Não se sabe, ainda, o que ocorreu com o seu parceiro de adultério, porém, é provável que ela tenha usado do perdão e da misericórdia do mesmo modo que recebera do Messias”.
O conceito de intertextualidade resulta, pois, em um instigante achado teórico e uma excelente performance cultural que contemplam o universo da cultura em suas múltiplas dimensões, dentre as quais a do sagrado.
Gismair Martins Teixeira - Doutor em Letras pela UFG, com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.
Maria do Socorro Pereira Lima - Mestre em Performances Culturais pela UFG; com bacharelado em Relações Públicas e licenciatura em Artes Visuais pela UFG; professora da Rede Municipal de Educação de Goiânia.