Na virada de século, houve todo um boom de listas dos melhores dos últimos cem anos que encerrava aquele ciclo de tempo. Na literatura não foi diferente. Coletâneas diversas foram formadas. No gênero literário do conto, o pesquisador e professor Ítalo Morriconi foi encarregado pela Editora Globo de elaborar uma coletânea que passasse a limpo as melhores produções do gênero no século da bomba atômica e da chegada da humanidade à lua.
Nomes de diversos períodos e tendências literárias foram elencados por Morriconi, que os agrupou segundo especificidades que ele esclarece na introdução de “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX”. Da coletânea consta o nome de Bernardo Élis, único escritor goiano a integrar a Academia Brasileira de Letras, que comparece na seleção de Ítalo Morriconi com o seu excepcional “Nhola dos Anjos e A Cheia do Corumbá”, cuja imagem narrativa evoca à mente do leitor, por associação, os transbordamentos urbanos do córrego Botafogo nas chuvas torrenciais da estação chuvosa goiana com seu aguaceiro assustador.
A abertura literária de “Os Cem Melhores Contos...” coube com toda justiça a Machado de Assis, cuja narrativa intitulada “Pai Contra Mãe” remete em sua estruturação a uma intertextualidade neotestamentária. Nesta narrativa curta, Machado apresenta o personagem Cândido Neves, cuja indolência para o trabalho árduo vai sendo descrita pelo autor de maneira a preparar o leitor para entender como Neves acabou tornando-se um caçador de escravizados em fuga. À falta de aptidão para os demais ofícios, Cândido Neves opta pelo infame trabalho, que funcionava como uma atividade autônoma no tecido social da época, a segunda metade do século 19.
Nesta particularidade, o conto de Machado de Assis traz um pouco do contexto da geopolítica internacional daquele período. Sabe-se que a Inglaterra foi a grande patrocinadora da libertação dos escravizados brasileiros, não por conta de preocupações humanitárias, longe disso, mas por motivo de interesses mercantis. Em “Pai Contra Mãe”, Machado de Assis detalha algumas das profissões que foram sendo substituídas pela nova realidade socioeconômica daquele idos, tal como presentemente acontece com os empregos substituídos por IAs, guardadas todas as proporções entre um contexto e outro.
Cândido Neves, irônico nome para alguém que exercia a sórdida profissão de caçador de escravizados, vê-se na condição de ter que levar o seu filho recém-nascido para um espaço público de adoção forçada, uma vez que o seu trabalho oferecia a ele uma renda bastante intermitente, impossível para criar um filho. No desespero do pai que ama o seu rebento, de que naturalmente não quer ver-se livre, identifica uma escravizada em fuga, que poderia render-lhe uma substancial recompensa. Ele deixa o filho com um farmacêutico por alguns instantes e vai à caça da moça escravizada.
Ao compreender a situação, após comando de prisão, Arminda, a escravizada, clama por misericórdia. A fim de sensibilizar seu captor, afirma estar grávida, completando que seu escravizador era um homem muito cruel. Ele certamente a espancaria, o que em sua condição poderia causar um aborto. Cândido, cujo nome é um índice da proverbial ironia machadiana, não se sensibilizou. Ao entregá-la ao seu opressor social, Neves pegou a pequena fortuna, mas ainda pôde assistir às agressões iniciais, suficiente para levar Arminda a perder o filhinho. Para escamotear a própria consciência, Cândido Neves encerra o conto afirmando sobre os recém-nascidos em geral: “Nem todas as crianças vingam!”
No evangelho de São Mateus, em seu capítulo 18, dos versículos 23 a 35, Jesus Cristo narra a parábola do credor incompassivo, cuja história apresenta ao leitor um homem sendo cobrado pelo rei por conta de uma dívida altíssima. O devedor, na impossibilidade de pagá-la, clama por misericórdia. Compadecido, o soberano lhe perdoa. Mas, ao sair da rica propriedade, o homem que fora perdoado encontra pela frente um outro que lhe devia ínfima quantia. Pegando-lhe pelo pescoço, cobra de maneira efusiva o valor a ele devido. Seu devedor lhe roga misericórdia. Insensível, o credor chama as autoridades e o entrega à prisão.
Os dois episódios tiveram testemunhas em comum, que correram e contaram ao soberano o que havia se passado. Ao chamar o insensível credor à sua presença, o soberano lhe fez uma severa repreensão e deu a ele o mesmo destino daquele que devia menos. Jesus encerra a parábola afirmando que assim procederá o pai celestial com todos aqueles que agirem como o credor incompassivo. Ao analisar essa parábola em sua excelente e instigante obra de exegese e hermenêutica evangélica, “O Tratado dos Evangelhos”, o pesquisador Emídio Silva Falcão Brasileiro apresenta uma instrutiva abordagem histórica acerca dessa parábola, contextualizando o montante de ambas as dívidas em moeda corrente dos tempos atuais, pondo em evidência o quão grande era a diferença do saldo devedor de um e outro, enfatizando com isso que o rei perdoara uma dívida expressivamente maior, enquanto seu servo fora incapaz de perdoar uma pequenina dívida.
No contexto da hermenêutica bíblica e literária, os textos sagrados e de literatura podem apresentar uma quádrupla abordagem, cujo anagrama redundaria na palavra “alma”. Assim, uma análise pode ser: alegórica, literal, moral e anagógica. Esta última compreende bem a possível relação entre uma ficcionalidade literária e a textualidade sacra de todos os tempos e lugares, pois considera a relação mística possível entre o literário e o sagrado, de cuja relação o maior exemplo é “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Neste contexto, e feitos os ajustes necessários, a postura do protagonista do conto de Machado de Assis, Cândido Neves, assemelha-se de forma incisiva à postura do credor incompassivo, pois em situação muito semelhante de vida não consegue nutrir a empatia necessária com a dor ainda maior do próximo, que vivencia uma conjuntura de dificuldade semelhante. No caso, a iminência de perder o filho para sempre.
Ou seja, faltou candura a Cândido Neves, cujo sobrenome remete à brancura da neve, que por sua vez remete ao símbolo da pureza; mais especificamente, ainda, a pureza de coração. À falta de compaixão de Neves, pagou com a vida o rebento de Arminda, a escravizada de origem africana daqueles tempos sombrios quando um ser humano podia fazer as vezes de mercadoria de seu próximo.
Gismair Martins Teixeira é Doutor em Letras pela UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Seduc-GO.
Letícia Martins Lima é bacharel em Relações Internacionais pela UFG.