No livro “Cristianismo: A Mensagem Esquecida”, o escritor Hermínio C. Miranda apresenta uma instigante abordagem sobre a história do cristianismo em suas origens e no seu desenvolvimento séculos afora. Ao enumerar as diversas fragmentações do movimento cristão nos séculos iniciais, Hermínio Miranda faz alusão a uma corrente específica denominada de pneumatismo.
Informa este autor, no capítulo em que trata da atividade apostólica do apóstolo São Paulo, que em sua etimologia grega a palavra “espírito” corresponde a “pneuma”. Acrescente-se o sufixo ismo ao radical do termo e se tem a palavra “pneumatismo”. Ajustando-se o termo às línguas modernas, dentre as quais o português corrente, tem-se literalmente a palavra “espiritismo”, cuja práxis mediúnica, segundo Miranda, fazia parte das atividades cristãs do recuado período proto-cristão.
Dessa forma, constata-se que ao adotar esse termo para designar a sua então nova doutrina, fundamentada no que seria o diálogo entre a comunidade sediada na matéria e a humanidade sediada na dimensão extrafísica, Allan Kardec espanava a poeira do tempo e recolocava em circulação um termo que a partir daí ganharia uma cidadania universal, expressando, porém, uma doutrina em linguagem mais contemporânea por ele sistematizada e consolidada por seus continuadores.
Esse movimento de espiritualidade, cuja etimologia viria a diferenciá-lo do termo análogo “espiritualismo”, que também opera na categoria dos denominados fenômenos mediúnicos, ganharia uma extraordinária projeção na cultura brasileira, como pode ser constatado nas abordagens de pesquisadores como o sociólogo Reginaldo Prandi, a antropóloga francesa Marion Aubrée e a historiadora Mary Del Pryore.
No Brasil, Chico Xavier redimensionou o pensamento kardequiano a partir de sua extraordinária literatura, que já conta na atualidade com cerca de 600 títulos publicados, conforme seus seguidores mais próximos. O médium Divaldo Pereira Franco, por sua vez, contabiliza pouco mais de 300 volumes editados. Ou seja, ambos os expoentes doutrinários do espiritismo possuem somados quase mil títulos.
Tanto no que é apresentado pelo sistematizador do espiritismo, quanto naquilo que reverberam Chico Xavier e Divaldo Franco, existiria uma estreita relação afetiva entre os dois planos existenciais da concepção espiritista. Em outras palavras, o vínculo de amizade e parentesco se mantém coeso e funcional em todos os sentidos, após a morte corporal. Neste contexto, os amores se perpetuam, podendo um pai ou uma mãe, que tenham tido uma vida pautada na ética e nos valores nobres, acompanhar os filhos em sua jornada pelas dificuldades da vida.
Em seus escritos, Allan Kardec assevera que os fenômenos e as ideias espíritas sempre existiram ao longo da história humana desde sua origem. Nas variadas fontes de registros culturais da humanidade, a literatura de ficção também tem servido à apresentação do imaginário espírita. No ano de 1516, por exemplo, Thomas More publicou um livro fundamental ao gênero utópico. A obra recebeu justamente o título de “Utopia” e seu impacto fez com que o gênero ganhasse fôlego.
Também de origem grega, o termo significa em sua origem um “Não Lugar”, pois apresenta uma sociedade estruturada em um funcionamento ideal que beneficia a todos os cidadãos de uma magnífica ilha, o que acaba funcionando como uma ironia, já que em nenhum lugar existe uma sociedade totalmente provida de bem-estar. Ao descrever o aspecto espiritual da vida dos cidadãos de “Utopia”, More faz o seguinte relato:
“Porque os mortos, segundo os preconceitos da maioria dos utopianos, assistem às conversações dos vivos, ainda que invisíveis ao pequeno alcance dos olhos dos mortais. Não conviria à sorte dos bem-aventurados não serem livres de se transportar aonde bem lhes parecesse; e poder-se-ia justamente acusá-los de ingratidão, se se mostrassem indiferentes ao desejo de rever os amigos a que na terra estavam presos pelos laços do amor e da caridade”.
Na sequência, assevera: “Mas tal não poderia dar-se visto que o amor e a caridade, longe de se extinguirem após a morte no coração dos eleitos, devem provavelmente crescer, como todas as outras perfeições. Por conseguinte, segundo as ideias utopianas, os mortos se misturam à sociedade dos vivos e são testemunhas de suas ações e de suas palavras”.
Conclui o autor da narrativa de “Utopia”, através da voz de seu personagem Rafael, que esteve na magnífica ilha com suas cidades maravilhosas: “A crença na presença dos antepassados inspira a este povo uma confiança extrema nas suas ações, porque lhes assegura a proteção e o apoio de poderosos defensores; além disso, impede uma enorme quantidade de crimes ocultos”.
Em “Nosso Lar 2: Os Mensageiros”, filme baseado na obra "Os Mensageiros”, da psicografia de Chico Xavier, atribuída ao espírito André Luiz, tem o leitor uma narrativa extremamente aproximada das palavras de Thomas More em sua clássica novela que fundamenta um gênero. Sob a direção de Wagner de Assis, o filme traz para as telas a narrativa em torno das atividades que os mortos desempenham em benefício dos vivos, protegendo-os de outros mortos que escolheram o caminho do mal.
Na esfera das ideologias políticas, “Utopia” descreve uma sociedade em moldes socialistas, mas sem abrir mão da extraordinária força psíquica da religiosidade humana; força psíquica que é atestada por importantes pesquisadores e pensadores da cultura humana, como Emily Durkheim, Sigmund Freud e Mircea Eliade, que se debruçaram sobre as forças titânicas da mente, integrantes e constituintes da religiosidade humana.
Gismair Martins Teixeira - Doutor em Letras pela UFG, Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO.