Ainda não assisti o aclamado "Ainda estou aqui" (2024), mas faço votos pela torcida na corrida do Oscar para o cinema nacional. É justo, é muito justo, é justíssimo.
Justo e merecido é a série da Netflix sobre o piloto brasileiro, Ayrton Senna (1960-1994). Um show de produção e reprodução de cenas automobilísticas de mais de três décadas atrás. Mas não é só isso, reviver a história de Senna é rever um histórico colonialista e poder esbravejar um grito nacional de superação e autenticidade.
Senna não foi apropriadamente um diplomata e isso fica bem explícito até mesmo pelas escolhas de suas "namoradas". Ele foi um pequeno burguês, bem educado mirando alto a oligarquia europeia, desbravando um território ainda pouco explorado por brasileiros, salvo os nascidos em berço de ouro e de línguas afiadas, como o veterano, Nelson Piquet.
A tortuosa curva em S, de Silva ou Senna, envolveu muito mais que famosos ditados de gênios da psique: "onde estiver seu medo, aí está sua tarefa" (Carl Jung).
A trajetória deste herói nacional está mais próxima à história baseada em fatos reais do filme "Green Book" (2019), do que nossa vã filosofia pode imaginar. "Green Book" foi um livro guia de hotéis para negros da década de 60, nos EUA. Os negros não podiam se sentar à mesa em salões públicos de hotéis, ou usarem os banheiros dos brancos. Mas curiosamente, um grande pianista negro foi reconhecido por seu talento e contratado pela elite branca americana para uma turnê no sul do país, onde o racismo radicalmente atuava. Numa das mais conflitantes cenas do filme o músico questiona o seu condutor: "se eu não sou negro e nem branco o bastante, o que eu sou afinal?"
Foi nesse limbo, que identifiquei o conflito do nosso herói tupiniquim. Se ele não era nem branco o bastante para os gringos, nem rico o bastante para a oligarquia mundial, quem era ele?
Sim, o S é de selvagem. Sua garra, sua persistência e selvageria serviram de fúria para ferver o seu sangue latino. Agressivo nas pistas, kamikaze do kart, Senna ultrapassou os limites e as barreiras que diplomacia nenhuma conseguiu impedir.
"Não basta ser gênio, é preciso coragem para tocar o coração das pessoas". (Green Book)
Sabe se lá se foi ele quem pegou a curva ou se foi a curva que o pegou. O que se sabe é que ele sempre soube o que queria, sempre soube sair ou tirar algum adversário de dentro da pista. Ele pode ter sabido que havia chegado sua hora de sair de cena, de sair da pista.
Não sei, só sei que foi selvagem.
Só sei que foi muita coragem.
Viva Senna!
Capa da revista Alpha, 2012
*Tatiana Potrich é designer de joias e curadora de eventos culturais