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Justiça

No trânsito violento, CTB não prevê prisão para condutor que mata

Pena é vista como branda | 18.11.17 - 20:33 No trânsito violento, CTB não prevê prisão para condutor que mata Josiane guarda em um álbum lembranças do marido morto em acidente (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)
Kamylla Rodrigues e Mônica Parreira
 
Goiânia - Edna Maria, Marco Aurélio, Claudemir Alves, Darlan Ernestino, João Pedro,  Manuel Cavalcante. Essas e outras 157 vidas foram tiradas de forma violenta em acidentes de trânsito, de janeiro a outubro deste ano, em Goiânia. Em 97% dos casos, os motoristas responsáveis pelas mortes respondem pela imprudência em liberdade. Eles foram indiciados com base no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que tipifica o homicídio culposo - sem intenção de matar - e que não prevê prisão. 
 
Muitas famílias de vítimas convivem com a sensação de "pena branda" para um crime grave. É o caso de Josiane Cavalcante. Ela e o filho de oito anos esperavam Manuel José Cavalcante Filho na noite do dia 12 de outubro para um jantar em família. Ele havia passado o dia todo trabalhando como entregador de uma farmácia e, no caminho para casa, um acidente de trânsito o impediu de dar um abraço no filho em pleno Dia das Crianças. 

Manuel chocou a moto que conduzia em um veículo que atalhou um retorno na contramão. Após provocar o acidente, o condutor que desrespeitou a sinalização fugiu sem prestar socorro. Segundo a Delegacia de Investigações de Crimes de Trânsito (Dict), o homem chegou a ir no mesmo dia para um casamento, no interior do Estado. 

A delegada responsável pelo caso, Maira Lídia Barcelos Bicalho, conta que o motorista só foi localizado uma semana depois. "O carro dele já estava na oficina e, ao ser informado da morte de Manuel, ele se contentou em dizer que não havia visto o motociclista. Ter provocado a morte de alguém não lhe causou nenhuma estranheza", afirma a delegada. O suspeito foi indiciado por homicídio culposo, com agravante de omissão de socorro. Nessa tipificação, mesmo com atenuantes, a pena máxima é de quatro anos de detenção e, em quase todos os processos, é revertida em prestação de serviços sociais ou multas. 


Para Josiane, a liberdade do motorista que matou Manuel é uma ferida aberta. "Manuel havia completado 34 anos em agosto. Desde que mudamos do Maranhão para Goiânia, lutava para melhorar nossa vida e construir nossa casa própria. De tijolo em tijolo ele e alguns amigos levantaram as paredes do nosso futuro lar. Ele sonhava em mudar. Mas esse e outros tantos sonhos dele, meus e do meu filho foram arrancados de nós sem qualquer cerimônia. No Dia das Crianças, recebemos a pior notícia de nossas vidas: Manuel estava morto. Vítima de um homem imprudente, que sequer olhou para trás e que está solto, podendo assassinar qualquer pai de família por aí. E nós? Estamos presos a uma angústia e a uma impotência que chega a me sufocar", diz a viúva, que chora em silêncio enquanto revive momentos congelados no álbum da família. 

Revolta também tem sido o sentimento da família de Claudemir Alves da Cruz, que morreu em abril deste ano. Ele seguia de bicicleta para o trabalho quando foi atropelado por um carro, que estaria em alta velocidade. De acordo com informações repassadas à família pelas testemunhas, antes de fugir o autor do crime desceu do carro para retirar a bicicleta de Claudemir, que ficou presa embaixo do veículo. Para a viúva Maria Francisca da Cruz, o homicídio culposo descrito no CTB, e que foi imposto ao autor do acidente, não pode ser chamado de punição.
 
Claudemir costumava ir de bicicleta para o trabalho (Foto: montagem / A Redação)
 
“A penalidade do ato desse homem veio pra nós, esposa e quatro filhos, que estamos sem o provedor do lar, sem o pai, sem o marido. O assassino nem lembra da vida que ele tirou, até porque ele nunca nos procurou pra saber se precisávamos de ajuda. Vivemos de doações e com o dinheiro do DPVAT (Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de via Terrestre), que acaba este mês. E o próximo? Como vou colocar comida dentro de casa? Como vou pagar o aluguel? A punição foi para quem?”, questiona Maria, que aguarda a condenação do autor do acidente para tentar uma indenização. 
 


A tipificação do homicídio culposo é feita quando há imprudência, negligência ou imperícia. "Mesmo desrespeitando as leis de trânsito, o condutor que ocasionou o acidente não tinha a intenção de provocar a morte. Foi uma falha humana. A gente analisa as circunstâncias e se apoia em jurisprudência dos tribunais. Não há uma regra para todos os casos”, justifica a titular da Dict, Nilda Andrade.

Além do artigo 302, há outra tipificação para assassinatos no trânsito, que é o homicídio com dolo eventual (artigo 121), quando o motorista não tem intenção de matar, mas assume o risco e não se importa com o resultado de uma conduta. Esta interpretação está prevista no Código Penal e impõe de seis a 20 anos de reclusão, ou seja, prisão inicialmente em regime fechado, sem chances de conversão a penas alternativas. A maioria dos casos que se enquadram nesta Lei possui a combinação de agravantes como embriaguez ao volante, disputa de racha e excesso de velocidade. Mas nem sempre a morte no trânsito provocada por embriaguez ao volante culmina em indiciamento por dolo eventual.

João Pedro dos Passos, de 8 anos, morreu atropelado enquanto andava de bicicleta, no setor São José, em Goiânia, em agosto deste ano. O acusado do crime, um professor de 44 anos, foi indiciado por embriaguez ao volante e homicídio culposo. Ou seja, de acordo com a Lei, ele foi preso porque dirigiu sob efeito de álcool e não porque matou.
 
“A conduta do motorista não pode ser analisada de forma isolada, por exemplo: bebeu e matou é homicídio com dolo. Cada caso tem circunstâncias diferentes que devem ser analisadas. No caso do João Pedro, o acusado estava dentro da velocidade permitida, na via preferencial. A vítima estava em uma bicicleta sem freio e na via secundária. Ou seja, talvez, mesmo sem a ingestão de bebida alcóolica, o autor do crime não conseguiria evitar o atropelamento”, explica a delegada Adriana Fernandes Carvalho, que realizou o flagrante. 

O perito em trânsito Antenor Pinheiro, membro da Associação Nacional de Transportes Públicos (CNTP), diz conhecer o sistema viário de 21 países e considera o do Brasil o pior deles. Ele acredita que atribuir uma prestação de serviços a quem mata no trânsito, como ocorre em grande parte dos casos enquadrados no artigo 302, é contraditório.
 
"O Brasil enxerga o crime de trânsito de forma atrasada. Quem mata com arma de fogo vai preso e quem mata com um carro, não. O carro também é uma arma. Vivemos uma epidemia de acidentes de trânsito, que mata, deixa sequela e consome bilhões dos cofres públicos. São 42 mil mortes por ano no país e mais de 400 mil pessoas com sequelas", destaca Antenor. 
 
O perito acredita que uma pena patrimonial seria um dos possíveis caminhos para se começar uma mudança. "Em algumas cidades da Europa e dos Estados Unidos, quando alguém comete qualquer infração de trânsito, o carro daquele cidadão é apreendido. O motorista só recupera o carro depois que seu processo criminal ou administrativo transitar em julgado. Eu tenho certeza que se isso fosse possível no Brasil, o motorista pensaria muito mais antes de desrespeitar as leis de trânsito", ressalta.

O juiz Jesseir Coelho de Alcântara, da 1ª Vara Criminal de Goiânia, também classifica como benévola a pena prevista para homicídio culposo. Conforme destacou, o CTB completou 20 anos no último mês de setembro com sinais de que precisa receber algumas modificações. “A quantidade de carros que nós tínhamos há 20 anos, e a potência deles, não equivalem à realidade atual. Acho que o CTB tem que acompanhar essa evolução social, mas até hoje não houve uma mudança significativa”, opina.

Contrariando essas opiniões, o promotor de Justiça, Vilanir de Alencar Camapum Júnior não vê brandura na pena do 302 do CTB e é enfático ao frisar que prisão não é solução. "As famílias sentem, com legitimidade, que a justiça só é feita quando o autor do crime é preso. Mas endurecer as penas criminais é uma visão atrasada e que não dá resultado. O sistema carcerário do País está falido. Não há espaço para tanta gente presa. Além disso, a cadeia não melhora a conduta das pessoas. Por isso, uma pena alternativa surte mais efeito no processo de conscientização de quem provoca o acidente", defende. 

Ele reforça que pessoas consideradas de bem também cometem infrações que resultam em morte no trânsito e que a cadeia não é o melhor lugar para elas. O jornal A Redação entrou em contato com condutores condenados por homicídio culposo para tentar saber se a pena alternativa surtiu efeito. Um dos motoristas aceitou falar com a reportagem, desde que seu nome fosse preservado. Ele sente medo de vingança. O acidente ocorreu em maio de 2015 quando, após fazer uma conversão proibida, sem sinalizar e de forma brusca, ele atingiu um ciclista. João (nome fictício) prestou socorro e acompanhou a vítima, que morreu poucos dias depois no hospital. João foi condenado no final de 2016, mas diz que muito antes disso, ou seja, desde o momento do acidente, ele se tornou outro motorista. 
 
"A gente comete infrações que, para nós, são irrelevantes. E no dia do acidente eu achava que aquela conduta seria só mais uma no meu dia-a-dia. Mas não foi. Meu gesto tirou a vida da vítima e ainda mudou a vida de duas famílias e a minha. Fiquei um ano sem dirigir porque não conseguia segurar o volante. Não tem um dia sequer que eu me deite e não pense: se eu tivesse ligado a seta ou se eu tivesse virado no local correto... Eu jamais quis matar alguém. Dói em mim também carregar essa culpa e ajudar alguém, no hospital por exemplo, alivia um pouco". 

Enquanto a tipificação do crime de homicídio no trânsito parece subjetiva aos agentes da lei, o Congresso Nacional discute alterações no CTB. Tramitam na Câmara dos Deputados pelo menos 13 projetos de lei que pedem aumento de pena para homicídio culposo no trânsito. Mesmo no Congresso Nacional, a estrada é longa. A primeira proposta, do deputado Arolde de Oliveira (PSD-RJ), foi apresentada em maio de 2014 e até hoje sequer está pronta para ser votada.
 
Atualmente o pacote de projetos está em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da casa. Em entrevista ao jornal A Redação, o relator, deputado Capitão Augusto (PR-SP), informou que entrega o relatório ainda este ano. “Estamos conversando com representantes de todos os órgãos relacionados ao trânsito para haver consenso”, disse. Questionado quanto ao conteúdo do relatório, o deputado informou que ainda é cedo para adiantar qualquer informação, mas deu sinais de que defende penas mais duras. “A impunidade leva as pessoas a continuarem desrespeitando as leis de trânsito. Com uma legislação mais rigorosa, tenho certeza que os números de acidente reduziriam no dia seguinte”, exemplifica.
 
Depois de concluído, o relatório do Capitão Augusto será votado na CCJC. Aprovado, estará pronto para ser discutido no plenário da Câmara dos Deputados. A maior dificuldade, segundo ele, é que parlamentares não enxergam o trânsito como prioridade. “É um assunto que, assim como segurança, só ganha destaque em período eleitoral, infelizmente. Colocar em votação será um desafio. E, depois disso, se aprovado, o projeto ainda depende de aval do Senado, para, enfim, ser sancionado pelo presidente e entrar em vigor”, diz. Na melhor das hipóteses, tendo em vista a tramitação, essa mudança no artigo 302 só começaria a valer em 2019.
 
Engenharia, infraestrutura, fiscalização e principalmente a educação são, na visão dos entrevistados, agentes catalisadores da redução de acidentes. O assunto está em voga não só por causa do 20º aniversário do CTB, mas pela grande quantidade de pessoas que perdem suas vidas nas ruas e estradas brasileiras. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica o Brasil como um dos quatro países que mais matam no trânsito. Segundo o Ministério da Saúde, de 2010 a 2015 foram 255.609 óbitos, quase o suficiente para dizimar a população de uma cidade do porte de Palmas (TO).
 

(Fonte: MS/SVS/CGIAE-SIM)
 
O dado mais recente também é de 2015. Naquele ano, o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) indica que foram 38.651 mortes no país, ou seja, uma média de quatro por hora. Só em Goiás, foram 1.866. A tendência no Brasil, especialmente após o endurecimento da Lei Seca, tem sido a redução desses números violentos. Também contribui para o cenário a evolução das penas administrativas, como aumento do valor das multas que punem infrações mais graves.
  
Presidente do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO), Manoel Xavier informou à reportagem que o governo trabalha com a meta de reduzir as estatísticas de acidentes no Estado, o que vai poupar vidas. O projeto “Trânsito com Vida”, conforme explica, consta do plano de governo da atual gestão. “O levantamento de óbitos toma como referência grupos de 100 mil habitantes. Já caímos de 33,1, em 2014, para 27,9 no ano passado. E queremos chegar a 20 até o ano que vem. É um número alto, mas estamos perseguindo esse objetivo”, diz.
 
O presidente da autarquia classificou o projeto como “transversal” por envolver os mais diversos setores do poder público. “Nós atuamos em parceria com equipes de resgate, para preservar a vida do acidentado, e dos hospitais, que devem estar prontos para recebê-lo. Mais do que isso, queremos atuar nas medidas preventivas. Estamos firmando parcerias com prefeituras, para sinalizar as pistas nos municípios goianos, e reforçando a questão da fiscalização, como a Balada Responsável. Também desenvolvemos ações educativas nas escolas e na rua. As pessoas têm de ter consciência das suas responsabilidades no trânsito, que é um meio compartilhado. Elas devem ter compreensão do seu papel para garantir a segurança de todos”, destaca.
 

Para Manoel Xavier, mudança de comportamento é questão cultural e demanda tempo (Foto: Mônica Parreira)
 
Levantamento divulgado recentemente pelo Detran-GO apontou as principais infrações cometidas em Goiás. Em uma análise pontual, Manoel destaca que o desrespeito às leis está diretamente relacionado à postura do condutor. “Excesso de velocidade, falta do cinto de segurança e uso do celular ao volante são as maiores infrações dos goianos, o que indica que há uma questão cultural envolvida e que precisa ser mudada. Se a pessoa tiver mais consciência, certamente as infrações cairão drasticamente”, completa. 

Não só as infrações podem diminuir, mas também mais vidas podem ser preservadas com gestos simples de educação e respeito. 
 
 
Quando Manoel fala que o tempo é determinante para mudar o comportamento social, ações desenvolvidas em escolas surgem como uma espécie de semente próspera em meio a um terreno que precisa de cultivo. Em setembro, a autarquia lançou o Prêmio da Semana Nacional de Trânsito, com o tema “Minha escola faz a diferença no trânsito”. Matheus Pereira, de 14 anos, foi um dos vencedores. Sua história em quadrinhos lhe garantiu o 3º lugar na categoria, e agora ele espera, ansioso, pelo dia de receber o prêmio: uma bicicleta e um tablet. Como ele, outros 1.247 alunos da rede pública de ensino também participaram.
 
“Eu contei a história de uma professora que contava sobre um acidente que tinha sofrido com um amigo. Com a sua própria experiência ruim, no fim da aula ela ajuda a turma a se conscientizar da necessidade de ter mais cuidado no trânsito”, explicou Matheus. Contou a seu favor o fato de receber apoio da professora Gabriella Gonçalves, que auxiliou na construção do roteiro. “Foi um aprendizado para todos os alunos da escola. As turmas se mobilizaram para participar e a educação no trânsito acabou fazendo parte da rotina escolar durante várias semanas”, explica.
 
No Colégio Estadual Dr. Antônio Raimundo Gomes da Frota, onde Matheus estuda, a Educação no Trânsito costuma estar presente ao longo de todo ano. A unidade escolar, que funciona em tempo integral, tem no seu currículo as disciplinas chamadas eletivas. “Neste semestre nós estamos com a disciplina eletiva Paz no Trânsito, que reúne 75 alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental”, diz.
 
Na sala de aula, a professora explica noções básicas de sinalização, a legislação brasileira de trânsito, a importância do uso de equipamentos de proteção individual e o respeito ao próximo. “A gente observa que o Brasil, de  modo geral, tem que avançar nessa parte de educação no trânsito. E é nessa fase da vida – a escolar – que as pessoas mais desenvolvem seus valores, por isso a importância do trabalho que realizamos aqui na escola”, frisa a diretora.
 
Sobre o seu papel no trânsito, o estudante entende que agora vai avançar da condição de pedestre para a de ciclista. “E isso requer cuidados, como usar capacete e andar na mão correta da via. Sem contar que serei um futuro condutor. Já estou treinando, alertando meus pais, quando eles dirigem, sobre tudo que aprendo na escola”, diz o aluno. 



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