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Especial

Césio 137: 30 anos de traumas na pele e na alma

Vítimas ainda lutam por reconhecimento | 13.09.17 - 07:57 Césio 137: 30 anos de traumas na pele e na alma (Foto: acervo C.A.R.A)
Kamylla Rodrigues

Goiânia -
Há 30 anos, 19,26 gramas de césio-137 se espalhavam por vários setores de Goiânia, deixando um rastro de vítimas pelo caminho. O maior acidente radioativo em área urbana do planeta, que deixou sequelas não apenas na pele, mas também na alma de muitos goianos, completa três décadas nesta quarta-feira (13/9). De lá para cá, os protagonistas desse pesadelo ainda lutam pelo reconhecimento e pela manutenção da saúde. 
 
"O césio é angústia e trauma. Na época da contaminação, tive que ficar longe dos meus quatro filhos por mais de dois meses, porque fui para o hospital do Rio de Janeiro. A saudade deles e o medo de morrer me dominavam. Foi doloroso. Três décadas se passaram e relembrar não me faz bem, apesar de achar necessário manter a memória viva". O relato é de Luíza Odet dos Santos, 58 anos, uma das vítimas diretas do acidente com o césio 137, em Goiânia, no ano de 1987. Ela carrega no pescoço, nas mãos e no joelho a marca do brilho azul, que matou pessoas e estigmatizou uma cidade inteira. 
 

Luíza Odet dos Santos é uma das vítimas diretas do acidente (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)
 
O governo reconhece ou considera oficialmente como vítima do acidente 183 pessoas, inseridas no grupo I (94 pessoas contaminadas com medição acima de 50 rads) e no grupo II (89 contaminados indiretamente com medição de até 50 rads). Existe o grupo III (959 pessoas, entre soldados, bombeiros, militares, profissionais da saúde, motoristas, funcionários do Estado, vizinhos de focos e parentes das vítimas), cujos integrantes não foram contaminados, mas irradiados, na visão do Estado. Esses só foram reconhecidos como trabalhadores envolvidos no acidente por meio da Lei nº14.226/2002, portanto 15 anos depois.

O total, segundo a Secretaria de Saúde, é de 1,1 mil pessoas afetadas de alguma forma com a substância, mas a Associação das Vítimas do Césio-137 (AVCésio) e a Associação dos Contaminados, Irradiados e Expostos ao Césio-137 (Aciec) acreditam que esse número chegue a 1,4 mil.
 
É garantido para todas as pessoas dos três grupos um plano de saúde integral do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado de Goiás (Ipasgo), além da assistência médica no Centro de Assistência ao Radioacidentado (C.A.R.A.), a antiga Superintendência Leide das Neves (SuLeide). Lá, eles possuem atendimentos gratuitos em sete áreas, além de odontologia. Mas a reclamação unânime das vítimas diz respeito a medicamentos, que deixaram de ser oferecidos na unidade em 1999, quando deixou de ser Fundação Leide das Neves e se tornou a SuLeide, perdendo a autonomia financeira.
 
“A questão de medicamentos foge da competência do C.A.R.A porque quando era Fundação, a unidade atendia em torno de 160 pacientes e, em 1999, a saúde dessas pessoas estava controlada. Por isso, deixou de ser  fundação para se tornar superintendência, mais como forma de dar assistência e apoio. De lá para cá, o nome mudou novamente e o número de assistidos cresceu. Os medicamentos são disponibilizados conforme a Lei 8080/1990. O primeiro passo é o paciente procurar a farmácia básica. Se não encontrar, ele deve buscar junto à Central de Medicamentos de Alto Custo Juarez Barbosa, seguindo os protocolos necessários ou ainda por meios legais da judicialização", justifica o diretor-geral do Centro de Assistência, André Luiz de Souza.
 
 
André Luiz de Souza explica as evoluções do local de assistência às vítimas (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)
 
A presidente da AVCésio, Suely Lina de Moraes, vítima do grupo II, critica a conduta do Estado. “A lei diz que a assistência deve atingir até a terceira geração. Nem eu, que sou a primeira, estou sendo atendida. Imagina quando chegar na terceira. Eu vejo que a preocupação e o cuidado com o lixo que está enterrado é maior do que com as vítimas. Nós perdemos muita coisa. Perdemos nossa casa, nossas roupas, nossa vida. Tivemos que recomeçar do zero. Esses 30 anos foram de muita luta e sofrimento e o que a gente quer é respeito", desabafa. 
 
O coordenador do Fórum Permanente sobre o acidente com o césio-137, Júlio de Oliveira Nascimento, também reprova a não distribuição de remédios. “Se passaram três décadas e as vítimas arrastam os problemas, quase que os mesmos de quando aconteceu o acidente. Claro que o Estado estabeleceu centros de atendimento, mas se você conversar com as vítimas, o relato delas é de que não se sentem apoiadas. Então, se não contempla isso, qual a razão de existir um Centro como esse? Esse atendimento tem que ser integral. A vítima tem que se sentir acolhida e reconfortada, com o seu medicamento ou encaminhamento para conseguir o seu remédio de alto custo. As vítimas não têm o atendimento à altura do que sofreram. O Estado deveria ter uma política de fornecimento de medicamentos e não tem”, avalia. 
 

Além de lutarem por reconhecimento e medicamentos, algumas vítimas e trabalhadores ainda buscam na justiça, 30 anos depois, o benefício da pensão vitalícia estadual (Lei nº 14.226/02) e/ou federal (Lei nº 9.425/96), que chegam para apenas 751 pessoas. Desse número, 265 recebem pensão federal e 486 recebem pensão estadual, cujo valores são de R$ 778 e R$ 937 (salário mínimo), respectivamente. As outras 116 recebem as duas pensões.
 
Lindalva Chapadense Fabiano, de 57 anos, moradora da Rua 26-A há 37 anos, só conseguiu em janeiro de 2017 a pensão federal por meio da justiça. “Meus três filhos, meu marido, minhas cunhadas, toda a minha família que foi afetada recebe pensão desde o começo. Eu só consegui agora. Não sei qual foi o motivo, porque todos nós fomos atingidos da mesma forma. Tem muita gente na mesma situação e isso é triste, porque já sofremos tanto, né? Se é lei, porque não cumprem?”, questiona a dona de casa, que teve o quintal e a calçada da residência concretados na época do acidente. A Rua 26-A, no Setor Aeroporto, foi uma das vias isoladas por ter sido um foco da contaminação. Era nesta rua, atualmente chamada de Francisca da Costa Cunha, que o ferro-velho de Devair Alves Ferreira estava instalado. 
 
Clínico-geral do Centro de Atendimento do Radioacidentado (C.A.R.A) há 29 anos, José Willian de Oliveira explica que são, em média, 100 novos pedidos de pensão por ano e que a decisão de conceder ou não o benefício é da justiça, que se baseia nos critérios da lei. São cerca de 20 processos deferidos por ano. “A Lei diz que a qualquer momento o interessado pode pedir a indenização. A junta analisa se ele tem alguma doença crônica e se ele se encaixa dentro dos critérios da lei. Quem decide é o Judiciário. O problema é que não existe qualquer exame que relaciona determinada doença ao césio. No início, realmente, havia o nexo causal, mas agora as doenças são as mesmas que acometem a população em geral. Acredito que as causas da doença é o que menos importa. O que vale é se ele é assistido", diz o médico.
 
Suely Lina não concorda com a afirmação do médico, apresentando um mapeamento feito por ela. "Em cerca de 500 metros, eu relacionei mais de 25 casos de câncer, a maioria em famílias que estavam aqui em 1987. Sei que essa doença é multicausal, mas nós temos um fator a mais, o césio. É claro que tem uma incidência maior de câncer aqui. É preciso desenvolver algum estudo nesse sentido”, afirma. O C.A.R.A. não tem um número oficial de pessoas com câncer, uma vez que nem todas as pessoas com tal doença fazem acompanhamento constante na unidade. 
 

"A gente quer respeito", diz  Suely Lina (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)
 
O Tribunal de Justiça de Goiás não soube precisar a quantidade de processos que circulam no órgão relacionados ao césio, nem a quantidade de pedidos deferidos nos últimos 30 anos. Sobre o valor defasado da pensão estadual (R$ 778, abaixo do salário mínimo), também motivo de reclamação das vítimas e trabalhadores, a Casa Civil informou que já está sendo reajustado por meio de um processo. 



 
 
1 - Há 30 anos, os catadores de sucata Wagner Pereira, na época com 19 anos, e Roberto Alves, 22, entraram no antigo Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), no Centro da Capital, que estava desativado após sofrer ação de despejo. Lá, eles encontraram um equipamento de raio X abandonado, que foi levado por eles em um carrinho de mão. Atualmente, no local (Avenida Paranaíba com a Tocantins) existe o Centro de Convenções de Goiânia, construído em 1994, e não há qualquer menção ao acidente. 
 
2 - Os dois levaram o objeto para a casa de Roberto, na Rua 57, ainda no Centro. A marretadas, eles tentaram separar o chumbo da parte que continha a fonte radioativa e romperam a janela de irídio. Parte do césio derramou no solo e entrou em contato com o ar, dando início à contaminação.
 
3 - Segundo registros, cinco dias depois, Wagner vendeu o cilindro, que ainda continha césio, para Devair Alvez Ferreira, então dono de um ferro-velho na Rua 26-A, no Setor Aeroporto. Os funcionários do local, Israel Batista dos Santos e Admilson
Alves de Souza, manusearam o objeto. Encantado com o brilho do césio, Devair distribuiu o pó entre parentes, amigos e vizinhos.
 
4 - Ivo Ferreira, irmão de Devair e pai da criança Leide das Neves, símbolo da tragédia, levou o césio para casa, na antiga Rua 6. Leide, de 6 anos, o irmão Lucimar e a mãe deles, Lourdes das Neves, se encantaram pelo brilho do material. Leide brincou com o pó e em seguida comeu um ovo com as mãos sujas de césio. O fato de ter ingerido o césio-137 fez com que Leide se tornasse um foco de radiação, tornando, praticamente, impossível a medição.
 
5 - Depois que todos começaram a passar mal, a esposa de Devair, Maria Gabriela, pegou a cápsula, colocou em um saco e levou, de ônibus, até a Vigilância Sanitária, na Rua 16-A. Gabriela é considerada heroína, já que sua desconfiança evitou uma contaminação maior ainda. No dia seguinte, o físico Walter Mendes Ferreira, que estava em Goiânia, foi chamado. Ao chegar no local, constatou que se tratava de um elemento radioativo.
 
 
A fonte radiotiva ficou em uma cadeira na Vigilância Sanitária (foto à esquerda). Após descobrirem do que se tratava, a peça foi cercada de concreto e manilhas de aço. (Fotos: Acervo / C.A.R.A)
 
6 - Vizinho de muro e amigo de Devair, Edson Fabiano ganhou uma pedrinha e a levou para um almoço na casa da mãe, na Rua 15-A. Lá ele entregou um fragmento ao irmão Ernesto Fabiano, que colocou no bolso e seguiu até sua casa, na Rua 17-A.
 
7 - Ernesto chegou em casa e apresentou a pedrinha à mulher. Quando ela descobriu que a tal pedra era radioativa, ela atirou o componente no vaso sanitário. A casa, na Rua 17-A ficou conhecida como a ‘Casa da Fossa”.
 
8 - O cilindro grande foi revendido por Devair a um outro ferro-velho, agora na Rua P-19.
 

Técnicos da Cnen faziam medições a todo momento (Foto: Acervo / C.A.R.A)
 
Desde o rompimento da cápsula, a liberação do césio no ambiente e a descoberta do acidente radiológico, o composto químico circulou por pelo menos quatro setores de Goiânia e dois municípios goianos (Anápolis e Aparecida de Goiânia), segundo relatos de vítimas. 
 
O motorista Odesson Alves Ferreira, irmão de Devair e Ivo, conta que após manusear uma pedrinha que ganhou do irmão, trabalhou por oito dias como motorista de ônibus do transporte coletivo da Capital sem imaginar que era uma fonte radioativa. “Eu carregava cerca de mil pessoas por dia e fazia a linha entre o Terminal Isidória, em Goiânia, até a Cidade Livre, em Aparecida de Goiânia. Só tive noção do poder daquela pedrinha que esfarelou na minha mão no dia 30 de setembro. Em seguida, já fui internado no hospital, onde eu fiquei até próximo ao Natal”, relembra.
 
No dia 30 de setembro, 112.800 pessoas foram levadas para o Estádio Olímpico e para a antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), deixando casa, roupa, animais e documentos para trás. Lá elas foram alojadas e monitoradas, e 249 pessoas apresentaram algum grau de radiação. Os contaminados foram instruídos a tomarem banho e descartarem as roupas usadas no dia. Em uma nova medição, 129 permaneceram com radiação e foram direcionadas para atendimento.
 
 
À esquerda, algumas barracas que serviram como alojamento. À direita, monitoramento no Estádio Olímpico (Foto: Acervo C.A.R.A)
 
O diretor-geral do C.A.R.A., André Luiz de Souza, conta que de 129 vítimas, 22 apresentaram radiodermite por contato com o elemento químico, sendo que 12 delas foram encaminhadas para tratamento intensivo no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, entre elas Leide e Gabriela. E é esse período que nunca sai da memória de Luíza Odet. "Eu tinha 28 anos, quatro filhos, uma casa. E de repente tudo foi deixado para trás. Eu e meu esposo, também com feridas, fomos para o Rio e as únicas notícias que eu tive durante dois meses vieram de cartas de parentes. Era saudade misturada com medo e tristeza", lembra. 
 
Odet e o marido, Kardec Sebastião dos Santos, 60 anos, ficaram mais de dois meses internados no Hospital Naval Marcilio Dias (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)
 
Odet lembra de Leide e Gabriela, que tinham maior grau de contaminação. "A Leide ganhava muitos brinquedos e um deles foi um conjunto de xícaras. Ela vinha e falava 'quer café, titia?'. Uma doce lembrança de uma vítima tão inocente. Quando ela e a Gabriela morreram eu fiquei transtornada. Pensava que eu seria a próxima e que não veria mais meus filhos. Foi aterrorizante. Nem gosto de lembrar", diz a dona de casa, que teve queimaduras no pescoço depois que o primo, Ivo Alves Ferreira, pai de Leide das Neves, passou um pouco do pó no pescoço dela "para ficar mais bonita". "Ninguém tinha noção do que era aquilo. No dia seguinte começou a arder e levantar bolhas. Eu, meu esposo e meus filhos tínhamos ido para Anápolis visitar minha sogra, que chegou a passar um creme de pepino nas lesões acreditando ser alergia. Eu já estava contaminando tudo", relata. 
 
Oficialmente, o Governo de Goiás reconhece quatro mortes causadas pela radiação: Maria Gabriela Ferreira, 37 anos, esposa de Devair; Leide das Neves, 6, sobrinha do casal; Israel Baptista dos Santos, 22; e Admilson Alves de Souza, 18, funcionários do ferro-velho. Os quatro foram enterrados no Cemitério Parque, em caixões de fibra de vidro revestidos com chumbo para prevenir que a radiação não contaminasse o solo e os lençóis freáticos.
 

À esquerda, Leide das Neves, símbolo do acidente. À direita, Gabriela, que já perdia os cabelos devido aos efeitos do césio-137 (Fotos: Acervo / C.A.R.A.)
 
Além delas, 12 pessoas dos grupos I e II que foram contaminadas morreram nas últimas três décadas mas, segundo o governo, as mortes não têm relação direta com o césio. Levantamentos de sindicatos, associações e do Ministério Público de Goiás indicam pelo menos 66 óbitos e cerca de 1,4 mil vítimas contaminadas.
 

 
Goiânia se tornou o centro das atenções. O mundo queria saber mais sobre o acidente que, em termos de contaminação, perde apenas para o desastre da Usina Nuclear de Chernobil, que aconteceu em 26 abril de 1986. Muita informação de uma vez só trouxe para a Capital olhares de discriminação, de medo, de desconhecimento. E as vítimas sentiram e sentem até hoje a discriminação na pele. 
 
“Tudo que usávamos ou tocávamos virava lixo. Éramos constantemente monitorados. As pessoas tinham horror a nós. Parecia até que éramos de outro mundo. A minha família, cerca de 40 pessoas, foi a mais afetada. Então, todos ao meu redor sentiam e sofriam com a discriminação. Não foi fácil passar por tudo isso e ainda ver sua casa sendo demolida, seus bens sendo jogados no lixo. Enxoval, fotos, tudo virou lixo. Uma vida inteira está enterrada”, lamenta Odesson, que usa luvas para trabalhar como motorista da Uber, para evitar discriminação. "Uma vez uma senhora me reconheceu e perguntou se eu não podia contaminá-la. Vi que a pergunta foi mais por desconhecimento do que por medo". 
 

Odesson teve parte de dois dedos amputados e realizou uma operação de enxerto na mão (Foto: divulgação)
 
Odet recorda que após a tragédia nuclear, em 1988, tentou matricular os filhos em uma escola particular de Goiânia. “Quando eu cheguei fomos bem recebidos e ao citar, por acaso, que éramos vítimas do césio-137, as portas foram fechadas. As vagas sumiram de repente e eu me senti incapaz. Foi triste”.
 
E esse não foi o único momento em que ela foi julgada por ter sido vítima. Durante muitos anos, Luíza contava para os interessados que a mancha em seu pescoço era vitiligo. “Depois eu resolvi que não poderia mentir sobre um fato tão importante, do qual eu fui vítima e não culpada. Decidi viver e contar que essa mancha é sim uma cicatriz do césio e que essa história precisa ser contada para que mais ninguém possa sentir isso na pele”, assevera.
 

 
A descontaminação da cidade foi iniciada no dia 30 de setembro pelos técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), com a ajuda da Polícia Militar e outros trabalhadores do Estado.
 
 
 
Técnicos da Cnen e funcionários do Estado trabalharam na descontaminação das ruas e recolhimento dos dejetos (Foto: Acervo / C.A.R.A.)

Somente 19,26 gramas de césio-137 foram suficientes para gerar quase 6 mil toneladas de rejeitos, que incluíram animais sacrificados, roupas, árvores e partes de 45 locais públicos – ruas, hospitais, muros, calçadas -, 41 casas – que foram total ou parcialmente demolidas – e cerca de 50 veículos. Todos os dejetos recolhidos foram levados para os depósitos de Abadia.
 
O espaço onde estão os rejeitos fica em uma área de 32 alqueires, dentro do Parque Estadual Telma Otergal, às margens da BR-060, em Abadia, a 20 quilômetros de Goiânia. O local abriga o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro Oeste (CRCN-CO), que é vinculado à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), cuja função é monitorar o entulho do césio e promover pesquisas na área ambiental ligadas à radioatividade.
 

 Complexo de Abadia, onde estão enterrados os dejetos radioativos. São dois depósitos, sendo um com materiais mais perigosos (Foto: reprodução / Google Earth)
 
De acordo com o coordenador do CRCN-C e supervisor de radioproteção, Rugles César Barbosa, 40% do material, formado por objetos com menor índice de radiação, fica em um contêiner de grande porte e não representa perigo, e os outros 60% fica no depósito final, onde existem as fontes mais perigosas e materiais contaminados. “Todo esse material está dentro de uma caixa de concreto, cuja espessura é de cerca de 50 centímetros, seguindo o sistema ‘radier’. E essa estrutura é totalmente segura”, explicou.
 
Todo o material foi colocado dentro de 1,2 mil caixas metálicas e 4,2 mil tambores de aço e acondicionados dentro de 10 contêineres marítimos. O complexo de Abadia, que comporta o Centro de Informação, o Laboratório de Radiologia, o Centro e Estudos e Formação e o Laboratório de Radioproteção, é monitorado 24 horas pelo Batalhão Ambiental e é aberto ao público para visitas.
 

Mais de 4 mil tambores de aço e mais de mil caixas metálicas foram ausados para comportar os dejetos (Foto: Estadão Conteúdo)
 
O governo estadual concedeu a área ao CRCN-CO, durante 50 anos, proteção física contra incêndio, além de isenção na água e energia consumidos no complexo. Em contrapartida, o centro realiza pesquisas ligadas às questões nucleares e radiológicas, que também são custeadas pelo Governo Federal. “Nós fazemos ainda um monitoramento ambiental a cada três meses, recolhendo amostras de solo, vegetação, ar e água do lençol freático e de poços. Até hoje, os níveis constatados estão aceitáveis”, pontua Rugles.
 
O coordenador do CRCN-C também reforça que Goiânia está livre de contaminação. “Todos os pontos que abrigaram os principais focos de contaminação foram descontaminados e entregues em condições isentas e usáveis”, reafirma. Os oito pontos do mapa foram evacuados na época por causa do alto índice de radiação. Trinta anos depois, apenas dois locais, que foram concretados, estão desocupados: ruas 57 (área pública) e a antiga 26-A (área privada).  “Esses locais estão seguros e a não ocupação é uma opção. Nós, da Cnen, atendemos às solicitações quando somos provocados. Se há dúvidas, vamos ao local e fazemos a medição”, relata.
 
Rua 57 à esquerda e Rua 26-A (atualmente chamada de Francisca da Costa Cunha) à direita. São os únicos pontos de contaminação concretados (Fotos: Kamylla Rodrigues / A Redação)


Nesses 30 anos, vários aspectos da segurança radiológica foram melhorados em termos tecnológicos. Fonte com radionuclídeos e césio-137 na forma de cloreto de césio não são mais utilizados atualmente.

“Hoje, nós temos césio-137 como irradiador de bolsas de sangue e em quantidades bem menores apenas em dois lugares: no Hemocentro e outra no Hospital Araújo Jorge. E hoje o tratamento de radioterapia é feito por aceleradores. Ou seja, não há equipamentos como aquele encontrado em 1987”, informou Rugles. A Cnen controla a importação e exportação de material radioativo em todo o País.

 
Em 30 de novembro de 1987, o Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO) denunciou os médicos radioterapeutas Criseide Castro Dourado e Carlos de Figueiredo Bezerril, os médicos Orlando Alves Teixeira e Amaurillo Monteiro de Oliveira, além do físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart por homicídio e lesão corporal culposos (sem intenção de matar ou provocar danos). Eles eram os responsáveis pelo antigo IGR.
 
A pena foi de três anos e dois meses de prisão em regime aberto, mas apenas oito meses foram cumpridos, além de prestação de serviços sociais. O crime prescreveu quando o acidente completou 20 anos.
 

 
Pensando em resgatar as histórias do maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora das usinas nucleares, foi lançado em abril deste ano o Fórum Permanente sobre o acidente com o césio-137. Desde então, o Fórum tem realizado várias ações, como palestras, seminários e audiências. 
 

Fórum foi lançado na Assembleia Legislativa (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)
 
O Fórum busca uma série de ações contínuas que visam beneficiar a vida dessas vítimas que ainda sofrem com a falta de assistência. “Essa ação pretende expandir para o maior número de pessoas e instituições da sociedade civil organizada, já que é um problema de toda a sociedade”, explica o coordenador do Fórum, Júlio de Oliveira Nascimento. 
 
Nesta quarta-feira (13), 30 anos após o acidente, o Fórum promove uma audiência pública na Assembleia Legislativa, com participação da Comissão Nacional de Energia Nuclear, a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Secima) e o Centro de Atendimento aos Radioacidentados (CARA), para debater as questões ligadas às vítimas e às questões nucleares brasileiras. Na ocasião será exibida uma performance artística sobre a situação do césio-137.



A lembrança mortifica. Foi um mal que deixou cicatrizes. E reviver o acidente, mesmo cutucando a ferida, é uma maneira das vítimas não serem esquecidas. 

Odesson Alves Ferreira e Suely Lina de Moraes recontam a história em palestras e seminários para que o dia 13 de setembro de 1987 seja conhecido por todas as gerações. Odessom, inclusive, foi convidado - e já aceitou - a participar do International Uranium Film Festival, que lembra o maior acidente radiológico da América Latina: o césio-137. 
 
O presidente do Fórum critica a falta de esforço do governo em lembrar a data todos os anos. "Recordar é aumentar as chances de não repetir. Na medida em que a população também esquece o acidente, menos o governo vai se responsabilizar por aquilo que ele deveria estar cuidando há muito tempo. Isso não é brincadeira. Pessoas morreram. Todos devem conhecer a história e cobrar, fiscalizar", diz. 
 
O acidente em imagens:

 

O objeto com o césio aberto em Goiânia servia para irradiação de tumores e materiais sanguíneos. Era usado como fonte de radiação para a máquina de radioterapia. Estava desativado desde 1985, dois anos antes do acidente (Foto: acervo / C.A.R.A)


Pintura na parede do fundo do lote da casa de Roberto, na Rua 57, onde a contaminação começou, lembra os 30 anos da morte de Leide das Neves (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)


Containers carregados com material radioativo eram deslocados com ajuda de maquinário pesado (Foto: Acervo C.A.R.A)


Rua 57: A casa era da mãe de Roberto, Eunice Santos. No terreno, 30 pessoas moravam amontoadas em barracões. Hoje, um grande vão de concreto substituiu a vida no local. A placa enferrujada anunciava um memorial que nunca saiu do papel (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)


112.800 pessoas foram monitoradas no Estádio Olímpico (Foto: Acervo / C.A.R.A.)


As quatro vítimas que morreram no período mais crítico do acidente foram enterradas em caixões lacrados de fibra de vidro revestidos com chumbo para prevenir que a radiação não contaminasse o solo e os lençóis freáticos. Os caixões de mais de 700 quilos eram colocados com ajuda de guincho (Foto: Acervo / C.A.R.A.)


O corpo das quatro vítimas estão enterrados no Cemitério Parque, dispostos lado a lado. Um grande vão os separam de outras lápides. (Foto: Kamylla Rodrigues / A Redação)


Escombros do  antigo 
Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), onde a peça de raio x foi encontrada (Foto: Acervo / C.A.R.A.)


Um dos depósitos em Abadia. Vida útil é de 300 anos (Foto: Acervo / C.A.R.A)


Dejetos já em Abadia (Foto: Acervo / C.A.R.A.)

Comentários

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  • 01.09.2022 13:02 Sergio de Magalhães Medeiros

    Então eu entendo que, quem invade e rouba um estabelecimento e com essa ação determina a morte e sofrimento de milhares de pessoas, não sofre punição.

  • 23.09.2019 05:16 erik

    No inicio da matéria vocês informam que os catadores de sucata levaram em um carrinho de mão um equipamento de raio x que deu inicio a contaminação. Mas essa afirmativa não procede, já que na verdade, eles levaram da antiga clinica, o cabeçote, de um equipamento de radioterapia. A matéria de vocês ficou excelente, estava usando ela para fazer um trabalho, não vou usar mais, pois, se essa informação esta incorreta, outras também podem estar. OBS: Falar que os catadores encontraram um equipamento de raio x é uma afirmativa absurda, já que a radiação do equipamento de raio x é produzida de forma artificial, por meio de aquecimento de filamentos de tungstênio, e nem se quer tem o elemento césio, ou qualquer outro, em seu interior.

  • 29.09.2017 13:06 Euler

    Parabéns pela matéria. Não podemos esquecer essa tragédia nunca. Maria Gabriela Ferreira foi uma verdadeira heroína. E poucos se lembram disso. A História precisa reconhecer o que está mulher fez.

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