"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade."
(Artigo 5º da Constituição Federal)
Carolina Pessoni
Goiânia – Barracos feitos de lona, papelão e madeira. Sol a pino. Poeira. Essa é a imagem que se vê ao chegar à região do aterro sanitário de Aparecida de Goiânia. A paisagem pobre do lugar contrasta com o Distrito Agroindustrial da cidade, localizado a poucos quilômetros dali, com indústrias e galpões de empresas regionais e multinacionais.
É manhã de domingo, 2 de novembro. Sempre no primeiro dia da semana de todos os meses um grupo de amigos se reúne para fazer doações aos moradores da região. Cerca de 50 pessoas levam em torno de 150 cestas básicas, além de roupas, sapatos, lanches e guloseimas para as crianças. Tudo é distribuído em um campinho de futebol de terra batida.
Voluntariado
O
Grupo Irmão Amigo nasceu da simples vontade de ajudar o próximo. Em meados de 2011 a corretora de imóveis Irenilda Cândido Gomides Ribeiro (foto ao lado) foi ao local avaliar uma área para venda e se deparou com várias famílias vivendo em barracos na região do atual aterro sanitário.
“Vi as pessoas mexendo no lixo, naquela situação, e me comovi. Perguntei a eles, então, se recebiam algum tipo de assistência”, conta Irenilda. Diante da resposta negativa, a corretora, que já havia desenvolvido um trabalho semelhante no Bairro Independência Mansões, também em Aparecida de Goiânia, chamou amigos e familiares para fazer doações àquelas pessoas.
Daí por diante o trabalho não parou mais. Sem vínculo religioso ou político, o grupo busca doações com amigos e empresários de Goiânia. Para que as famílias não fiquem desassistidas, muitas vezes os recursos saem dos próprios bolsos.
O trabalho é organizado. As famílias que querem entrar no cadastro do grupo recebem visitas periódicas para identificar a real necessidade de receber as doações. Além disso, quando a pessoa responsável por receber a doação falta três vezes consecutivas ao dia da entrega, a família é excluída da lista.
“Atualmente temos 144 famílias cadastradas e cerca de 16 na fila, esperando para entrar. Infelizmente não temos condições de atender todos”, lamenta Irenilda. Neste dia 2 de novembro, entretanto, a coordenadora do projeto teve motivos para comemorar. “Graças a Deus hoje conseguimos distribuir 40 cestas a mais que o programado.”
Atenção e carinho
Além das cestas, ninguém vai embora sem ganhar um abraço. "A gente fala que tem que passar antes no 'pula-pula' e no abraço, se não, nada de cesta", brinca Irenilda. "Eles vão embora com o alimento e um pouco mais de alegria pra amenizar o sofrimento diário. E nós recebemos também essa energia. Voltamos mais leves pra casa."
Para as crianças, carinho e doces. Cerca de 200 pequenos voltam para casa nos primeiros domingos dos meses com as sacolas recheadas. Bolachas, sanduíches, balas e refrigerantes fazem a alegria daqueles que têm tão pouco.
Próximos passos
A responsável do grupo pelas doações exclusivas às crianças, Lillian Tomé (foto ao lado), dedicou seu trabalho de conclusão do curso de Direito à ação desenvolvida no local.
“Tentei trabalhar o princípio da dignidade da pessoa humana. Meu projeto é trazer educação, alfabetização para todas as crianças, e não só distribuir os alimentos. Sempre há a necessidade, mas tenho um projeto maior.”
Nem sempre as guloseimas suprem as necessidades das crianças. O sobrinho de Maria José de Matos tem apenas 10 meses e já enfrenta uma luta diária. Com hidrocefalia e problemas ortopédicos, o bebê se alimenta por sonda e precisa de um leite especial, que custa em torno de R$ 40 a lata.
“Minha cunhada não pode trabalhar, porque tem que ficar por conta do bebê devido à quantidade de consultas que ele tem. Ela vive de doações e de uma pensão do INSS para ainda criar seus dois outros filhos”, lamenta Maria José. Em junho, o Grupo Irmão Amigo fez uma campanha especial e arrecadou latas de leite, fraldas, alimentos, roupas, além de um berço e um tanquinho para a família.
Ciclo vicioso de pobreza
Aos 25 anos, Keila Cristina Vilela já tem 4 filhos. O mais velho tem 8 anos e, o mais novo, apenas 1 mês de vida. Até a adolescência, morou no Bairro Independência Mansões, onde era atendida pelo anterior projeto do qual Irenilda participava. Há dois anos a jovem tem um novo lar.
A casa de Keila fica ao lado do local da distribuição das doações. Montada com plástico, pedaços de metal e madeira, não conta com serviços básicos como água encanada, energia elétrica e esgoto sanitário. A casa não tem banheiro.
Keila Cristina: "Não posso deixar de ganhar a cesta todo mês" (Foto: Carolina Pessoni/A Redação)
Para a jovem, as doações são mais que importantes, são necessárias. O esposo, que até dois meses atrás estava desempregado, é o único que trabalha na família. De acordo com Keila, o salário de cerca de R$ 800 paga apenas as contas básicas.
“Parei de trabalhar porque fiquei doente e agora meu bebê nasceu. Não posso deixar de ganhar a cesta aqui todo mês senão não há o que comer”, diz. Keila, no entanto, ressalta que algumas pessoas não precisariam receber as doações. “Tem gente que encosta, sabe? Aproveita e não trabalha pra receber a cesta e ainda diz ‘pra que eu vou trabalhar se tudo que eu preciso vem na minha porta, até a comida?’”, indigna-se.
Ainda que existam famílias dependentes das doações, para a corretora Irenilda, o trabalho feito pelo grupo já mostra resultados. Muitos já conseguiram emprego e já foram excluídos do cadastro das famílias carentes. "A gente vê uma evolução. Quando chegamos, a situação era muito precária, o pessoal daqui era completamente abandonado. Hoje muitos conseguiram se mudar pra um lugar melhor. Dessa forma, podemos ajudar quem realmente precisa."
Omissão do Estado
A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO, Mônica de Araújo, destaca que o Estado deve oferecer políticas públicas para a promoção da justiça social. Os principais pontos a serem verificados seriam a moradia digna e o emprego.
"Nós vemos que as pessoas vivem mais dignamente quando elas não têm apenas algo para se alimentar, mas sim quando se tornam cidadãs e podem exercer seu direito ao voto, à moradia e, principalmente, quando elas possuem um emprego", frisa.
Para a advogada, o Estado não coloca em prática o artigo 5º da Constituição da República, que diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". “O Estado brasileiro não está cumprindo um princípio constitucional, já que essas pessoas não têm seus direitos garantidos. Isso é muito claro.”
Mônica afirma ainda que as políticas sociais devem ser mais eficazes para atingir a população carente porque, para ela, além dos direitos fundamentais não serem garantidos, seus direitos humanos também não são observados. “O princípio da dignidade humana é completamente violado, até porque ali falta tudo.”
Esperança
Em dezembro de 2013, foi criada na região a Cooperativa dos Catadores de Material Reciclável de Aparecida de Goiânia (Coocap). Localizada ao lado do que então se transformou em aterro sanitário de Aparecida de Goiânia, a cooperativa tem atualmente 28 catadores cooperados.
A partir do momento em que a Coocap foi criada, proibiu-se a entrada dos catadores no antigo lixão. De acordo com a diretora de Resíduos Sólidos da Secretaria de Desenvolvimento Urbano de Aparecida de Goiânia, Márcia Nayane Rocha Santana, a retirada dos catadores atende à Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Sancionada em agosto de 2010, a legislação dava aos municípios prazo de quatro anos para a extinção dos lixões, além da implantação da reciclagem, reuso, compostagem, tratamento do lixo e coleta seletiva. “Cumprimos a lei antes do vencimento do prazo e hoje somos exemplo de gestão. Criamos a cooperativa e tivemos a resistência de apenas cerca de dez pessoas, que tentaram entrar no aterro, mas Guarda Municipal não permitiu”, afirma Márcia.
A diretora explica que os benefícios oferecidos fazem com que os catadores cooperados não deixem o trabalho já regularizado. “Eles são cadastrados em programas sociais, ganharam casas da prefeitura, que fornece ainda alimentação e transporte. Todos trabalham com os equipamentos de proteção individual, em segurança.”
Márcia se diz “encantada” com o trabalho desenvolvido nas cooperativas. “É um exemplo a forma como eles melhoraram a postura de trabalhadores com material reciclável.”
Por mês a cooperativa recebe entre 40 e 50 toneladas de material reciclável. O valor arrecadado com a venda é dividido entre os catadores. O salário dos cooperados, entretanto, varia de acordo com o preço dos produtos no mercado.
Denúncias de violência
Em janeiro deste ano, a Superintendência de Direitos Humanos do Estado recebeu denúncias de que guardas municipais estariam agredindo os catadores que tentavam recolher materiais recicláveis no aterro. Segundo o superintendente Fabrício Bonfim foi preciso intervenção a partir do momento em que foi estabelecida a crise.
“Nosso papel é garantir os direitos. Tentamos mediar a situação, fazendo interlocução da comunidade com as autoridades do município”, explica. Ainda de acordo com Fabrício, as ações foram registradas e a Superintendência elaborou um relatório.
Já Márcia Santana afirma as denúncias são improcedentes. “Fomos o primeiro município a retirar os catadores do lixão sem conflito.”
(Foto: Carolina Pessoni/A Redação)
Apesar de todo o sofrimento, a moradora Keila tem esperança de que sua vida mude. A jovem acredita que seus filhos podem ter um futuro melhor, com mais direitos garantidos. "Quero o melhor pra minha família. Quero que meus filhos estudem, tenham um bom emprego pra não precisar passar por mais nada disso."
Irenilda espera que o grupo não precise, no futuro, realizar esse trabalho. Seu maior desejo é que as pessoas não dependam mais das doações para atender sua necessidade mais básica: o acesso aos alimentos. "Torço todos os dias para que isso aconteça", encerra a fundadora do grupo.