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Abolição que não chegou

Combate ao trabalho escravo ainda é desafio no Brasil

São 200 mil em condições análogas à escravidão | 26.10.13 - 20:54 Combate ao trabalho escravo ainda é desafio no Brasil Fiscal durante resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão no Pará (Foto:Leonardo Sakamoto/trabalhoescravo.org.br)
Nádia Junqueira

Goiânia - Em 2012, em uma fazenda em Anicuns, município a 74 quilômetros de Goiânia, Cláudio (nome fictício) foi encontrado há mais de um ano em situação análoga à escravidão. Trabalhava cortando eucalipto sem carteira de trabalho. A jornada de trabalho era exaustiva, das sete da manhã às cinco da tarde com uma pausa de vinte minutos para o almoço. 
 
“A gente parava onde dava pra comer. Debaixo de árvore, podia ser”, disse quando questionado se havia refeitório. Quando tinha um dia de descanso na semana, não era remunerado. 
 
Assim que foi resgatado pelos auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho de Goiás, recebeu seguro desemprego por três meses, além de um valor relativo à multa pelo fato do empregador não ter assinado carteira anteriormente.
 
Assim como ele, outros 200 trabalhadores em 2012 também foram resgatados em Goiás e tiveram esses benefícios. O direito ao seguro desemprego é possível desde 2002, quando essa vantagem foi estendida aos trabalhadores resgatados da escravidão. 
 
Situações como a de Cláudio são recorrentes em Goiás. De acordo com o auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Goiás,  Valdivino Vieira, as condições mais recorrentes no estado e que levam ao enquadramento de trabalho análogo ao escravo são: alojamentos precários, sem banheiro, sem local para refeição, sem local adequado para repouso (dormem no chão , carga horária exaustiva e sem descanso semanal remunerado, além de não terem carteira assinada. 
 
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho da 18ª região, Antônio Carlos Rodrigues, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) vem sendo aprimorada e o artigo que garante o seguro-desemprego ao trabalhador resgatado foi fundamental para evolução do combate a esse tipo de trabalho. 
 
Para a presidente da associação dos auditores fiscais do trabalho, Odessa Martins Arruda, é a CLT que garante que esse trabalho de fiscalização seja executado. “Todas as normas a serem seguidas estão ali. A CLT é o arcabouço legal que nos orienta, nosso instrumento de trabalho”, testemunha. 
 
No entanto, o Brasil ainda não está próximo da erradicação. O relatório Índice de Escravidão Global 2013, divulgado pela Fundação Walk Free no dia 16/10, indica que o Brasil ainda tenha de 170 a 217 mil pessoas em situação análoga à escravidão.
 
Trabalhador resgatado no Pará mostra mão mutilada por falta de equipamento de segurança (Foto:Leonardo Sakamoto)

De volta ao trabalho escravo
Cláudio, um ano depois do resgate, ainda não tem carteira assinada. Analfabeto, diz ter estudado até a segunda série. “Quem quer dar emprego com carteira assinada pra gente? Eles ficam desconfiados. Acham que a gente só quer seguro-desemprego. Não é assim que funciona?”, conta Cláudio. 
 
De bico em bico, garante seu sustento em Anicuns. Quando questionado se, mesmo sem encontrar emprego de carteira assinada na cidade, voltaria a trabalhar em fazenda como antes, respondeu rápido. “Nessa não caio mais, não”. Ele não caiu, mas Renan (nome fictício), de 31 anos, que foi resgatado no mesmo período que Cláudio, também em uma fazenda em Anicuns, pode ter caído.
 
A reportagem tentou contato com ele e sua mãe quem atendeu. Disse que não tem notícias dele há quatro meses. “Você sabe do Renan?”, uma voz materna com tom dolorido questionou do outro lado quando percebeu uma ligação de Goiânia. Ela acredita que ele esteja de novo na mesma fazenda. “Um conhecido veio de lá, fugiu da fazenda, e me disse que Renan tava (sic) lá”, contou a mãe.
 
Para o procurador do trabalho a falta de educação é um fator que muito contribuiu para que o trabalhador volte a cair na rede de exploração.  “À vítima do trabalho escravo não foi proporcionada educação. Nos estados onde há maior incidência de trabalho escravo, Pará, Maranhão e Piauí, a qualidade da educação é baixa. Muitos não têm sequer escola perto de casa. Eles têm que sobreviver, têm que trabalhar. Acabam aceitando o trabalho”. 
 
Além disso, ele afirma que o trabalho é empregado em locais isolados. “Não têm como saírem de lá, reclamarem. Não há judiciário por perto. É difícil para as equipes localizarem também”, afirma. 
 
Leonardo Sakamoto, jornalista e coordenador da ONG Repórter Brasil (organização atuante no combate ao trabalho escravo), aponta a importância da reinserção do trabalhador e dá como exemplo, no Maranhão, uma fábrica de brinquedos que emprega trabalhadores resgatados. Mas, para ele, são insuficientes os programas que reintroduzem os resgatados no mercado. “Pobreza tem a ver com oportunidade. Deve-se atuar na reforma agrária, criação de empregos e de qualidade de vida. Essas pessoas devem ser protagonistas de suas próprias vidas”.  

Caminho para erradicação
 
Em maio de 1888, princesa Isabel assinava a Lei Áurea, que abolia a escravidão. Mas somente mais de cem anos depois, em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso oficializou que ainda existia trabalho escravo no país. O reconhecimento foi importante para que, em seguida, fosse desenvolvida estrutura estatal para combatê-lo. Desde então, mais de 42 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo.
 
Em 2002, os trabalhadores resgatados passaram a ter direito a seguro-desemprego. Em 2003, o conceito de trabalho escravo foi reformulado e, com isso, trabalho forçado e jornada exaustiva passaram a ser considerados fatores que ferem a dignidade humana. 
 
Assim, o artigo 149 do Código Penal que previa pena de dois a oito anos para quem empregasse trabalho escravo pôde contemplar os empregadores que exploravam os empregados, por exemplo, com jornadas exaustivas. Também foi em 2003 que foi criada a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
 
Para o coordenador-geral da comissão, José Guerra, esses passos foram elementares na caminhada contra o trabalho escravo. Ele ainda destaca outros elementos, como o plano nacional de erradicação do trabalho escravo, que garantiu estrutura para desenvolver estratégias para erradicação. Além da própria criação do Conatrae “Isso foi fundamental para desenvolvimento de políticas públicas para erradicação do trabalho escravo e para compreender esse fenômeno”, afirma.
 
Tenda usada como alojamento por trabalhadores no Pará (Foto:Leonardo Sakamoto)
 

Lista suja
Também foi importante, para José Guerra, a criação da chamada “lista-suja” do trabalho escravo, uma penalidade econômica a quem emprega esse tipo de trabalho. “É um trabalho voluntário para que se tenha repressão econômica voluntária”, caracteriza José Guerra. Trata-se de um cadastro que reúne empregadores que tenham se utilizado de trabalho escravo. O nome vai para lista depois de concluído o processo administrativo referente à fiscalização dos auditores do governo federal. 
 
O nome permanece por pelo menos dois anos, até que a empresa prove que atualizou as irregularidades e pagou as multas. Durante esse tempo, voluntariamente, bancos como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste e o BNDES não autorizam cessão de créditos a esses empregadores. Para o procurador do trabalho Antônio Carlos, a lista separa o joio do trigo. “Você não vai emprestar dinheiro para quem comete crime”.
 
Essa lista ainda é utilizada por mais de cem empresas que fazem parte do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Black & Decker Brasil, C&A Modas, Carrefour e Nokia). Ela é utilizada como instrumento de consulta e, caso a empresa esteja na lista, ela deve passar por restrições comerciais. “Essa é a mais capitalista das ferramentas para combater o trabalho escravo. Negociar com empresa que emprega trabalho escravo traz problemas com imagem institucional”, diz Leonardo Sakamoto, jornalista e coordenador da ONG Repórter Brasil.
 
Em junho, 136 novos empregadores entraram para essa lista, totalizando 504. Dessas novas inclusões, 61 empregadores estão relacionados à atividade pecuária, 14 à produção de carvão vegetal e nove à extração de madeira. Em Goiás, já são 45 empregadores na lista suja. O Estado, em 2012, liderou ranking de empresas nesse cadastro. Para o auditor fiscal Valdivino Vieira, esse número indica que “Primeiro, ainda há trabalho escravo aqui. Segundo, ele tem sido combatido e os números refletem o trabalho da fiscalização”, afirma.  
 

(Fonte:SRTE/GO)

PEC do Trabalho Escravo
Há 14 anos tramita no Congresso Nacional a chamada PEC do Trabalho Escravo. Já aprovada na Câmara, aguarda votação no Senado a proposta de emenda constitucional 57A/1999 que determina que sejam expropriadas terras onde forem encontrados trabalhadores em regime de escravidão sendo explorados diretamente pelo proprietário. Propriedades urbanas ou rurais que cultivem plantas psicotrópicas também seriam expropriadas.
 
As propriedades seriam destinadas à reforma agrária ou moradia popular e os bens expropriados passariam por um leilão e a verba seria destinada a um fundo para combater o trabalho escravo. O anteprojeto da lei foi aprovado no último dia 17/10 pela Comissão Mista Especial para Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação de Dispositivos da Constituição e deve ser encaminhado ao Senado.
 
O texto, tal qual aprovado pela Comissão, ressalva que “o mero descumprimento da legislação trabalhista” não se caracteriza como trabalho escravo. Esse tipo de exploração é definida como submissão ao trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação e retenção do trabalhador por meio de dívidas forçadas, vigilância ostensiva e impedimento de acesso a meios de locomoção. 
 
Para José Guerra, a aprovação da proposta significaria mais um passo no caminho para erradicação do trabalho escravo. “Essa PEC é um símbolo. Significa mais uma clara demonstração de que o Brasil não compactua com o trabalho escravo”, afirma. Ele ainda aborda o aspecto econômico do trabalho escravo que a PEC vem a combater. “O emprego de trabalho escravo é um fenômeno ligado à economia para reduzir custos”, afirma.
 
Além disso, para ele os fundos possíveis graças à PEC poderiam prevenir a própria escravidão. “O fato dos imóveis serem utilizados para reforma agrária e para moradia popular faz com que os trabalhadores fiquem menos vulneráveis e vitimizados”, afirma. Mesmo com a possibilidade de aprovação dessa PEC, combater o trabalho escravo continua sendo um desafio.
 

Um fenômeno cultural e econômico
 
O trabalho escravo deve ser entendido como um fenômeno que muda e adquire diferentes características de acordo com cada época e região, sendo, portanto, um fenômeno econômico dinâmico. É o que acredita José Guerra. “É uma corrida de gato e rato. Quanto mais se adequa a estrutura estatal para combatê-lo (o trabalho escravo), novas formas aparecem”, caracteriza. 
 
Um exemplo são os trabalhadores imigrantes que têm ocupado os centros urbanos. O crescimento econômico do país atraiu imigrantes de países como China e Bolívia. A mão de obra barata e precária atrai os empregadores, que ainda se valem de chantagens para assegurar a exploração. “Eles (empregadores) ameaçam denunciar à polícia que os trabalhadores estão ilegais. Com medo de terem de voltar aos seus países, se submetem à exploração”, conta o procurador do trabalho. 
 
Em São Paulo, fiscalização flagrou homens trabalhando em condições análogas à escravidão em oficina de costura (Foto:Analí Dupré/reporterbrasil.org.br)
 
“É um fenômeno que começamos a nos deparar de cinco anos para cá. Antes, o trabalho escravo estava vinculado ao campo”, caracteriza Guerra. Para ele, é um desafio compreender o fenômeno do trabalho escravo e adequar a estrutura estatal a ele. 
 
Sakamoto também argumenta que o fenômeno não é tão simples assim e, consequentemente, tampouco a erradicação. “Isso não é uma doença. É um sintoma de que algo vai mal. Nosso sistema vai mal. Combater trabalho escravo implica combater a pobreza, ou seja, distribuir renda; combater a ganância, isto é, o lucro de quem ganha com trabalho escravo; e combater impunidade, ou seja, deve haver maior repressão”, pontua. 
 
O jornalista ainda reitera o caráter econômico do trabalho escravo no Brasil. “Quem usa, usa porque dá lucro. Não é questão de ser malvado ou bonzinho. Se der prejuízo, vai deixar de empregar”, explica. 
 
Para o auditor fiscal Valdivino Vieira, o crime ainda vale à pena. “Infelizmente, já ouvi depoimentos de empregadores que já calculam as multas que terão de pagar se o trabalho escravo for flagrado. É um crime que vale à pena”. O procurador reforça o argumento. “O empregador aposta na impunidade. Dos trabalhadores que são explorados, apenas 10 a 20% busca a justiça. As empresas acabam lucrando a custa dos direitos dos trabalhadores. É uma concorrência desleal”, afirma.
 
Punição e repressão
O que é lucro, deve se tornar prejuízo. Assim Sakamoto define como o trabalho escravo deve evoluir no Brasil. José Guerra acredita que, para isso, deve-se avançar as discussões acerca de uma punição econômica mais severa. “Já tivemos avanços, com a lista suja, por exemplo. Mas deve haver mais indenizações, danos morais coletivos e ações públicas para reparação de danos. Temos que utilizar os remédios jurisdicionais”, afirma.
 
Atualmente, o empregador que utiliza trabalho escravo pode ser punido administrativamente com multas e civilmente com ações judiciais civis e públicas por danos morais, por exemplo. “Os valores das multas são irrisórios em relação às ações civis”, diz o procurador. Os empregadores ainda podem ser punidos penalmente. 
 
Até 2003, ninguém iria preso por praticar trabalho escravo no Brasil. O artigo 149 que determina a criminalidade da ação é de 1940 e foi reformulado em 2003. Mas até 2009, ainda não era determinada qual justiça era competente para julgar os casos. Agora, está definido que a justiça federal é quem lida com esses processos, de acordo com o procurador do trabalho. “Ainda assim, há poucas sentenças no Brasil transitadas em julgado”, diz o Antônio Carlos Rodrigues se referindo à punição penal.
 
Ele reitera a necessidade da repressão. “A luta contra o trabalho escravo é constante. Não podemos retroceder. Apesar dos aumentos das operações, os números têm caído, mas a repressão é necessária para isso”, diz.
 
Para reprimir, é necessário antes fiscalizar. No Brasil existem atualmente cerca de 2800 auditores fiscais. Em Goiás, são 65 que devem fiscalizar cerca de 110 mil empresas. Para a presidente da Associação dos Auditores Fiscais em Goiás, Odessa Arruda, este número está muito abaixo do necessário. “A Organização Internacional do Trabalho recomenda um auditor para cada 20 mil pessoas economicamente ativas. Aqui em Goiás a gente faz o que é possível, o auditor trabalha muito, mas parece não haver interesse em fiscalizar. Se não há intimidação, não há repressão”, afirma. 
 
Ela exemplifica com concurso que foi aberto para selecionar auditores fiscais: 100 vagas para todo o Brasil. Esse número, para a auditora aposentada, está abaixo do necessário até mesmo para Goiás. “Para trabalhar bem aqui em Goiás precisaríamos de 250 auditores e 5 mil em todo o país”, afirma. 

Comentários

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  • 27.10.2013 14:06 Aline Gonçalves

    Excelente texto! Uma pena que retrata a realidade do nosso país.

  • 27.10.2013 09:54 Ana Paula

    Muito boa a matéria! Sem trabalho decente o país não evolui, a economia não prospera e o ser humano se degrada.

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