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Histórias de quem converteu lutas em lições | 11.05.25 - 07:55
João Lucas e Carla / Márcia e João Vitor (Arte: Anna Stella)Samuel Straioto
Goiânia - Neste Dia das Mães, o jornal A Redação conta a história de duas mulheres que transformaram a maternidade em jornada de lutas e aprendizado. Carla Lacerda e Márcia Regina são mães de 'Joãos'. Um deles tem 12 anos e é autista. O outro tem 24 e nasceu com síndrome de Down. Vivem em mundos diferentes, mas compartilham um mesmo amor que se reinventa todos os dias.
Com coragem e afeto, Carla e Márcia relatam suas experiências como mães atípicas, em depoimentos marcados por sensibilidade, desafios diários e um compromisso inabalável com o bem-estar dos filhos. Nesta reportagem especial, A Redação mergulha em histórias marcadas por escuta, dor, superação e laços que reinventam a maternidade a cada dia.
Mães atípicas
As mães atípicas vivem a maternidade em sua forma mais intensa, ao lado de filhos com deficiências, síndromes ou transtornos do neurodesenvolvimento. Suas jornadas são marcadas por resiliência, amor incondicional e uma força que muitas vezes passa despercebida, especialmente pela sociedade que ainda insiste em ignorar suas lutas e necessidades.
No Brasil, a maternidade atípica está longe de ser exceção. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 350 mil pessoas vivem com Síndrome de Down no país, com cerca de 8 mil novos casos diagnosticados por ano.
Já o Transtorno do Espectro Autista (TEA) atinge aproximadamente 1 em cada 54 crianças, de acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que 1% das crianças no mundo estejam dentro do espectro.
A rotina dessas mães, que muitas vezes dedicam suas vidas ao cuidado integral dos filhos, cobra um preço silencioso. Pesquisas revelam que 38% delas enfrentam quadros de depressão e 45% lidam com ansiedade.
A sobrecarga física, emocional e mental é agravada pela falta de redes de apoio, pela dificuldade de acesso a serviços públicos e pela invisibilidade social.
Em meio a essa realidade, o Dia das Mães — celebrado anualmente no segundo domingo de maio — vai além das flores e homenagens. Oficializada no Brasil por Getúlio Vargas em 1932, a data surgiu com o propósito de exaltar o amor materno como pilar de uma sociedade mais empática.
Hoje, também é um convite à reflexão: como temos acolhido aquelas que são mães fora do previsível, dos manuais?
Quando o diagnóstico chega
O primeiro impacto costuma ser avassalador. O mundo gira mais devagar, e os planos cuidadosamente traçados parecem se dissolver em um turbilhão de dúvidas. Foi assim com Carla Lacerda, jornalista, mãe de João Lucas, e com Márcia Regina, mãe de João Vitor. O diagnóstico, para ambas, não foi apenas um termo clínico. Foi um divisor de águas.
“É um dia de cada vez, com amor e coragem”, destaca Carla. Com a força que nasce no cuidado, a jornalista contou como a maternidade atípica transformou sua vida, sua visão de mundo e sua missão como comunicadora. "A maternidade me desconstruiu para depois me reconstruir".
Ao ser perguntada sobre “Quem é a Carla “mãe”? Ela respirou fundo antes de responder, com a honestidade de quem conhece a profundidade da jornada que percorre. "Eu acho que é uma mãe em construção, que passa por desafios, que teve que ressignificar muita coisa e mudar a rota em relação à idealização."
Foi em 2015 que Carla foi impactada com a notícia de que João Lucas, então com dois anos, havia sido diagnosticado com autismo severo (nível 3). “Uma mãe que passou por uma guinada na vida. Porque quando você recebe o diagnóstico do seu filho, muda tudo”, diz.
Não verbal, o menino já trazia consigo uma série de sinais que só a sensibilidade da mãe compreendia, mesmo antes do laudo. “Você pensa onde seu filho vai estudar, o que ele vai ser quando crescer. E de repente você percebe que talvez nada daquilo aconteça. A gente cai em si.”
Uma nova rotina e uma nova Carla
Após o diagnóstico, a rotina se moldou às necessidades do João. O garoto faz 15 horas semanais de ABA (Análise do Comportamento Aplicada), além de sessões de fonoaudiologia e terapia ocupacional.
Carla optou por trabalhar apenas meio período. O restante do tempo é dedicado a acompanhar terapias, organizar rotinas, enfrentar burocracias e lutar por direitos.
Além das 15 horas semanais de terapia ABA, há ainda sessões de terapia ocupacional e fonoaudiologia. Tudo isso conciliado com a escola do filho e, claro, com a própria vida profissional. "É uma agenda de executivo pra uma criança, mas que é necessária”, detalha Carla.
Para garantir que João tivesse acesso ao tratamento adequado, Carla precisou acionar a Justiça para fazer valer Direitos e Garantias Fundamentais previstos no ordenamento jurídico nacional, relacionados à Dignidade da Pessoa Humana.
A jornalista venceu uma batalha contra uma operadora de saúde, que foi obrigada a custear as terapias. Trata-se de um direito, mas que, sem luta, muitas vezes não se concretiza. "No Brasil, 40 horas de terapia ABA por semana é impossível pelo SUS e quase impossível no particular. Só conseguimos porque fomos à Justiça."
Carla Lacerda explica que na escola, o cenário também exige enfrentamento. Apesar da legislação garantir acompanhante terapêutico quando necessário, o caminho para obter esse apoio é burocrático e desgastante. "A lei garante, mas na prática, as coisas não funcionam como deveriam. É preciso conversar, convencer, insistir. Cansa."
Preconceito que fere, empatia que cura
Além da sobrecarga física e emocional, Carla enfrenta o julgamento diário de quem não compreende as particularidades do autismo. Ela conta um episódio marcante na Praça Tamandaré. João Lucas puxou sua mão bruscamente, derrubando um manequim.
“Uma senhora me olhou e disse: ‘que menino mal-educado’. Eu respondi que mal-educada era ela. Meu filho é autista. As pessoas acham que tudo é birra, que é falta de educação. E não é. É uma criança com autismo tentando se comunicar do jeito que consegue."
Até mesmo no ambiente de trabalho, Carla se vê obrigada a justificar seus direitos. Como servidora pública, a legislação garante redução de jornada sem prejuízo de salário. Mas nem sempre isso é bem compreendido. "As pessoas acham que é privilégio. Mas quem gostaria de precisar faltar ao trabalho porque o filho tem uma limitação? É um direito, não um favor", enfatiza.
João: um menino feliz e um grande mestre
Os desafios diários não tiram de Carla o brilho nos olhos ao falar do João. Ele é o que toda mãe deseja: um menino amoroso, sorridente, resiliente. O garoto não fala com palavras, mas se comunica com gestos, olhares e carinho. E, mais que isso, ensina — todos os dias.
"Eu aprendi com ele a ser mais otimista. A observar mais a natureza. A viver no presente, e não no passado ou no futuro", afirma Carla, orgulhosa das mudanças.
Cada conquista, por menor que pareça aos olhos dos outros, é celebrada com alegria. Pegar no pincel, pintar com guache, dar um mergulho na piscina, apontar para o que quer... São vitórias construídas com esforço, paciência e afeto. "Para quem vê de fora pode parecer pouco, mas para a gente é muito. Tudo exige esforço dele. E ele não esmorece", conta.
Voz para muitas outras mães
A maternidade atípica não trouxe apenas desafios. Trouxe também um propósito. Carla compreendeu que sua formação como comunicadora não era por acaso: era a ferramenta que lhe permitiria dar voz a outras mães, a outras crianças.
"Deus me deu o jornalismo antes, e agora tudo faz sentido. Eu uso minha voz para falar sobre o autismo, para lutar por inclusão." A cada dia, ela constrói, com palavras e ações, um mundo mais empático e justo. Um tijolo por vez. Uma conquista por dia. "É um dia de cada vez. Tem dor, tem cansaço, mas também tem muito amor. E muito propósito."
A história de uma mãe atípica: os 24 anos de aprendizado ao lado de João
Outro João, agora João Vitor, também é motivo de orgulho para a mãe. “Ele cresce a cada minuto, amadurece a cada instante. A relação que a gente tem não é apenas de mãe e filho, é de parceiros de vida.”
As palavras são de Márcia. Elas traduzem com precisão a intensidade de uma jornada que já dura 24 anos. Mais do que uma história de superação, é uma história de aprendizado, adaptação e transformação mútua. Márcia é mãe do João Vitor de Paiva Bittencourt, um jovem que enche de orgulho não só a Márcia, mas um mundo inteiro.
João é ativista digital e recentemente foi eleito o melhor influenciador na categoria Diversidade e Inclusão do iBest. Ele também foi o primeiro jovem com Síndrome de Down a ser nomeado pelo Conselho do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil por defender os direitos das pessoas com deficiência e lutar pela inclusão social.
Os frutos na vida de João tiveram a contribuição direta de sua mãe. Márcia relata uma trajetória com muitas curvas no caminho, cheio de incertezas no que viria pela frente, mas de muito aprendizado, paciência e muitas conquistas.
Quando Márcia recebeu o diagnóstico de que João nasceu com síndrome de Down, ela sabia que a jornada seria diferente, mas também sabia que a única forma de lidar com isso seria abraçar o desafio e transformar as dificuldades em aprendizados. A mãe não se apega a um discurso de superação forçada, mas vê a realidade com olhos críticos, sempre buscando entender melhor a condição de João e adaptando-se para ser a melhor mãe que ele poderia ter.
João e Márcia, parceiros de vida
Para Márcia, a relação com João Vitor não é apenas de uma mãe que cuida de seu filho, mas de um relacionamento de parceria. “O João é um menino, é um parceirão de vida.” O vínculo deles transcende a ideia de que ela simplesmente cuida dele. A realidade é que ela também aprende com ele todos os dias.
Essa transformação não é no sentido clichê de “meu filho me fez uma pessoa melhor”. A mudança que João trouxe à vida de Márcia foi mais profunda: “Ele me transformou no sentido de querer aprender mais, de estudar, de querer avançar cada vez mais.”
A mãe argumenta que não se trata de um amor romântico idealizado, mas da construção de uma convivência baseada em desafios reais, onde ambos se apoiam mutuamente. Para Márcia, é essa parceria que torna a relação deles única.
A força de João nas redes sociais
As redes sociais têm sido uma ferramenta fundamental para João, não só para se expressar e compartilhar sua história, mas também para se apropriar da sua condição de forma positiva. “Ele se apropria da condição dele e, quando ele me obriga a me apropriar desse lugar da deficiência, é como se ele me ensinasse todos os dias a não ter medo, a não negar o que ele é.”
Essa apropriação é uma forma de empoderamento para João, que se torna cada vez mais ativo e protagonista da sua própria história. Para Márcia, ver seu filho nesse processo é algo transformador.
A relação entre mãe e filho
No cotidiano de mãe e filho, as brincadeiras sempre foram um espaço de conexão e crescimento mútuo. Márcia não apenas cuidava de João, mas se adaptava para estar presente nas brincadeiras e atividades que eram importantes para ele.
“Por ser mãe de um filho homem, eu tive que me adaptar mais. O João não era muito incluído, então fui eu quem fiz questão de incluir ele nas brincadeiras.” Ela jogava futebol com ele, subia em árvores, soltava pipas e até brincava com carrinhos de rolimã, atividades tipicamente masculinas que Márcia, com sua atitude descomplicada, fazia questão de participar.
Essa adaptação constante foi fundamental para garantir que João se sentisse incluído e integrado, sem limitações. “A gente sempre foi muito parceiro nisso.” Esse envolvimento nas brincadeiras mostrou a ambos que, apesar dos desafios, a vida podia ser leve, divertida e cheia de aprendizado.
A transformação de Márcia
O que Márcia aprendeu com João vai muito além da maternidade. A relação com ele a fez perceber o quanto ela poderia crescer e evoluir como mãe e como pessoa.
Ela não se viu como alguém que simplesmente cuidava de um filho com deficiência, mas como alguém que, ao lado de João, também se reinventava todos os dias. “Ele me transformou, não da maneira clichê, que meu filho me transformou em uma pessoa melhor, não. Ele me transformou no sentido de querer aprender mais, de estudar, de querer avançar cada vez mais.”
Não há espaços para falácias sobre perfeição na relação entre eles. Márcia é clara ao dizer que, apesar de todo o amor, a vida nunca foi uma linha reta ou cheia de facilidades. “Eu nunca vou falar para você que tudo é lindo.” A realidade é feita de altos e baixos, mas é justamente essa vivência constante que fortalece ainda mais o vínculo entre mãe e filho.
Para outras mães: o direito de sentir
Hoje, após 24 anos ao lado de João, Márcia reflete sobre tudo o que viveram e sobre como o filho, com sua leveza e força, transformou a vida dela. João não é apenas um filho; ele é um verdadeiro parceiro de vida, alguém que, com sua condição, a fez enxergar o mundo de uma maneira completamente nova.
Ele não apenas aprendeu a viver com a síndrome de Down, mas ajudou sua mãe a também aprender a viver de uma forma mais plena, sem medos e com mais coragem. E é essa parceria, que continua a se fortalecer, que torna a relação deles verdadeiramente especial.
Já Carla, cuja história conhecemos acima, hoje compartilha sua história com serenidade. Ela também passou pelo luto da maternidade idealizada. Por isso, fala com doçura e firmeza às mães que estão começando esse caminho. "Você tem o direito de chorar. De se entristecer. O luto pelo filho idealizado é real. Mas também é real a beleza do filho que está diante de você."
Mais do que alertar para os obstáculos, ela quer lembrar que há vida, alegria e plenitude na maternidade atípica. "Vale a pena. A jornada vale a pena. Porque ela é feita de amor, de encontros, de aprendizado”, arremata.