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Reportagem Especial

Alimentou-se daquela vez como se fosse a última: a fome em Goiás

Insegurança alimentar cresce na pandemia | 23.06.21 - 14:29  Alimentou-se daquela vez como se fosse a última: a fome em Goiás Café da manhã de uma moradora do Jardim Emanuelle, em Goiânia / (Foto: Amanda Gentilin/A Redação)

Théo Mariano
 
Goiânia -  Numa viela estreita de Goiânia, no final Avenida Lincoln, no Jardim Novo Mundo, apenas o fim do asfalto separa o bairro citado de uma ocupação, nomeada Jardim Emanuelle. Ali, próximo a um rio chamado de "corgo" pelos moradores, o sol castiga a região, tomada por matagais e entulhos nas beiradas da água corrente. Nessa linha imaginária explicitada pela precariedade das ruas, enfeitadas por alguns jardins bem cuidados em meio ao lixo espalhado, vê-se o abismo que divide a realidade socioeconômica brasileira.


“Senhor, além de Ti não há quem possa me socorrer”. Esta é a frase estampada em um dos pequenos portões colados a muros de tijolo e cimento chapiscado. A alvenaria, apesar de não ser carregada de qualquer charme, é uma conquista para moradores que pouco antes viviam debaixo de lonas. “Se eu for parar pra pensar em todas as dificuldades que vivemos aqui, nem aguento. Às vezes, é melhor deixar tudo nas mãos de Deus e confiar”, desabafa Cecília de Carvalho Oliveira, de 33 anos, mãe de duas filhas e atualmente desempregada.
 
O olhar de Cecília, carregado de humildade, parecia esconder uma dor profunda, que às vezes nem mesmo qualquer palavra poderia dar significado. A íris esverdeada mirava calma e assustada, enquanto os ouvidos atentos escutavam as perguntas, e a boca por trás da máscara rosa, com detalhes brancos, proferia apenas respostas curtas. “É muito ruim viver com essa incerteza sobre a nossa moradia e até mesmo sobre nossa alimentação”, prosseguiu enquanto três crianças brincavam ao lado de entrevistadores e entrevistados.


Cecília de Carvalho Oliveira, moradora do Jardim Emanuelle / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
 
A equipe do jornal A Redação visitou o local para conhecer de perto famílias afetadas economicamente pela pandemia do novo coronavírus.  O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), aponta que ao menos 116,8 milhões de brasileiros convivem neste momento com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave).
 
No Centro-Oeste, estão 8,79 milhões dessas pessoas, com maior proporção de insegurança moderada ou grave da alimentação nas zonas urbanas da região. “Com a vigência da pandemia, a redução da segurança alimentar foi ainda mais intensa e abrupta, considerando o espaço de tempo de apenas dois anos, entre 2018 e 2020. Também houve, nesse período, aumento significativo dos níveis de insegurança moderada e grave, que retornaram a valores próximos de 2004”, apresenta a pesquisa. Segundo o inquérito, menos da metade da população brasileira tem garantia de comida na mesa.
 
Tabela com dados sobre alimentação no Brasil de 2004 a 2020 / (Foto: Reprodução/Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19)
 
Acompanhados de uma das diretoras da Central Única das Favelas em Goiás (Cufa Goiás), Marina Mélcia, e da voluntária Laira Machado, os jornalistas caminharam pela ocupação em busca de famílias que pudessem relatar a realidade pandêmica nas vielas estreitas e desniveladas. Num momento da caminhada, com os pés sobre o esgoto a céu aberto, foi possível avistar uma grande escada. Ali embaixo estava um grupo de mulheres, com idades aparentes entre 15 e 35 anos. No local, conhecido por quem mora na região como “beco da fofoca”, a equipe jornalística decidiu parar diante dos olhares desconfiados e curiosos.


Jornalista Théo Mariano e a diretora da Cufa Goiás, Marina Mélcia, andam pela rua que continua a Avenida Linconl, na ocupação Jardim Emanuelle / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
 
Próxima dali estava Dayane da Silva Borges, de 27 anos, mãe de quatro filhos e também desempregada. Ela observava as crianças, de jeito tímido, enquanto os meninos, eram agora quatro, empinavam suas pipas com o pé direto na terra, que misturada ao esgoto formava poças de lama. Ao lado de roupas estendidas na cerca de madeira em frente a uma das casas, a matriarca do quarteto um tanto espoleta repetia o mesmo drama relatado por Cecília: “É muito difícil conseguir alimentos para toda a família. Ainda bem que temos a ajuda de pessoas como a Marina. Ela vem aqui há muito tempo para trazer doações.”


Imagens mostram a evolução da fome no país entre 2004 e 2020 / (Foto: Reprodução/Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19)
 
Os maridos de nenhuma das duas, Cecília ou Dayane, estavam em casa. Ambos trabalham e naquele momento buscavam o sustento para as pessoas que dependem deles. As fontes de renda, porém, não são suficientes para manter o básico a estas famílias que saíram do Maranhão em busca de uma situação melhor em terras goianas. Dayane mora no Jardim Emanuelle há seis anos. “Cheguei aqui quando tudo era apenas mato. Antes morávamos de aluguel, mas o preço ficou muito caro para conciliar com os outros gastos e conseguimos achar nossa casinha aqui. No início, era tudo de lona, mas agora melhoramos o espaço”, relata.  
 
De acordo com a moradora, representantes do poder público "sempre dizem", quando chega o mês de novembro, que vão desocupar a região onde residem, próxima ao Jardim Novo Mundo. “Nós apenas queremos ter a nossa casa. É muito ruim viver nessa incerteza”, acrescenta Dayane. A situação da mãe, pai e quatro filhos não é exclusiva. Segundo dados da Fundação João Pinheiro (FJP), Goiás tinha até 2019 quase 193 mil famílias em condições precárias de moradia.
 
O déficit habitacional calculado pela pesquisa representa 8,4% dos domicílios em território goiano. Se observados os números na Região Metropolitana de Goiânia, os indicadores apontam 67,6 mil moradias com níveis inadequados de vivência - equivalente a 7,4% das habitações locais.


 Dayane da Silva Borges segura seu filho mais novo no colo enquanto é entrevistada / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
 
Na residência de dois cômodos, vivem Dayane, o marido e a prole. Crianças, inclusive, não faltam pelas ruas de terra esburacadas da ocupação visitada em Goiânia. Meninos e meninas, quase sempre em pares ou trios e praticamente todos descalços, estavam a correr a cada esquina e divertiam-se enquanto a pandemia seguia. Nas mães entrevistadas, era marcante o desejo mútuo de todos que vivem ali, mas dito por Dayane Borges, com olhos marejados: “Eu quero pros meus filhos um futuro melhor do que eu tive.”
 
A dor é imensurável para quem sequer conhece a existência dessa situação social, como explica a diretora da Cufa Goiás, Marina Mélcia, ao comentar sobre o trabalho que faz ali. “O acesso a essas pessoas é muito difícil. Até mesmo quem vem doar não desce as vielas, fica nas camadas mais altas e acessíveis. Quem está aqui embaixo acaba invisibilizado e fragilizado.”


Esgoto a céu aberto no Jardim Emanuelle, em Goiânia / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
 
Ainda assim, com o apoio de ações filantrópicas, a Central doou mais de R$ 7 milhões em alimentos e produtos de higiene, segundo balanço divulgado com dados de 2021. Foram mais de 914 mil toneladas de comidas entregues. Em números, no entanto, não se mede o valor dos sorrisos espontâneos ao avistar as cestas básicas que chegam. A gratidão é expressada por todos no espaço, inclusive pelas crianças. “Mãe, eles vieram trazer comida!”, exclama uma delas.
 
Entre uma casa e outra, seguia a equipe do AR ao lado das voluntárias, sob o olhar atento de quem mora na região. Ao todo, cerca de 415 famílias vivem na ocupação Jardim Emanuelle. Segundo Marina Mélcia, cada casa deve ter, em média, de três a quatro crianças.


Boneca deixada sobre tijolos abandonados no Jardim Emanuelle, em Goiânia / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
 
“Muitas vezes, as pessoas carregam uma noção equivocada de que os moradores daqui fazem filhos para receber benefícios. Só que para ter qualquer apoio do governo, precisa-se ter a documentação em dia, coisa que muitos não têm”, argumenta a diretora da Cufa Goiás. Para se ter uma ideia, Marina, inclusive, ajudou a entrevistada Cecília a conseguir, recentemente, o Registro Geral (RG) e o Cadastro de Pessoa Física (CPF).

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil ainda aponta que o Centro-Oeste é a segunda região com menor taxa de inscritos no programa Bolsa Família. Apenas 20% dos entrevistados recebem o benefício, percentual menor que a média nacional (21,3%).
 


Marina Mélcia entrega cesta básica para moradora do Jardim Emanuelle / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
 
A solução é um desafio que parece impossível. “Uma bola de neve”, como diz a diretora da Cufa. Ou, melhor dizendo, uma bola de poeira, que além de tudo prejudica a saúde das crianças que moram na região. “Aqui, muitos meninos e meninas acabam com graves doenças devido à situação precária”, pontua a voluntária Laira Machado, que também citou a dificuldade de acesso à saúde pela falta da documentação.
 
Sentadas para descansar como se fosse sábado, as mães contavam que a alimentação era baseada em comer feijão com arroz como se fossem princesas e príncipes num banquete real, com o lanche geralmente composto por bolachas de água e sal para as crianças. “Aqui, as pessoas que já receberam cestas básicas dividem alimentos com as outras e avisam aos doadores que estão abastecidos. Acho que quanto mais pobre é a família, mais honesta é também”, contou Marina.
 

Marina Mélcia no 'beco da fofoca' no Jardim Emanuelle, em Goiânia / (Foto: Amanda Gentilin/A Redação)

A alimentação adequada é garantida pelo artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No Brasil, foi aprovada em 2010 a emenda constitucional que inclui o mesmo direito no artigo 6º da Constituição Federal. O próprio site do Planalto, no entanto, reforça que este cenário ainda é "um desafio a ser enfrentado". Ainda assim, cabe ao Estado brasileiro respeitar, proteger, promover e prover a alimentação da população.

Em Goiás, a gestão estadual afirma buscar maneiras de enfrentar tal situação. Desde o início da pandemia, informa o Executivo, mais de R$ 70 milhões foram investidos para garantir a segurança alimentar das famílias goianas. Deste montante, R$ 49 milhões foram para compra de 750 mil cestas básicas e R$ 28 milhões repassados diretamente aos município para investimentos na área de assistência social. As 250 mil cestas adquiridas na terceira etapa da Campanha de Combate à Propagação do Coronavírus estão em fase de distribuição, mas os 246 municípios goianos já foram contemplados.

Garoto se diverte com pipa durante a tarde no Jardim Emanuelle, em Goiânia / (Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)

Ainda de acordo com a atual gestão, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social atende 361 entidades de todas as regiões do Estado e faz repasse mensal de R$ 800 mil para auxílio nutricional. O governo estadual também cita à reportagem o Programa de Aquisição de Alimentos do Estado de Goiás (PAA/GO). No total, 823 produtores da agricultura familiar, de 92 municípios, foram selecionados para a participação no PAA/GO, a partir da publicação de dois chamamentos públicos no segundo semestre de 2020, com R$ 5,36 milhões em recursos captados do Ministério da Cidadania.

Comentários

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  • 24.06.2021 08:58 Juliana Nogueira

    Excelente texto, Théo Mariano. Uma situação típica da maioria dos brasileiros, retratada em forma de palavras e números.

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