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Goiânia – Enquanto a pandemia de covid-19 ainda é motivo de preocupação no Brasil, país que últrapassou marca de 500 mil mortes pela doença, festas populares e tradicionais brasileiras amargam 15 meses de paralisação. Muitas pessoas sentiram falta do Carnaval este ano, mas ao menos podem contar com a lembrança da folia do ano passado. O mesmo não pode ser dito das festas juninas, suspensas pelo segundo ano consecutivo.
A ausência da celebração em todo o Brasil afetou principalmente os grupos de quadrilha. Hoje em dia, estudiosos comparam as quadrilhas juninas, organizadas em federações e que integram um circuito competitivo nacional, com as escolas de samba do Carnaval carioca.
“Nós temos a fogueira de São João nas veias. Os pés coçam e o coração bate mais forte quando ouvimos uma música de São João. Todo quadrilheiro se emociona ao ver o seu traje e saber que não vai dançar por mais um ano”, lamenta Robert Júnior, fundador da Associação Cultural e Teatral Quadrilha Mandacaru, de Aparecida de Goiânia.
Quadrilha Mandacaru (Foto: divulgação)
Celine Ramos é diretora artística do grupo Arriba Saia, fundado em 2005. Trata-se da única quadrilha goiana que venceu o campeonato nacional, em 2017. Arriba Saia também é considerada a maior quadrilha em número de componentes, com mais de 220 pessoas envolvidas entre dançarinos, cabeleireiros e figurinistas. E, de repente, tudo isso parou.
“Ano passado a gente ficou meio sem ter o que fazer. Ainda ficamos torcendo para a pandemia acabar logo. Foi um baque. Lidamos com muitas pessoas, atendemos um público muito grande de pessoas carentes que se refugiam na quadrilha”, conta Celine. “Fizemos uma arrecadação de cestas básicas para alguns dançarinos que perderam o emprego ou estavam passando por dificuldades, fizemos algumas lives e fizemos nossa própria live, bem grande e bonita”, lembra.
A diretora comenta que um grande desafio tem sido encontrar formas de manter o grupo mobilizado. Segundo Celine, a pandemia chegou forte na comunidade. Muitos quadrilheiros e seus familiares infelizmente perderam a batalha para a covid-19. Enquanto a vacinação não chega para todos, e mesmo com as recentes flexibilizações, a diretora do Grupo Arriba a Saia descarta a realização de qualquer evento. “Não podemos colocar a vida das pessoas em risco”, destaca.
Celine durante apresentação (Foto: Letícia Almeida)
Impacto
Uma preocupação dos quadrilheiros com a pausa por tempo indeterminado está relacionada ao trabalho social desenvolvido pelos grupos que geralmente atendem regiões periféricas e acolhem jovens vulneráveis e minorias. “A quadrilha faz um trabalho muito grande com a socialização de jovens em vulnerabilidade e trabalhamos muito com a comunidade LGBTI. O movimento junino hoje é muito grande por causa dessas pessoas, que são sempre muito engajadas e comprometidas com o projeto”, aponta Robert, fundador da Quadrilha Mandacaru.
Outro desafio é financeiro. Todas as quadrilhas se bancam com recursos próprios, raramente sendo contempladas por editais de fomento. Patrocínio para o segmento também é quase uma lenda. O recurso vinha, principalmente, de eventos sociais e apresentações públicas e particulares.
“Vivemos dos nossos eventos. Antes da pandemia, fazíamos programação com rifa, festas com venda de ingressos, bingos, almoços. Assim conseguíamos garantir recurso. Sem falar que durante a temporada, nos meses de junho e julho, cobramos cachê por algumas apresentações”, explica Celine. “Para colocar uma quadrilha no tablado hoje custa muito dinheiro. Você não faz uma quadrilha com pelo menos R$ 100 mil. Temos muito pouco apoio, quase nada, do Estado e da prefeitura. As pessoas acham lindo, maravilhoso, todos querem ver, mas ninguém quer ajudar. Nós vivemos das nossas próprias pernas, das nossas próprias ações”, completa.
Um amparo para alguns grupos, como a Mandacaru, por exemplo, foi a Lei Aldir Blanc. O auxílio financeiro chegou como suporte para algumas quadrilhas durante a pandemia, mas poucos grupos conseguiram ser contemplados.
“Carnavalização”
Outra crítica pela qual as quadrilhas juninas passam é a de que foram “carnavalizadas”. Há quem acredite que as quadrilhas se tornaram um espetáculo e, por isso, teriam perdido sua identidade. A questão chamou atenção de estudiosos. Samuel Zaratim é um pesquisador goiano que fez a sua dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre o "fazer performático das quadrilhas juninas". Ele, inclusive, defendeu a tese no dia 24 de junho de 2020, dia de São João.
Samuel explica que a espetacularização traz consigo novos sentidos e significados. Porém, ele discorda da ideia de “carnavalização”. “Cada manifestação cultural do Brasil tem seu processo de ressignificação e atualização. Muitas vezes nós transpomos a fronteira cultural e pegamos emprestado elementos de uma manifestação artística cultural”.
Quadrilha Mandacaru (Foto: Lanucci)
Na percepção do pesquisador, a festa junina perdeu, de fato, aquela sua concepção original de baile na roça, de caipira tradicional. Ela é, segundo ele, produto da indústria cultural, mas, ao mesmo tempo, transita na cultura popular através da dança, da música, das comidas e de outros costumes e tradições que são, de alguma maneira, preservados e repassados de geração em geração.
“Mesmo nos anos 1970, quando minha mãe me fantasiava de caipirinha e eu ia pra escola, ali já era produto da indústria cultural, com maquiagem, figurino, cenário e trilha sonora. As artes do espetáculo já estavam lá”, exemplifica. “Podemos chamar de tradicional pelo fazer junino, que não está cristalizado no passado. O tradicional da festa junina é unir pessoas e grupos para celebrar São João”.
“Estes elementos ressignificados da festa junina constituem as performances da cultura junina, mas a cultura junina é dinâmica, ela acompanha as mudanças da sociedade. Eu não diria que está perdendo a identidade, mas ressignificando a identidade”, diz Samuel Zaratim. Segundo o pesquisador, é importante percebermos as festas juninas contemporâneas como eventos plurais e inclusivos, por isso elementos não tradicionais acabam absorvidos pela festança.
Estes elementos variam de lugar para lugar. Em Goiânia, por exemplo, é comum encontrar uma barraca árabe em boa parte dos arraiás, o que certamente não é comum na maior parte das cidades. “É espetáculo e popular ao mesmo tempo. Isso acontece. O Arraiá do Cerrado é espetáculo. Mas você pode ir nos bairros, isso fora da pandemia, e espontaneamente uma rua vai ter bandeirola, fogueira e quadrilha”, explica Zaratim. “Pode ser uma quadrilha com roupa de caipira e música funk, mas isso não tira o pé do popular”.