Mônica Parreira e Adriana Marinelli
Goiânia – “Não deixem que o povo esqueça esse crime.” A frase dita há oito anos pelo jornalista Mané de Oliveira ainda ecoa como uma súplica. É o pedido de um homem que, em 5 de julho de 2012, teve o filho executado em Goiânia. Naquela tarde de quinta-feira, que o pai faz tanta questão que todos se lembrem como forma de fortalecer sua busca por justiça, o cronista esportivo
Valério Luiz de Oliveira foi morto a tiros na porta da então Rádio Jornal 820, depois de cumprir expediente. Até hoje, um crime sem solução.
Os últimos anos foram marcados por apuração dos fatos, entraves jurídicos e agora, quem poderia imaginar, uma pandemia. O júri popular dos cinco acusados de envolvimento no crime estava marcado para o último dia 23 de junho, mas teve de ser suspenso por causa da covid-19.
O inquérito policial apontou que Valério Luiz foi morto pelas críticas que fazia à diretoria do Atlético Clube Goianiense. Maurício Sampaio, então vice-presidente do clube goiano, é acusado de ser o mandante. Os outros réus no processo são Ademá Figuerêdo Aguiar Filho, indiciado como autor dos disparos; e Urbano de Carvalho, Djalma Gomes da Silva e Marcus Vinícius Pereira Xavier, apontados como articuladores do crime.
Mané de Oliveira fez apelo no enterro do filho: 'Não deixem que o povo esqueça esse crime' (Foto: Patricia Neves)
A família de Valério encara o 8º aniversário de morte com ansiedade. Filho da vítima, o advogado Valério Luiz de Oliveira Filho define toda a situação como um ciclo que se repete. “A vida não tem como caminhar completamente sem essa questão estar resolvida”, observou. Não há um final feliz para essa história, mas ele quer um desfecho, com a condenação e prisão dos responsáveis pelo crime que chocou Goiás não só pela violência, como pela motivação. “Meu pai achava que se o que tivesse falando era verdade, não precisava medir suas palavras. Isso lhe custou a vida.”
Sobre o adiamento por causa da pandemia, o advogado garantiu que em agosto entrará com recurso solicitando nova data. Ele acredita que o julgamento deva começar no início do ano que vem. E que está tudo bem para ele, como filho da vítima, esperar mais um pouco. “Gostaria que o julgamento acontecesse na sua plenitude, com todas as pessoas podendo comparecer, sem restrição por causa da pandemia. Não queremos que nenhuma circunstância prejudique o julgamento”, afirmou.
O crime
No cenário profissional, Valério Luiz era uma figura polêmica, conhecido por não ter travas na língua. De personalidade forte, sempre falava o que vinha à cabeça. Uma das últimas frases em tom de crítica ditas por ele em 2012, e que para a família tem total relação com o crime, foi: “Quando o barco está enchendo de água, os ratos são os primeiros a pular fora” – sobre a possível saída de Maurício Sampaio da diretoria do Atlético-GO. Em 19 de junho daquele ano, os veículos onde o cronista trabalhava (Rádio Jornal 820 e PUC TV) foram proibidos de entrar nas dependências do clube.
Valério Filho disse que o pai recebia ameaças de morte, mas ele evitava comentar sobre isso com a família. Chegou até a pensar em deixar carreira de cronista esportivo e se mudar para o Sul da Argentina. “Lembro de, dias antes do crime, ver ele com taser (arma de choque). Questionei e ele disse que era para segurança, muito provavelmente porque já era ameaçado. Foi até ingênuo, não imaginou que seria morto com aquele nível de articulação e brutalidade”, relatou.
Crime aconteceu na porta da rádio onde Valério Luiz trabalhava (Foto: Randes Nunes/A Redação)
Em 5 de julho daquele ano, Valério Luiz encerrou a sua participação no programa de rádio, às 14h, e pretendia voltar para casa, onde almoçaria com o filho. Ao invés de recepcionar o pai, Valério Filho recebeu um telefonema da madrasta, Lorena, pedindo para correr para a rádio. O pai havia sido baleado. “Liguei para o Pedro Gomes, administrador da rádio, que colocou 'tiro' no plural. Fiquei preocupado”, narrou. O radialista estava em um Ford Ka quando foi abordado pelo executor, que estava em uma motocicleta e atirou seis vezes na direção da vítima. “Lembro que quando cheguei ao local, a rua estava bloqueada. Fui caminhando mesmo, até ver aquela cena. O carro parado na diagonal, com meu pai lá dentro, morto.”
Liberdade de expressão
Pela grande repercussão, a execução do cronista esportivo goiano tem direcionado holofotes a um debate sobre crimes contra a vida de profissionais da imprensa. Relatório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) indica que 64 profissionais da comunicação foram mortos no Brasil, entre 1995 e 2018, no exercício da profissão. Até a conclusão do relatório, em abril de 2019, somente metade dos casos foi classificada como solucionada. Entre eles o de Valério Luiz, mesmo ainda faltando o julgamento. O levantamento considera "solucionado" o "caso cuja autoria foi devidamente descoberta, e a persecução penal iniciada com o ajuizamento de ação penal pelo Ministério Público."
(Foto: reprodução/Facebook Instituto Valério Luiz)
Apesar de Valério Luiz não ter sido jornalista por formação, o crime chamou a atenção da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que acompanha o caso enquanto entidade solidária. Segundo a presidente da Fenaj, Maria José Braga, crimes bárbaros como esse não podem “cair no esquecimento”. “Esse caso ainda não tem um desfecho, mas é um dos poucos casos de assassinato dos profissionais de comunicação que houve investigação e identificação dos responsáveis. Isso já é um grande passo”, observou. Conforme relatou, somente 10% dos casos de assassinato de jornalistas no mundo todo são resolvidos com a identificação dos autores.
Maria José disse que crimes contra profissionais da comunicação comumente são encomendados e têm relação com poder político. “Geralmente a agressão não é algo pessoal: agride-se o profissional para intimidar e fazer com que deixe de levar ao conhecimento público determinadas informações”, explicou, indicando que por trás sempre existem interesses privados. “No caso do Valério, não há relação direta com poder político, mas econômico”, opinou a presidente da Fenaj.
Valério Filho é advogado no processo do assassinato do pai (Foto: reprodução/Facebook Instituto Valério Luiz)
Para Valério Filho, a morte de seu pai foi um “ponto fora da curva” por não estar relacionada ao contexto político, mas se assemelha aos outros casos pelo cerceamento da liberdade de expressão. “O comunicador incomoda quando questiona estruturas de poder. Por trás do futebol, meu pai mexeu com estruturas de poder que se sentiam ultrajadas pelo que ele falava”, relatou. “Nunca é um trabalho simples responsabilizar quem tem tanto poder e recurso nas mãos. Por isso o processo está demorando tanto.”
Legado
Ser homônimo do pai é, para Valério Luiz Filho, uma dicotomia. Se por um lado nutre o orgulho dos valores que estão embutidos no nome – a partir do sentimento de quem Valério Luiz foi e representou na sua vida –, por outro, carregará sempre a lembrança negativa de como a vida do xará foi interrompida tão precocemente. “É um sentimento curioso, um misto de alegria e tristeza. Acredito que cada um tem seu fardo na vida, e eu pretendo carregar o meu de forma honrosa até onde for possível”, definiu.
Valério Luiz cercado pelos filhos Valério e Laura, no Serra Dourada (Foto: arquivo pessoal)
As marcas que Valério Luiz deixou no filho vão além do nome e sobrenome. Mudou os rumos profissionais. Naquele 5 de julho de 2012, ele esperava o pai para almoçar e conversar sobre um cliente na área do direito tributário, o qual pretendia seguir carreira. Oito anos mais tarde, atuar em defesa de famílias de crimes violentos, que buscam justiça, é o que molda o perfil do advogado. “Quando se passa tantos anos gastando energia, em busca de justiça, é impossível que não altere o curso da vida. Isso foi modificando minha visão de mundo e profissional”, salientou.
Uma das ações que Valério Filho realizou nesse novo mundo profissional foi o Instituto Valério Luiz. Criado em 2013, trata-se de uma associação que reúne advogados para orientar famílias de pessoas vítimas de crimes violentos. Atua, inclusive, em parceria com organizações não governamentais relacionadas aos direitos humanos, como o Artigo 19 e o Instituto Vladimir Herzog. “Pretendo seguir carreira com instituto, é uma área que vou poder contribuir para melhorar o mundo”, projetou.
O que dizem os acusados
A reportagem entrou em contato com a defesa dos cinco réus do caso Valério Luiz. O advogado Ricardo Naves, que representa Ademá Figueredo, Djalma da Silva e Urbano de Carvalho, classificou o adiamento do júri popular como “péssimo”. “Temos tanta convicção da inocência que queremos acabar com isso o mais rápido possível. Esse processo deve voltar, deve ser convertido em diligência na delegacia para que se façam novas investigações. O assassino ou a assassina está ou estão soltos”, argumentou.
O advogado disse que há pendências processuais capazes de mudar os rumos do caso, e que já entrou com petições para anular atos do processo. Uma delas diz respeito a um depoimento que Marcus Vinícius prestou a partir de uma delação fechada em 2015, quando teria apresentado sua versão sobre o crime. “Nenhum defensor dos outros réus foi intimado para realização desse ato”, justificou. Ricardo Naves também criticou os rumos tomados pela investigação policial. “Existem erros e mais erros, e dolo”, opinou.
Já o advogado Rubens Alvarenga, que defende Marcus Vinícius Pereira Xavier, disse que não comentará o caso porque a última posição de seu representado “ocorreu em segredo de justiça, a partir de uma colaboração premiada”. Sobre a suspensão do júri popular em virtude da pandemia, alegou que não foi intimado da decisão, e que por isso “não vai se manifestar”.
Responsável pela defesa de Maurício Sampaio, apontado como mandante do crime, o advogado Ney Moura Teles também lamentou o adiamento do júri. "Estávamos na expectativa. Queremos que esse caso seja esclarecido o mais rápido possível, mas fomos supreendidos pela pandemia", disse ao destacar que apenas os processos digitais estão em andamento no Fórum. "Maurício sempre quis e quer ser julgado o mais rápido possível. Ele quer provar a inocência dele", complementou.
Para Ney Moura Teles, a ampla divulgação do caso Valério Luiz pela imprensa teve influência nos rumos do processo e, na visão dele, os desdobramentos da morte do cronista esportivo estão tomados por "fake news". "Toda essa situação foi provocada pela mídia. A família trabalhou muito bem nisso, no sentido de manipular a opinião pública, porque tem interesse na indenização que pode vir. Maurício foi acusado pela mídia, e o Ministério Público comprou essa acusação", afirmou. "Não há absolutamente nenhuma prova contra o Maurício. A realidade é essa", concluiu.