José Abrão
Goiânia – A Chapada dos Veadeiros, em Goiás, é espaço de importante resistência da cultura quilombola desde o século XVIII. Na região vivem os Kalunga, descendentes de escravos forros que escaparam das minas, formando uma comunidade forte e coesa que perdura e prospera desde então. Na língua banto, “kalunga” significa lugar de proteção e, por 250 anos, eles viveram isolados, tendo pouco contato com o mundo exterior, preservando sua cultura e suas tradições. Com o passar do tempo, esse modo de viver, que se tornou um tesouro em si e garantiu a autonomia desse povo, agora abre portas para o mundo por meio de empreendedores locais organizados de forma associativa, sempre pensando no coletivo.
O território Kalunga é o maior sítio histórico e cultural do País em extensão. São mais de 230 mil hectares de Cerrado protegido, abrigando cerca de quatro mil pessoas em um território que se estende pelos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. A área ocupada pela comunidade Kalunga é reconhecida pelo Governo de Goiás, desde 1991, como sítio histórico que abriga o Patrimônio Cultural Kalunga e, em 2021, o local foi reconhecido pela ONU como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais do Brasil.
Embora a economia principal da comunidade ainda seja a agricultura focada na autossustentabilidade, a abertura ao turismo tem se mostrado uma fonte importante de renda e de engajamento para o quilombo, servindo como meio de transformação local sem ter que abrir mão da autossuficiência, coletividade e autonomia que caracterizam a comunidade. Ao mesmo tempo, a atenção externa joga luz sobre problemas históricos, como a falta de infraestrutura local.
Comunidade do Engenho II (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
Parceiro de primeira hora nessas iniciativas foi o Sebrae Goiás, que começou a atuar junto à comunidade ainda no início do processo de abertura, em 2001. “O trabalho do Sebrae junto à comunidade de Kalunga é histórico. Eu tive a felicidade de acompanhar isso desde o início, quando as pessoas começaram a visitar os principais atrativos”, relembra Priscila Vilarinho, analista e gestora de Turismo do Sebrae.
Já existiam algumas ações de turismo de base sendo feitas pela própria comunidade junto com empresários da Chapada dos Veadeiros. O primeiro trabalho desenvolvido junto ao Sebrae foi o curso de condutor de visitantes, que serviu de base para todos os condutores Kalunga de hoje: para visitar a comunidade, os turistas são sempre acompanhados por um guia local.
“Hoje eles têm um dos protocolos de visitação mais bem feitos do país em termos de visitação turística, e isso virou uma referência no Brasil. A partir desses protocolos, eles também têm uma série de procedimentos de segurança para poder receber o visitante da forma mais acolhedora e segura possível”, acrescenta Priscila.
O Sebrae segue atuando junto à comunidade, agora com foco em fortalecer o setor. “Atualmente, nós estamos trabalhando dentro do Programa Agente de Roteiros Turísticos na comunidade de Kalunga. Há um consultor que fica ali exclusivamente para trabalhar a diversificação da oferta turística, principalmente na comunidade do Engenho, que é a principal comunidade que recebe visitantes”, pontua a analista.
Restaurante caseiro no território Kalunga (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
O grande desafio atualmente, segundo Priscila, é atender turisticamente todas as 39 comunidades que compõem o território e facilitar o acesso em vários pontos.
A líder Kalunga Natália Moreira, secretária de Turismo, Cultura e Meio Ambiente de Cavalcante, conta que, no Engenho II, a recepção e condução dos visitantes é feita por uma pessoa Kalunga para ter acesso aos atrativos turísticos, algo já estabelecido no regimento interno do território. “Hoje em dia, as atrações mais procuradas são a cachoeira Santa Bárbara, o complexo do Prata de cachoeiras e o complexo Águas Lindas, já no Tocantins”, enumera. “As pessoas vêm buscar um tanto de paz, um pouco de sossego. É importante que fique claro que, antes da cachoeira, há um povo. Tem essa imersão na nossa cultura. Antigamente, as pessoas não conheciam a comunidade, hoje isto já é bem divulgado, então, antes de chegar na cachoeira, os visitantes conhecem a comunidade e suas pessoas, quem sempre salvaguardou esse espaço”, relata.
Turismo em contato com a tradição
Segundo Natália, a curiosidade e o interesse pelo próprio povo Kalunga têm chamado a atenção dos visitantes, que querem conhecer como vivem e sua história. Abrir as portas para o turismo foi, em suas palavras, “um divisor de águas para o território e para a comunidade ter oportunidade de emprego e renda na nossa casa, em contato com a terra, com a cultura, com o Cerrado e com as famílias. Isso é de extrema importância para a comunidade”.
“Olhando de fora, a parte de profissionalização pode parecer fácil. A gente vê que o nosso território tem um potencial gigantesco para o turismo, várias pessoas já aderiram ao turismo, mas a gente ainda precisa entender como a população quer ser vista pelo turismo e como lidar com ele, porque toda a população faz parte”, diz Natália.
“O que eles mesmos trazem para nós é essa necessidade de que as pessoas que visitam o território não estejam ali somente para tirar uma foto bonita e visitar uma cachoeira, mas também entender a história, entender de onde vieram, como foi feito todo esse trabalho de apropriação do turismo pela comunidade, como eles querem também que isso reverbere para as próximas gerações”, explica Priscila. “Você tem a possibilidade de fazer uma vivência com um guia que não vai só te levar para uma cachoeira bonita, para você usufruir daquele momento, tirar as fotos e tudo mais. Você também vai ter uma aula de cultura, vai ter a possibilidade de conversar com um guia local, entender como funciona toda a dinâmica da comunidade. Então, isso é uma grande riqueza, um grande diferencial na comunidade Kalunga”, acrescenta.
Território Kalunga (Foto: Arquivo Associação Quilombo Kalunga)
A gestão do turismo é feita pela associação comunitária e, hoje, há recepcionistas e outras pessoas fazendo cursos de inglês, inclusive donos de estabelecimentos, para poder lidar com a crescente visitação de estrangeiros. “Isso é um investimento pensando na melhoria do atendimento”, explica Natália. “Ao meu ver, o turismo tem sido benéfico de forma geral para a comunidade, de forma direta e indireta. É uma cadeia que está gerando produtividade para todas as pessoas”, pontua.
Em datas especiais, como feriados prolongados, anciãos promovem rodas de conversa no receptivo, contando histórias do povo Kalunga e da formação do território. Entre eles, o pai e o tio de Natália, e, às vezes, ela mesma, contando sobre a realidade de hoje: “sobre como está o andamento hoje, como é a organização, como funciona a associação, como funciona a distribuição de renda, para que o visitante conheça de fato em que solo está pisando”.
Priscila também conta que hoje a comunidade Kalunga é referência em vendas pela internet: o turista que quiser visitar e se planejar pode fazer tudo 100% de forma on-line e digital por meio do site da Associação Quilombo Kalunga. O que é cada vez mais importante, já que o número de visitantes tem crescido a cada ano, inclusive de outros estados e de fora do país, superando a marca de 25 mil visitantes em 2023. Atualmente, há mais turistas vindos de São Paulo do que de Goiás. Em terceiro lugar nesse ranking de visitação está o Distrito Federal, mas há a presença notável de outros estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina. De fora, a maioria vem dos EUA, seguida pela França, pela Alemanha e pela Bélgica.
“Como nós temos um número de pessoas de outros estados muito grande visitando a comunidade, é imprescindível que ela consiga ofertar o seu produto na internet. Inclusive, se você chega hoje para visitar Cavalcante ou Alto Paraíso e quer visitar a cachoeira amanhã, é possível que não haja mais possibilidade de ingresso, porque existe uma cota e todo um trabalho de inteligência na questão de capacidade de carga, que também está totalmente ligada às questões do ecoturismo, em função da sustentabilidade”, comenta Priscila. “Então, o número de pessoas para visitar cada cachoeira é controlado. E isso tem tudo a ver com a preservação do patrimônio maior que eles têm nesse sentido ambiental, são as cachoeiras e tudo mais, mas, sobretudo, também o cultural.”
Empreendedorismo feminino
Outro fator local importante para a economia é que boa parte dos esforços turísticos está sendo desenvolvida e conduzida por mulheres. Segundo o Sebrae, mulheres são a maioria entre os guias e também são as que mais conduzem pequenos negócios no território, como pousadas e restaurantes. Em particular, a comida tem sido um chamariz em restaurantes geralmente conduzidos por mães e filhas.
Rio da Prata (Foto: Arquivo da Associação Quilombo Kalunga)
“Todos comentam o quanto aquele alimento tem sabor de verdade”, pontua Priscila. “São produtos orgânicos, são plantados, colhidos e manejados por eles. É a oportunidade de provar um sabor incrível, e a maioria desses empreendimentos é tocada por mulheres”, completa.
Antes de assumir a secretaria, Natália já atuava na associação comunitária da comunidade Engenho II e é proprietária da hospedagem familiar Raio de Luz, que conduz ao lado da filha. Uma das pautas tocadas atualmente é a abertura do portão norte do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, um novo ponto de acesso que vai facilitar o acesso a áreas de grande interesse turístico, como a cachoeira Santana e a Borda Infinita. Está prevista a construção de uma ponte e melhorias na estrada para permitir acesso facilitado o ano todo.
Segundo Natália, já há a presença de algumas hospedagens e de vários restaurantes dentro da comunidade. “Pensando em algo maior, a gente não tem certeza de como funcionaria, se seria algo comunitário via associação ou via algum financiamento, algum órgão. O que existe hoje é individual, cada pessoa se dedicou à construção com as forças que teve, por enquanto sem apoio de nenhuma instituição. Tudo o que tem hoje é familiar, do suor do próprio dono”, conta.