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CINEMA

Curta goiano "Casca de Ferida" narra a invisibilidade social

Projeto teve apoio da Lei Paulo Gustavo | 08.10.24 - 12:52 Curta goiano "Casca de Ferida" narra a invisibilidade social Curta goiano "Casca de Ferida" (foto: divulgação)

A Redação

Goiânia
- O curta goiano de 12 minutos "Casca de Ferida" narra a invisibilidade social e traz provocação e perspectivas sociais. O filme teve apoio da Lei Paulo Gustavo. 
 
Todo ferimento no corpo que gera uma ferida precisa de cuidados para evitar que germes penetrem no organismo e causem infecções. O processo de cicatrização dessas feridas cria cascas que aparentam ser a cura. Quando a ferida começa a cicatrizar, é comum acreditar que a formação de cascas é um bom sinal. Afinal, parece que a ferida está se curando, certo? Bem, na verdade, a tal casquinha é composta por tecidos mortos que precisam ser liberadas pelo organismo para permitir a renovação celular e a formação de um tecido novo e saudável. E cutucar essa casca é fazê-la sangrar. A casca de ferida é invisível a quem não a carrega. Só quem tem sente o incômodo e a dor quando ela é tocada ou cutucada.
 
Essa é a analogia perfeitamente criada pelo curta-metragem “Casca de Ferida”, vídeo de 12 minutos de duração, produzido a partir do conto do roteirista, produtor e escritor Rodrigo Rocha, com roteiro e direção da também produtora Kellen Casara. “O filme retrata uma realidade que está em todo lugar. Basta abrir a janela e olhar para o mundo”, resume Rocha. A roteirista e diretora do curta, Kellen Casara, apostou na sensibilidade do conto de Rodrigo para apresentar, em 12 minutos, o impacto do racismo ante àquele que recebe a mensagem. “Motivada a instigar pela sensibilidade do conto a necessidade de falar das nossas mazelas, anseio de fazer alguma diferença e ajudar na luta contra o racismo e a desigualdade”, pontua a diretora.
 
Uma visão de Brasil que todos nós conhecemos ou já presenciamos, mas poucos enxergaram. Um script realista sobre invisibilidade social que, em tempos de vídeos curtos e mensagens menores ainda, instiga o expectador a querer um tempo a mais para algumas reflexões: Quantos invisíveis vi por aí? Quantos eu deixei de ver? Quantos eu realmente enxerguei? O que eles me ensinaram?
 
Com notas claras do cotidiano brasileiro, o curta-metragem mostra o Brasil que encarcera e julga os que estão inseridos na cor da desigualdade e na necessidade da ajuda do próximo. Segundo o último Censo (2022), o Brasil tem mais de 90 milhões de pessoas pardas e mais de 20 milhões de pessoas pretas, parcela que enfrenta a invisibilidade e a exclusão, vivendo de muitas formas uma violência real e dolorosa, que ceifa sonhos e faz o silêncio machucar quando a ferida é cutucada. O curta Casca de Ferida é como uma janela aberta para unir vozes, fazer muitas outras abrirem a porta para entrar na sala da disparidade e vivenciar que a miséria tem cor e classe social, que a violência se volta à cor e que a separação social segue o fio: a cor preta.
 
“Não há como não pensar nas marcas coloniais, escravocratas, que se reatualizam cotidianamente. Se incorporam”, provoca Camilo Braz, doutor em Ciências Sociais e professor de Antropologia na Universidade Federal de Goiás (UFG). “Ninguém enxerga o homem preto caminhando pela rua, cambaleando, ensanguentado. Ninguém pára a fim de oferecer ajuda. Ele está no lugar certo aos revirados olhos brancos – o problema não é tanto sua ausência, mas quando sua presença não corrobora com o estereótipo”, detalha o professor. Camilo também vai além e vê a situação como uma espécie de patologia social. “O Brasil dual se reforça em estruturas, materiais, simbólicas, cotidianamente. Somente em um país onde impera o racismo e a aporofobia a existência de elevadores sociais e de serviço, ou quartos de empregada, faz sentido”.
 
O ator Baale, que interpreta o personagem Pedro no curta, tem um olhar sobre a personalidade de Pedro e que é presente em milhões de brasileiros pretos e pardos. “As cenas não tinham palavras e davam o recado através das imagens e metáforas, como a da carne sendo moída”, relembra Baale. Emiliano Amaral, que interpreta outro personagem importante à trama, sentiu o quanto a invisibilidade ainda é presente naquele que não carrega a dor. “Ao saber do meu personagem, a princípio fiquei um pouco incomodado e pensativo por ter que me passar por mais um homem branco no mundo que se acha superior e tendo atitudes racistas. Mas, durante o ensaio com o pessoal nos conhecemos e nos possibilitamos essa atuação. Ao final só queria abraçar a todos”, conta emocionado.
 
Para o professor Camilo Braz, o filme desperta o peso de processos históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais que envolvem o racismo e a aporofobia. “A expectativa de que um homem preto, pobre, trabalhador possa voltar para casa após um dia de trabalho e de enfrentamento com variadas formas de opressão para trazer carne moída para a esposa grávida deveria ser uma cena trivial. Se fossem personagens brancas”. Mas, segundo ele, a espera, no filme, não se converte em uma pedagogia não do esperançar. “Acredito que isso nos leva a refletir como discutir esses temas é falar sobre o que Achille Mbembe nomeia como necropolítica. Um ‘fazer-morrer’”. O antropólogo também lembra outro ponto apresentado no filme: as fake news que, nesse caso, “assemelham-se às fofocas, que são um fenômeno sociológico e antropológico – produzem e reproduzem relações sociais e, dentre elas, a falácia de que a culpa por processos desumanizantes e mortíferos é da vítima”, sentencia.
 
Sobre o filme
Pedro, o personagem central, reúne todos os elementos que sustentam a dor da invisibilidade social brasileira. E ele provoca inquietação. É o recorte de uma esquina, a presença real em cenas de cidade vividas pela periferia, é a voz de milhões de pessoas que, assim como ele, sentem o direito roubado de ser pessoa. É o chão. São 12 minutos que te fazem grudar na tela e parar para ver, para comentar e criar outros finais. E pode haver dezenas deles. Há sempre um desejo de virar a história, de contar sob outra perspectiva. É assim que o filme se une ao expectador para atingir o objetivo: provocar.
 
Com apoio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar n° 195, de 2022, criada para incentivar a cultura e garantir ações emergenciais), o filme foi contemplado pelo edital Nº 3/2023 como produção curta metragem, obra seriada e telefilmes de ficção ou animação.

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Comentários

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  • 09.10.2024 10:10 Eládio

    Maravilhosa a análise antropológica do professor Camilo.

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