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Wolney Unes
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Outra do português - Uma coluna que analisa linguagem e ideias / outradoportugues@gmail.com

Pela cidade

O raio X da pneumonia

| 01.08.16 - 16:22
Goiânia - "Não existe dotô." Não sei se essa frase é absurda ou surreal. Mas o que sei é o seguinte: se eu acabei de escrever ali atrás, se o leitor leu, se muita gente pronuncia esses sons diariamente, como dizer que isso "não existe"? É claro que existe!
 
Dia desses, um médico no interior de São Paulo quis fazer troça de um seu paciente, um mecânico da cidade. Para sua diversão, escolheu a linguagem do mecânico. É claro que poderia ter escolhido o penteado, o jeito de andar, o perfume, mas optou por divertir-se à custa da linguagem do outro. O mecânico, com belo seu sotaque, disse "peleumonia", ao que o médico replicou nas redes sociais: "Não existe peleumonia!" Pois se o paciente disse, é claro que existe!
 
Para caçoar de uma forma de linguagem, é preciso um ponto de partida. Nosso médico certamente corrigiria minha frase inicial, talvez achando que convenha mais dizer "doutorr", com um belo ditongo e um sonoro R ao final. É claro que ele também poderia aceitar "dotorr", sem o ditongo mas com um R rasqueado, à maneira dos cariocas. Pois no momento em que defino esse padrão, tudo o que se desvia dessa minha norma "não existe", não deve existir. Sou o centro do mundo, nego o direito à existência a tudo aquilo que se desvia do que desejo, daquilo que defino como apropriado.
 
O médico foi demitido, o paciente se chateou e a vida continua. O médico conseguiu uma unanimidade, todo o País contra ele. Perdeu o amigo (o paciente, em nosso caso!) mas não perdeu a piada.
 
Mas nosso médico não tem a menor importância. A desimportância do jovem profissional de Serra Negra é proporcional à certeza que temos da existência de "peleumonia", "rau-X", "espinhela caída", "cobrero", "macutena" ou que outra palavra tenhamos desenvolvido para nomear as mazelas do corpo e da alma. O que importa aqui é outra dimensão: o poder de uma categoria de dar existência à outra.
 
Infelizmente são situações que vivenciamos todos os dias. Em São Paulo foi um médico que desqualificou seu paciente, em Goiás foi um deputado que desmerece seu colega político por ter "tomado danone" na infância, no Brasil, é um ex-presidente que se diz "cansado" de ser investigado.
 
O cansaço, a desqualificação e a condenação da alimentação infantil estão diretamente ligados à percepção torta do mundo, das relações com as pessoas. Entretanto, tomar a nós mesmos como a medida das coisas pode ser complexo e mesmo perigoso. Mais complexa foi a tarefa do médico, caçoar da linguagem alheia. Tão complexa que nosso doutor não se mostrou à sua altura. E de quebra perdeu o emprego com duas colegas enfermeiras.
 
Outra do português
Conjunções
Pode ser divertido imaginar a situação contrária: suponhamos que por algum motivo alguém queira desqualificar nosso jovem profissional. Usando de seu próprio remédio, poderíamos lançar mão da linguagem para fazê-lo. Vamos analisar seu cartazinho: "Não existe peleumonia e nem raôxis". Nosso médico foi generoso: em mera meia dúzia de palavras, há quase o mesmo tanto de incoerências!
 
Em primeiro lugar, não convém dizer "e nem", já que se trata de um conflito lógico, usar duas conjunções, uma aditiva outra alternativa. A conjunção "e" serve para adicionar algo, ao passo que "nem" serve para excluir ou alternar. Diga portanto apenas "nem".
 
O X
Reproduzir sons da fala na escrita é assunto sobre o qual linguistas e foneticistas se debruçam há alguns séculos. Nosso doutor não conseguiu resultado melhor, com sua curiosa representação gráfica a pronúncia de raio X.
 
Tenho cá minhas dúvidas que haja algum lugar no planeta em que se pronuncia "raôxis", paroxítona; ouço muito é "rau-xis", vez por outra "raiô-xis". Mas nunca a forma consignada pelo doutor.
 
Concordando
Antes de terminar, convém ainda lembrar que a concordância no cartaz de nosso doutor é típica de um "nóis vai".
 
Nosso médico utiliza um sujeito composto, "peleumonia e raôxis", unidos, como já discutimos, incorretamente por duas conjunções conflitantes. Pois é costume em nosso idioma usarmos o verbo no plural sempre que o sujeito for composto: "sofrência e gafanha não existem", veja aí nosso verbo no plural.
 
A regra do plural com sujeito composto é tão forte que deve ser observada até mesmo quando o verbo vem antes dos sujeitos: não existem doutor nem enfermeira perfeitos – tudo concordando!

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