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Wolney Unes
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Outra do português - Uma coluna que analisa linguagem e ideias / outradoportugues@gmail.com

Outra do português

O filme

| 19.02.19 - 10:32
Mentira. This is a lie!
Sítio IMDb – internet
 
Criticando
No fim de semana, foi apresentado o filme Marighella, de Wagner Moura, em Berlim. O filme havia sido selecionado para a mostra competitiva, por si só uma honraria.

O personagem central do filme é polêmico: entre outras atividades profissionais, dedicou-se nos anos 1960 a ações contra o regime militar da época, classificadas como terroristas.

Pois a partir disso, o filme foi alvo de uma enxurrada de críticas. Grande parte dessas críticas foi publicada no sítio Base de Dados Internacional de Cinema (IMDb), um dos principais sobre cinema.
 
Vendo o mundo
O IMDb tem uma estrutura típica dos sítios abertos e coletivos: quem quiser publica ali o que bem entender sobre os filmes cadastrados, bem como sobre atores, diretores, produtores, etc.

Especificamente sobre o filme brasileiro, chama a atenção o enorme volume de críticas publicadas em tão pouco tempo, antes mesmo do filme estar disponível ao público. E, afora detalhes como a maioria das críticas ter não mais que meia dúzia de palavras, seus autores terem se cadastrados apenas neste mês e não terem mais nenhum texto publicado, chama a atenção a insistência no binômio verdade x mentira.
 
O que é arte?
O que é uma obra de arte? Pode ser várias coisas, inclusive misturadas ou indefiníveis, difícil dizer. Mas pode-se dizer com clareza o que uma obra de arte certamente não é: um registro factual, uma documentação da realidade.

Uma obra de arte é muito mais fruto da visão de seu autor sobre determinado evento ou pessoa. De quebra, é também uma visão imaginária de uma sociedade em um certo tempo.
 
Loirinhos
Um dos principais pontos criticados é o fato de o personagem principal ter sido representado por um negro, o ator Seu Jorge, apesar de ter sido mais branco que a média brasileira. A maior parte das críticas publicadas no IMDb busca desqualificar o filme como mentira por ter trocado a cor da pele do personagem principal.

Mas nem isso é novidade no mundo das artes. Todos nós conhecemos pinturas como a Santa Ceia, do italiano Michelangelo, ou Tiradentes, de Pedro Américo. Nessas obras, o que vemos é um Cristo loirinho e de olhos azuis, um Tiradentes de tez pálida e longas e bem-penteadas barbas. Nada mais distante da realidade: Cristo terá tido feições longe da loirice escandinava e Tiradentes certamente estava maltratado pelo longo tempo de cárcere e castigos, cabeça a barba rapadas.

E, no entanto, essas imagens não nos incomodam. Por que deixarmo-nos incomodar com um simples filme, que talvez nunca venha a ter o status clássico que essas duas obras?
 
No front
A questão aqui é completamente diferente: vivemos a era da guerra total. Se no passado, o front de combate era claro e bem delineado, hoje esse front aparece em todos os lugares, até mesmo na crítica a um filme.

Na guerra total, ficamos desorientados, perdemos a noção de quem está de que lado, perdemos a noção mesmo se há um lado e como é aquele lado. Só o que importa é confundir.

Longe de defender a possibilidade da arte apolítica, hoje revisamos tudo: o cantor favorito virou governista, o pintor predileto agora é esquerdista e o ator que me fascinava agora é cabo eleitoral.
 
Guerra total
As características das postagens, já enumeradas, levam a crer tratar-se de uma ação organizada. Com mais de 2 mil críticas postadas em menos de três dias, o filme já um dos mais comentados do sítio IMDb, antes mesmo de chegar aos cinemas do País! Como comparação, um filme como Vidro, lançado há mais de um mês e grande sucesso de bilheteria, tem apenas 1.100 críticas, ao passo que Escape Room, sucesso adolescente, não passa das 200!

A grande possibilidade aberta com a democratização dos sítios no estilo Wikipédia, abertos e coletivos, apresenta-se agora como ferramenta poderosa nas mãos dos ativistas da guerra total. É a destruição de uma grande ideia. Mais ou menos o que dizem Santos-Dumont ter sentido ao ver seus aviões transformados em novas máquinas de guerra. 

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Se a exata cópia das coisas fosse a finalidade da arte, o melhor romance seria a reprodução taquigráfica de um processo judicial.
Hippolyte Taine, crítico francês
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