Sarah Mohn
Goiânia – No fim da semana passada, véspera de feriadão, ouvi um colega de trabalho dizer que o assunto "Valentina do Master Chef" e o mais recente tema da prova do Enem (A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira) já estavam "saturados". "Só gente chata que fica insistindo nisso", disse o colega.
Eu não discuti. Só olhei para o rapaz, pensei no quanto o debate sobre violência contra mulher incomoda a sociedade e concluí: que bom que incomoda!
Talvez meu colega de trabalho não tenha despejado sobre mim esse desabafo em tom maldoso. Talvez, ele seja só mais um cidadão envolto à maioria de brasileiros que, após sentir desconforto, tenta ignorar o "chato" debate e mudar de assunto.
Ignorar é mais fácil. Considerar como pontuais casos de mulheres agredidas é mais cômodo.
O fato é que a intolerância do meu colega não é uma prática isolada. As pessoas sempre manifestam algum tipo de reação quando esse tema é levantado, mas de formas distintas: boa parte se omite do assunto, outra grande parcela classifica a discussão dentro do estereótipo de debate feminista e um pequenino grupo, mas existente, entra de cabeça na luta pela causa.
Obrigada, pessoas do pequeno grupo, por existirem.
A violência contra a mulher é uma prática tão comum que é (pasmem): situação diária. Por mais alarmante que pareça, toda mulher sofre cotidianamente algum tipo de assédio moral ou desrespeito de gênero.
Não estou exagerando e isso não é novidade. O problema é que nos acostumamos a ignorar e passar por cima do que vivenciamos com tamanha frequência.
Cantadas de desconhecidos na rua, piadinhas de colegas e amigos, assobios que nossos ouvidos já bloqueiam automaticamente, olhares escancarados de desejo para cima de nós em qualquer lugar e em qualquer ocasião. O livre desrespeito e a naturalidade com que a falta de limite é praticada existem e são rotineiros.
É lamentável, mas a verdade é que nós, mulheres, aprendemos a evitar o confronto direto com agressores e carregamos sozinhas o peso da omissão diante de situações constrangedoras.
O desrespeito masculino é tão assustadoramente ignorado que nem costuma ser comentado entre amigas. Somente casos mais alarmantes ganham destaque nas nossas conversas. O fiu fiu de cada dia, esse não merece alarde. É tão presente que há muito deixou de ser novidade.
Não me orgulho de também manter uma postura omissa. E tenho certeza de que quase todas as mulheres que vivem neste país também não se orgulham. Mas em algum momento da vida fomos obrigadas a aceitar a imposição da nossa cultura machista e encararmos a possibilidade real de sermos violentadas em caso de enfrentamento em defesa de nossas integridades física e moral.
Sem amparo da legislação, que muito avançou com a promulgação da Lei Maria da Penha, mas que pode retroceder caso seja aprovado o PL
5069/2013, as mulheres desse país precisam continuar lutando insistentemente para que o tema nunca saia de voga.
Por exemplo, caso o Congresso Nacional aprove o tal PL
5069/2013, haverá alteração no que hoje se entende por violência à mulher. Para quem não sabe, só será considerado estupro o ato sexual que resultar em dano físico ou psicológico comprovado.
Outro absurdo será a proibição de aborto em caso de estupro. A vítima não poderá sequer tomar a pílula do dia seguinte. Segundo o PL
5069/2013, a equipe médica que realizar o aborto em caso de estupro poderá sofrer até três anos de detenção.
O PL
5069/2013 é tão chocante que desanima. Mas em tempos de Cunhas, Malafaias, Bolsonaros, Felicianos e Campos, não é de se espantar. Ele nos obriga a reagir e continuar a discussão sobre o tema "chato".
Num país em que abrimos mão de usar roupas curtas e decotes por medo de sermos atacadas verbal e fisicamente na rua, é essencial que o machismo seja ostensivamente combatido desde a educação básica.
É primordial que se torne tema de redação do Enem. É fundamental que apareça na novela das nove. É necessário que, diariamente, esteja em alguma pauta pública.
Não devemos abandonar o sonho de vivermos num país em que os homens respeitem as mulheres. Essa é uma realidade que existe em alguns lugares, como a Austrália. Lá, por incrível que pareça, as mulheres recebem tratamento mais igualitário frente aos homens.
A Austrália é tão linda em relação à questão de gênero que praticamente não há preconceito quanto o assunto é o vestuário feminino. Na terra dos cangurus, se as mulheres saírem à rua vestindo roupas curtas e transparentes, a maioria dos homens não é capaz de atacá-las.
Se na nossa cultura uma cena dessas chega a ser inconcebível, na cultura australiana prevalece o respeito. Lá os homens podem até achar bonito, ou feio, mas sabem que o direito de qualquer pessoa termina onde começa o de outra.
A sociedade brasileira precisa se desprender do conservadorismo, do machismo e da intolerância. Precisa evoluir. A maioria dos homens deve começar a aceitar o que é óbvio: mulher merece todo tipo de respeito.
Se for necessário sermos chatas para lutar por integridade, que tenhamos orgulho dessa condição. E não vergonha de gritar ao mundo as violências que sofremos.
Chega de fiu fiu, chega de assédios! E vamos todas aderir à
campanha da Jout Jout: quando formos atacadas, vamos sempre fazer escândalo!