Goiânia - Quando penso em saúde, penso na vovó. Quem convive comigo, sabe que minha admiração por ela vai muito além disso, aliás. A lucidez, sabedoria, a experiência afetuosa de vida e recente gosto pela leitura dessa admirável senhora de 88 anos me tornam uma eterna apaixonada por ela. Mas como paixão acaba por nos fazer dizer coisa além do que se devia, volto. Quando penso em saúde, penso na vovó.
Penso naquilo que escapa a esse bizarro modo de vida moderna – o mais atrasado de todas que já inventaram, chutaria. Esse fingir que anda de bicicleta. Fingir que caminha. Fingir que faz força com os braços, com as pernas, com as costas. Esse esforço tremendo em comer o que não tem uma dose absurda de agrotóxicos e de conservantes. Esse esforço que você, como eu, tentamos ter todos os dias dessa nossa vida curta que nos esforçamos para ser mais longa.
Vovó comia frango de seu quintal. Vaca de seu curral. Sabia como eram (bem) alimentadas até que as matasse. Verduras, frutas, então. Nem preciso dizer que ela sabia exatamente a procedência e a (não) existência de agrotóxicos. Nunca correu risco de tomar toddynho contaminado. De encontrar soda no leite, já que vinha direto das tetas da vaca. Quase tudo se fazia das próprias mãos, evitando consideravelmente os sódios e conservantes. Mas, nem por isso, os abomináveis pão de queijo de todo dia, a banha de porco que fritava tanta coisa faltavam à mesa. Eita cardápio delicioso: quando se mexe da hora que se acorda a hora que se deita.
Eram nove filhos para se criar. Mais agregados. E fazia sabão. E vela. E lavava dezenas de panelas, centenas de roupa, metros de chão. E capinava quintal e cuidava de horta. Caminhar quilômetros dia adentro não era opção. Fazia parte da rotina, ainda mais quando carro era usado, de fato, para atender longas distâncias. Sedentarismo, coisa que se ouviu dizer depois que inventaram um computador e uma cadeira grudada nele.
Ser problemático comer besteira e ficar parado precederam nossa mania de dedicar um tempo a se mexer forçadamente – mecanicamente, até - enquanto não se mexe nunca espontaneamente. Enquanto a vida te conduz a ficar sentado ou deitado. Veio junto com esse esforço de comer o que é orgânico, quando o mundo te empurra transgênicos. Com essa tentativa de slow food, quando comer na rua é muito mais adaptável a essa vida louca. De ingerir coisas que dão imunidade, enquanto te detona a vida que segue pós-suco-detox-matinal-em-jejum.
Felizmente, tudo isso veio: o homem olhou para si, olhou para seu corpo e se deu conta de que a modernidade nos conduz a um modo de vida que mais mata que gera vida. Se há uma grande dose de estética (e, vai lá, cada um busca o cuidado com o corpo por uma razão), há também outra grande dose de cuidado em prestar atenção em um corpo explorado e ignorado numa rotina, e que é a morada de nossa alma.
Há, também, outra dose de responsabilidade que envolve, não só saúde, mas preocupação até mesmo política com consumo e com a forma como nos relacionamos com o que ingerimos – de remédio à comida.
O problema que a bizarrice do modo de vida da modernidade (que não faz bem ao corpo e muito menos a alma) e o remédio para tudo isso vieram acompanhados de uma dose exagerada de exposição combinada com uma obstinação por duração de vida.
O cuidado para não cair nos excessos de açúcar, sódio, sedentarismo e de triglicérides dessa nossa vida moderna maravilhosa foram elevados ao cubo do cuidado de si como a coisa mais sublime de que um homem pode se ocupar. Estender sua vida a um fim sem fim, perdendo de vista o que fazer com essa saúde toda.
Provavelmente, para ter mais saúde, para trabalhar ainda mais gerando um ciclo sem fim. Tornou o cuidado com seu corpo como atividade sagrada, sem conseguir pensar a que isso pode servir. Apenas para estender a existência, sem saber muito bem para quê.
Aquele cuidado com o corpo, que deveria ser feito da porta de casa para dentro, assim como com a alma e - apenas sugerindo, a forma como lidar com religiosidade, por exemplo e com demonstração de afeto - não só ganham visibilidade pública, como só parecem ganhar validade quando expostos. Não basta fazer dieta, há de que se contar para todos que está fazendo a dieta e provar no Instagram. Não basta fazer atividades físicas, deve-se postar uma selfie no espelho da academia.
Esse cuidado com o corpo não é novidade. Os gregos há muito já sabiam muito bem da importância disso. Acreditavam existir um vínculo e uma necessária harmonia entre corpo e alma e, ao contrário do que a Modernidade viria a fazer, não atribuíam um valor absoluto à racionalidade em detrimento ao corpo. Além disso, o cuidado com o corpo se relacionava com as guerras, que permitiam que os homens pudessem exteriorizar sentimentos e deixar fruir arte e sua natureza humana.
No entanto, o que eles sabiam muito bem, é que o cuidado com o corpo tinha um fim: a harmonia com a alma e o cuidado com o que é público. Cuidavam de seu corpo, sem se preocupar com o quanto duraria aquela existência. O que importava, no fundo, não era o quanto viveriam. Mas que aquela saúde, ou harmonia entre corpo e alma, poderiam fazer deles alguém cuja vida fosse imortalizada por feitos.
A preocupação deles, ao contrário da nossa, não é necessariamente com a mortalidade. Em usufruir da vida o máximo possível sem se importar se seria deixado ou não algo que transcendesse tal mortalidade. Antes, eles se importavam em produzir coisas que pudessem ser imortais. Para eles, isso de se viver apenas para satisfazer prazeres que a vida oferece não fazia dos homens algo mais do que animais. Preferiam a fama imortal, às coisas mortais.
Na contramão desse legado, nos voltamos para o cuidado com o corpo fugindo de inúmeras possibilidades de doenças e buscando estender expectativas de vida, e o fim disso é nossa própria vida individual e a busca por satisfazer necessidades ou desejos. Cuida-se mais da saúde, para ali na frente, ironicamente, apenas trabalharmos mais – opcionalmente ou quando o próprio Estado, cada vez mais, determina que estamos muito jovens ou temos muita saúde para deixarmos de produzir.
Temos uma gigantesca dificuldade para colocar nosso corpo e saúde a serviço de algo que passe da porta de casa. De algo que escape à nossa eterna rotina de satisfação sem fim de necessidades individuais. De algo que fique para o mundo. De algo que faça nos relacionar com quem a gente vive, com o espaço onde moramos e nos engaje nos problemas que vivemos.
O cuidado em si parece bastar. Queremos estender nossa existência até a última gota, sem importarmos a que ela serviu? Basta o cuidado ter estado a serviço de mais trabalho e de pequenos apetites? E, aqui, fico com a famosa frase de filosofia de boteco de meu pai: quer viver, ou quer durar?