Goiânia - “Amor” (Amour, 2012) não é um filme fácil. Do tipo que a gente engole a seco e passa horas pensando sobre, ao deixar a sala de cinema, nos obriga a profundas – e temíveis – reflexões a respeito das relações humanas. Já havia lido críticas em jornais brasileiros e franceses e tinha mais ou menos em mente o que esperar. Mas o impacto final é infinitamente maior.
Georges e Anne são músicos aposentados, extremamente cultos e que desenvolveram uma enorme cumplicidade, ao longo de uma vida de paixão e muitas afinidades. Até que um dia, ela sofre um derrame e perde toda a autonomia, a identidade e a dignidade. A consciência se evanesce e resta apenas a lembrança da mulher elegante e inteligente que um dia existiu.
O marido passa, então, a ser completamente responsável pela sobrevivência da esposa. Dá remédios, banho, comida, troca de roupa. Sobretudo, ele assiste perplexo à transformação da companheira numa pessoa completamente dependente. Presencia, impotente, a ação do tempo e das doenças sobre o corpo e a mente de Anne, minando qualquer possibilidade de tê-la como era antes.
Até que ponto somos capazes de suportar a fragilidade do outro e continuar demonstrando nossa dedicação e amor, em tom quase devocional, como acontece no caso de Georges? Estamos preparados para, diante de uma surpresa do destino, abrir mão do sonho de caminhar lado a lado de um companheiro e termos de conduzi-lo em nossos braços, pois suas pernas já não o sustentam mais?
“Amor” trata da fragilidade física e mental, mas a reflexão também pode se estender às fissuras emocionais do outro. Constatar que ele não é tão forte, decidido e sereno como imaginávamos é um susto. Percebê-lo absolutamente vulnerável, perdido, desesperançoso, não apenas por alguns momentos, mas por longos períodos, é doloroso e complicado.
A complicação é ainda maior quando comparamos nossos relacionamentos ao ideal de amor vigente em nossa sociedade fast food e consumista. Queremos um parceiro pronto, inteiro e resolvido, porque nos ensinaram que ele não pode dar trabalho nem preocupações, somente alegria e prazer. Não há espaço para dúvidas, angústias ou limitações. Se o outro não corresponde a essa idealização, deve ser descartado.
Mas é aí, justamente aí, que reside o mistério disso que chamamos de amor. Quando o encontro acontece de verdade, quando é genuíno e real, não conseguimos simplesmente “descartar” quem não se enquadra às nossas expectativas. E se ele sofre, sofremos junto. Se desce ao inferno, vamos de acompanhante, dispostos a queimar com ele em meio às labaredas.
É o “querer estar preso por vontade”, o “cuidar que se ganha em se perder”, de que Camões falava. É o sacrifício que fazemos, não por altruísmo ou elevação espiritual, mas porque não há como ser diferente. O ser tão frágil e dependente faz parte de nós, sua felicidade passa a ser fator condicionante da nossa. Sem o seu sorriso, nosso semblante é triste. Sem sua esperança, somos mais sombrios.
Se o outro precisa de nós, não podemos deixá-lo à deriva, porque seria como nos abandonarmos. Seu bem-estar torna-se o nosso próprio. Por mais exaustivo, triste e frustrante que pareça, é um caminho sem volta. Estamos irremediavelmente fadados a nos importar com quem amamos. “Quando não estás aqui, sinto falta de mim mesmo”. Renato Russo disse tudo.