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Sobre o Colunista

Eliane de Carvalho .
Eliane de Carvalho .

Eliane de Carvalho Melo e jornalista formada pela UFG em 1990, com passagens por Rádio Difusora, TV Anhanguera e outras emissoras. Trabalhou em SP como repórter na CBN e em programas da TV Globo, Band, SBT, Câmara, Assembleia e Cultura / jornalistas@aredacao.com.br

INQUIETUDES

O dia em que me despedi da minha mãe para sempre

| 11.04.25 - 08:37

(Foto: arquivo pessoal)

Quando descobri que minha mãe suspeitava ter um câncer, eu já não morava em Goiânia havia cerca de dez anos. Me mudei para São Paulo logo após a faculdade de Jornalismo, para fazer um mestrado e ter a oportunidade de trabalhar em um mercado mais profissionalizado.
 
Ela me ligou para contar as suspeitas dos médicos, e eu fiquei em choque. Sempre fomos muito ligadas. O laço entre mãe e filha, que nunca se desfaz, mesmo depois que a mãe se vai.
 
No auge dos meus 30 anos, com uma carreira já estruturada como repórter de televisão, com muitos contatos, inclusive na área da saúde, pensei e disse para ela: “Nós vamos dar um jeito nisso.” Eu realmente acreditei no que estava dizendo. Pedi que ela viesse para São Paulo para se tratar com o que havia de mais avançado nesta área no país.
 
Eu pensei que, se segurasse sua mão com firmeza, a levasse aos melhores profissionais, tratamentos e hospitais, ela poderia se curar. Eu teria controle e não iria falhar. Eu tinha tanta convicção, que acreditei tê-la convencido de que venceríamos.
 
Foram muitas cirurgias, muitos dias e meses em hospitais, horas e horas em consultas médicas e exames demorados, sempre na expectativa de uma boa notícia. Mas o mais difícil, o mais duro de tudo, era vê-la com muita, muita dor. E esses momentos se repetiram tantas vezes, pareciam uma eternidade.
 
Houve bons momentos, em que ela ganhou fôlego, pôde descansar, se divertir, acreditar na cura. Mas foram momentos breves, após alguma cirurgia bem-sucedida ou depois de experimentar alguma medicação que funcionou, no início.
 
Em um desses momentos, eu já casada, meu marido me falou sobre uma oportunidade profissional que significaria passar alguns meses na Alemanha, seguidos de alguns anos na Espanha. Depois que eu já “dominava” São Paulo, senti muita vontade de passar um tempo em outro país e ampliar mais meus horizontes. Eu já vinha cavando uma oportunidade assim antes mesmo de conhecê-lo. Então, era mesmo uma oportunidade bem-vinda para os dois.
 
Minha mãe estava numa boa fase de um dos tratamentos. Chegamos até a pensar que ela estaria curada e, nesse contexto, decidi que poderia acompanhar meu marido — não sem antes sentir muito medo de abandoná-la, ter várias conversas longas com amigas próximas e muitas crises de choro, mas fui. Eu e ela estávamos de coração muito apertado com essa decisão.
 
Me lembro, como se fosse ontem, do dia em que ela me ligou em Colônia, na Alemanha, para contar, feliz da vida e para aliviar minha angústia de estar longe, que o exame mais recente mostrava que os tumores estavam sem nenhuma atividade celular e que a doença estava adormecida, paralisada. Seguiram-se meses — um pouco mais de um ano — de muita alegria.
 
Ela estava aproveitando cada segundo daquele momento, a família toda, meu marido e eu, que naquele instante já estávamos na Espanha, vivíamos a realização de um sonho. Quando eu entrava no ônibus, olhava a orla marítima a caminho do segundo mestrado, no trajeto entre Sitges e Barcelona — um dos cenários mais bonitos que já vi na vida — e agradecia. Com certeza, uma das épocas mais felizes da minha vida. Imagine só, viver aquilo tudo e ainda ter minha mãe com saúde.
 
Se eu pudesse parar o tempo ali, pararia. Logo engravidei dos meus filhos gêmeos, o casamento feliz, terminei o mestrado com nota máxima, trabalhei como correspondente, fiz tantos amigos. Mas a felicidade são momentos, e períodos tristes nos ensinam a identificar e usufruir de um momento feliz. Que bom ter podido viver essa fase com tanta alegria no coração e sentir gratidão.
 
Mas o câncer parece ser uma entidade, que tem suas próprias vontades, e ele se expandiu, sem trégua, machucando muito a todos nós, nos arrancando as esperanças e a perspectiva de uma vida feliz de novo.
 
Mamãe sofreu muito, por ela e por nós. Ela fraquejou muitas vezes, mas também se manteve íntegra, como sempre foi. Uma mulher forte, elegante, era muito bonita, uma leitora voraz, agregadora, generosa e uma referência para nós, seus irmãos e sobrinhos. Ela era a primogênita de oito irmãos. Tinha seus momentos, claro, como todas as pessoas de personalidade forte, mas ocupavam um lugar muito pequeno perto do restante.
 
Depois de oito anos fora do Brasil, meu marido, meus filhos e eu voltamos. Eu não queria mais voltar para o Brasil, mas queria estar perto da minha mãe. Naquele momento, o câncer já estava muito avançado.
 
Como eu era uma filha que saiu cedo da barra da saia da mãe e que já tinha enfrentado tantos desafios, de alguma maneira, ela parecia me achar preparada para aguentar o tranco. Um dia, me abraçou chorando, me pediu colo, me disse que estava morrendo e perguntou como seria ir para o outro lado e ficar longe de todos nós.
 
Eu fraquejei. Não consegui conversar sobre a morte com ela, não aguentei perguntar como era para ela viver aquilo tudo, segurar a mão dela e dizer: “Eu estou aqui, do seu lado, e vamos viver isso juntas.” Não consegui. A sensação era que, se fizesse aquilo, desmoronaria e perderia o pouquinho de força que restava para dar conta daquela situação.
 
Demorei para contar para ela e para meu pai e irmãs que o que ela tinha era câncer. Dizia que era um tumor benigno. Mas a mentira, como todas as mentiras, um dia se revela, e aqui se tratava de um câncer, que tem a força de uma tempestade, de um mar bravo, de um deslizamento de terra. Ele não se deixa controlar. Na verdade, nunca disse. Aos poucos, a verdade foi ficando clara para todos.
 
Enfrentar esta doença foi extremamente solitário para todos nós, apesar de estarmos mais unidos do que nunca. Eu não me abri com minhas irmãs para falar dos meus medos. Nós apenas lutávamos contra o câncer. De certa maneira, estávamos todos doentes, exaustos e muito tristes.
 
Tivemos um último Natal todos juntos. Mamãe estava de cadeira de rodas, muito magra, sem autonomia, mas lúcida. Ela sabia que não aguentaria chegar a mais um Natal. Ficou até o fim da noite na sala, com todos reunidos após a ceia, participou da entrega dos presentes. Ela tinha muita dignidade. Não saiu do papel de mãe, de matriarca, nem naquele dia.
 
Dias depois foi hospitalizada pela última vez. Nós já estávamos todos no modo automático, sem forças para lutar contra aquela doença. Um dia, eu e minha irmã mais velha, em uma conversa franca, dissemos que seria melhor ela partir — “já não estava mais valendo a pena”, como mamãe me disse uma vez.
 
Eu não quis sair de perto dela nem um minuto. Fiquei como um cão de guarda, como disse um dos médicos. Uma noite, o médico que estava à frente do caso nos disse que o melhor era sedá-la e que, a partir daí, ela não voltaria mais. Não tínhamos mais escolha. Era o melhor para ela, naquela situação. Meu pai foi se despedir dela, do grande amor da vida dele, e chorou bastante. Desabou. Foi muito, muito triste vê-lo assim e não poder cessar todo aquele sofrimento.
 
Mamãe foi levada para a UTI e pedi para ficar ao lado dela até que partisse, e me foi permitido. Estivemos ali horas, de mãos dadas, com ela já inconsciente. Minha irmã mais velha foi com meu sobrinho para se despedir. Um grande amigo e líder espiritual da família a benzeu. Nos momentos finais, minha irmã mais nova chegou e ficamos ali grudadas nela, até que a técnica em enfermagem nos pediu para sair, porque era hora de dar banho em todos na unidade de terapia intensiva. Saímos por alguns minutos e a técnica veio nos chamar em seguida: “Os sinais vitais dela estão baixando.” Parece que ela estava apenas esperando que soltássemos suas mãos. Na verdade, acredito que, de alguma maneira, ela estava só esperando isso mesmo para ir.
 
A partir daí foi muito rápido, mas também muito bonito. É tão forte ver o momento exato da morte de uma pessoa que você ama tanto. Difícil pôr em palavras, mas, apesar de toda a dor, existe uma beleza na vida — até no momento da morte. O dito popular apregoa que todo mundo nasce e morre sozinho. É verdade, mas minha irmã e eu estivemos com a mamãe, no exato instante em que ela se foi. Nós a agradecemos e rezamos por ela. Acredito que ela, de alguma maneira, viu aquilo tudo, e, para mim, foi importante estar com ela na hora da passagem. Isso me conforta até hoje. Penso que posso ter ajudado de alguma maneira. Ela deu um longo e último suspiro — e se foi.
 
Este ano fez dez anos sem ela. A saudade é imensa, imensurável. Mas sou uma mãe melhor, com tudo que aprendi com o processo da morte da mamãe. Ela está sempre presente em nossas conversas. Falo sempre dela para meus filhos, e assim preservamos a memória e todos os ensinamentos que nos deixou. Ainda hoje, me emociono muito quando falo ou escrevo sobre essa vivência com ela. É preciso falar da morte, da perda, processá-la, elaborá-la para poder seguir em frente.
 

Comentários

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  • 13.04.2025 08:07 Andrea Vecci

    Seu texto exala esperança e amor, ainda que profundamente triste.

  • 12.04.2025 16:51 Cristiane C Melo

    A morte, a vida, o amor, a maternidade e a saudade. Lindo texto!

  • 11.04.2025 21:11 Raquel

    Que belo texto! Me emocionei aqui. As palavras e seus poderes.

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Eliane de Carvalho .
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Eliane de Carvalho Melo e jornalista formada pela UFG em 1990, com passagens por Rádio Difusora, TV Anhanguera e outras emissoras. Trabalhou em SP como repórter na CBN e em programas da TV Globo, Band, SBT, Câmara, Assembleia e Cultura / jornalistas@aredacao.com.br

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