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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Sangue chama sangue

| 25.02.25 - 08:00 Sangue chama sangue Orson Welles, como Macbeth, no filme de 1948 dirigido por ele mesmo (Foto: Imdb)
A possibilidade da violência e seus efeitos orienta grande parte das decisões que tomamos, assim como a estrutura da própria vida em sociedade. 
 
O monopólio no uso da violência pelo Estado atrelado a direitos e garantias individuais que protegem o indivíduo dessa mesma violência foi provavelmente a ideia mais genial concebida pela espécie humana. Viver sem medo da violência não apenas é um valor absoluto e elemento fundamental daquilo que podemos chamar de desenvolvimento, como também tem importância instrumental, liberando a força e a energia humanas para a produção material, intelectual e para o cultivo de valores espirituais.
 
A democracia, nesse sentido, não é se não um engenhoso mecanismo para delimitar o exercício da violência e canalizar de forma positiva os conflitos para a construção do bem comum.
 
Por isso, em tempos de questionamentos e ataques a ela, parece importante olhar para a maneira pela qual vimos encarando a violência. Como tudo, ela também é filtrada pelas lentes da polarização.
 
De um lado, há hoje uma banalização da violência e do uso da força. A tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 é um exemplo óbvio, junto com a escalada de brutalidade das polícias e de uma visão segundo a qual precisamos de mais violência na regulação das relações sociais - a despeito de nossos números assustadores de homicídios, estupros e roubos, entre outros crimes. Paradoxalmente, segundo esse olhar, precisamos de mais violência para conter a escalada de violência.
 
Embora essa visão se manifeste de forma mais óbvia na direita política, ela não é exclusividade sua. A ideia de que violência pede violência - ecoando a célebre admoestação de Macbeth: “Sangue chama sangue” - está desde sempre também na esquerda revolucionária. Para ela, contra a violência do capital, justifica-se a violência da revolução. O mesmo pode-se dizer da esquerda identitária que, para combater violências pretéritas e presentes contra grupos discriminados, toma para si a missão de fazer justiça - que deveria caber ao Estado - por meio de cancelamentos e linchamentos morais.
 
Em sentido oposto, mas não menos importante, a violência parece ser superlativizada e banalizada pela confusão e igualamento entre o exercício inaceitável do poder ou da força física e frustrações ou traumas inevitáveis ao convívio humano. 
 
Em recente episódio, por exemplo, no podcast Rádio Novelo Apresenta, a jornalista Vanessa Bárbara relatou um traumático término de relacionamento ocorrido uma década atrás, retratando-o como um caso de violência misógina, assédio moral e verdadeiro abuso que a traumatizou. A despeito de que tenha usado nomes fictícios para os personagens envolvidos, todos sabem quem são. O episódio ganhou as redes e se desdobrou em enorme polêmica, envolvendo, entre outros, o jornalista Pedro Dória, que criticou duramente a jornalista. Sem desmerecer a dor real de Vanessa, há uma evidente confusão no gesto entre um tipo de violência que não pode ser aceita e um terreno bem mais complexo de subjetividade moral inerente a relacionamentos afetivos que não deveria ser objeto de sanção na esfera pública como a pretendida pelo procedimento de cancelamento de que ela lançou mão.
 
Isso não é negar, claro, que não sejamos uma sociedade tremendamente machista e que muitas mulheres não sofram terríveis violências e convivam cotidianamente com o medo de serem vítimas dela.
 
Nesse extremo do espectro, dos que veem violência inaceitável nos menores gestos, parece haver uma idealização oposta, que é a de uma sociedade onde toda violência poderia ser purgada. Diante desse ideal, qualquer frustração ou ameaça ao exercício da individualidade é vista como violência inaceitável e passível de rigorosa punição.  Se, de um lado, a violência real desfila diante de nossos olhos anestesiados e é glorificada pelos que endeusam a ideia de justiça com as próprias mãos, de outro, há um renovado egocentrismo que torna muita gente incapaz de lidar com qualquer dissabor ou ferida impingida pela vida em nosso processo de sociabilização e amadurecimento.
 
Aprendemos com Darwin que a violência está inscrita em nossos genes. A luta pela sobrevivência é um aspecto determinante daquilo que somos. Aprendemos com Freud que ela está também inscrita em nossa alma. Começa no nascimento e nos constitui de maneira central, posto que deixar o útero, única situação em que somos um só com o outro, é violência fundante daquilo que somos. Jogados no mundo, para sempre sentiremos falta dessa unidade e isso será a força estruturante de nossas subjetividades. De forma cruel, a única possibilidade de recuperação da unidade é a própria morte, violência suprema, quando voltamos a nos dissolver no todo. O corpo é condição da liberdade, mas também casa da mais terrível prisão. Essa é a condição humana.
 
Se a violência é inerente ao que somos, precisamos aceitá-la e compreendê-la em toda sua complexidade. Não podemos absolutizá-la como solução dos problemas, nem como problema insolúvel, nem como substantivo que designa todo e qualquer conflito social. Não podemos tampouco relativizá-la a ponto de torná-la banal e onipresente, nem a ponto de acreditar em fazer justiça com as próprias mãos ou com as palavras.
 
É nas sutilezas da democracia que a sociedade melhor se ajusta à violência e a violência à sociedade.  

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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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