Bosque dos Buritis, em Goiânia (Foto: Hely Júnior/A Redação)
O melhor de correr, além dos benefícios físicos, é a possibilidade de observar a cidade e as pessoas.
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Zen e a Arte de Manutenção das Motocicletas, Robert Pirsig explica que uma das vantagens de viajar de moto é a sensação de ser parte da paisagem, e não uma espécie de observador externo como acontece dentro de um automóvel. Creio que o mesmo pode ser dito a respeito de correr.
Correr é também qualitativamente diferente de caminhar - digo o caminhar pela cidade apenas com o propósito de se deslocar de um ponto a outro ou mesmo a caminhada como exercício. O esforço físico da corrida possibilita uma atenção de caráter quase meditativo. A respiração intensa e o impacto sobre os pés por vezes criam um ritmo que induz uma espécie de transe em que a mente silencia e nos tornamos apenas consciência imediata, aberta e atenta a tudo o que afeta nossos sentidos.
Nem sempre é assim. A depender do estado mental e do cansaço, nada funciona. Acelero demais e me canso rapidamente, não encontro o ritmo adequado, próximo da capacidade máxima, mas sustentável por um longo tempo, a mente não silencia, os minutos se arrastam e o exercício vira uma tortura.
Quando tudo vai bem, entretanto, além da boa sensação de vitalidade - o corpo quente, a respiração compassada e a certeza de que se pode seguir desse modo por muitos minutos - há ainda essa possibilidade de olhar para a cidade de um jeito diferente.
O lugar em que mais gosto de correr em Goiânia é o Bosque dos Buritis. É o parque mais antigo da cidade, previsto em seu projeto original, praticamente no centro da cidade, a menos de um quilômetro da Praça Cívica e do Palácio das Esmeraldas, a sede do executivo estadual.
Ainda que seja uma pequena ilha de mata em meio ao concreto e ao asfalto de uma metrópole de mais de 2 milhões de habitantes, o Bosque conta muitas coisas sobre Goiânia.
Primeiro, quem entra nele estranha logo a densidade e o porte das árvores, a mata de respeito, numa região cuja marca é o cerrado, de árvores menores e vegetação em geral mais esparsa, num ecossistema adaptado à escassez sazonal de água e aos solos de baixa fertilidade natural.
A sensação dentro do Buritis é quase amazônica. Depois de uma madrugada de chuva então, a temperatura lá dentro cai e dá quase pra pegar a umidade com a mão. Mesmo com o sol pleno do lado de fora, a luminosidade entre as árvores é contida e parece pedir silêncio. Há uma energia diferente, uma espécie de tensão pela fartura de vida, uma eletricidade no ar, como se ali a natureza estivesse sempre prestes a explodir.
A explicação para esse ecossistema é a existência do Córrego dos Buritis, que corta o parque, onde foi domesticado para formar dois lagos e um canal que lembra aqueles do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Originalmente, o curso d’água formava ali uma área sazonalmente alagada, e a abundância de suas águas criou o ambiente propício ao surgimento da floresta.
Tanto que, basta olhar as fotos da época da construção de Goiânia, na década de 1930, para perceber que o bosque não era muito maior do que hoje. Afastando-se das margens do córrego e de sua pequena planície de alagamento, brotava o cerrado que recobria a maior parte da área do plano original da cidade, com outras matas florescendo apenas nos vales e margens dos córregos, como o Botafogo, o Capim Puba e o Cascavel.
É impressionante pensar, nesse sentido - e diz muito sobre as nossas cidades -, que o Córrego dos Buritis tenha sido quase inteiramente canalizado. Ele hoje só vê a luz do sol quando é despejado no primeiro lago do Bosque, vindo pelas tubulações que passam sob as Avenidas 87, 85 e sob o Tribunal de Justiça. Depois, torna a submergir e deságua em algum ponto do Capim Puba, de onde suas águas seguem rumo ao Meia Ponte, ao Paranaíba, ao Paraná, ao Rio da Prata e ao Oceano Atlântico.
Sair da minha casa, na Avenida 83, e correr até o Bosque, portanto, é passar pelo coração histórico de Goiânia. É cortar as vielas abandonadas do Setor Sul, onde o capim parece reclamar de volta áreas civilizadas, e ver os vestígios de um projeto de urbanização de outro tempo, pensado para convocar as pessoas para as áreas verdes e forjar um sentido de comunidade. É ver a cidade art-déco que se pensou modelo de um Brasil moderno, cujas fachadas hoje anacrônicas parecem saídas de um filme antigo de ficção científica. É bonito encontrar essa cidade semi-escondida atrás das feias fachadas de comércio e dos novelos de fiação nos postes. É passar na frente do Palácio das Esmeraldas e dos prédios históricos da Praça Cívica e sentir o respeito que impõem sem perder esse estranho ar de uma modernidade imposta sobre um sertão que teimava em não se deixar domar. É passar na frente da casa de Pedro Ludovico, líder da Revolução de 1930 e fundador da cidade, e pensar sobre o que leva alguém a pegar em armas por ideias e fazer a loucura de construir uma cidade inteira do nada. É finalmente entrar no Bosque e, em meio à mata luxuriante e cheia de vida, ver as pessoas humildes dando pipoca aos patos, o cachorro latindo freneticamente para uma tartaruga, o mendigo envolto em andrajos tomando cachaça às sete horas da manhã. É se misturar com essa estranha massa chamada mundo que junta manifestações de forças muito maiores que nós, como uma floresta, a pequenos fragmentos dos nossos esforços humanos, como uma cidade. Tudo entretanto fadado a desaparecer diante do poder inexorável do tempo.