Montanhas têm vida e personalidade próprias. Para quem sente seu magnetismo e se encanta com as formas esculpidas na rocha e no gelo, para os que admiram as paredes verticais e os cumes distantes imaginando um dia pisá-los, elas podem se tornar amigas, inimigas, monstros ou entidades - como em geral o são para povos que habitam seu entorno ou suas encostas.
Montanhistas desenvolvem relações de vidas inteiras, casos de paixão e amor, verdadeiras obsessões, com algumas delas. Muitos viveram e morreram por essas fixações. Há muitas histórias lendárias de tragédia, de superação e de sobrevivência por um fio envolvendo montanhas.
Eu nunca fui um montanhista ousado. Escalei poucas montanhas mais modestas, enfrentando algumas vezes um medo quase paralisante e a pergunta constante na cabeça do que me encontrava fazendo ali. Sempre fui um leitor ávido, entretanto, de relatos de façanhas em encostas de gelo e rocha. Os livros de
Reinhold Messner, o tirolês que foi o primeiro homem a subir as
14 montanhas com mais de oito mil metros, as histórias das grandes conquistas, como o
Annapurna, de Maurice Herzog, primeira delas a ser escalada, os grandes feitos de sobrevivência, como o
Tocando o Vazio, de Joe Simpson, que foi tomado por morto no interior de uma greta de gelo na Cordilheira Huayhuash, no Peru, e conseguiu rastejar ao longo de vários dias, com um perna quebrada, até o acampamento-base.
Por isso, minha relação com as montanhas realmente míticas é mais mental do que real. Mas não há quem conheça algo delas e que não tenha uma reverência toda especial por dois cumes vizinhos na Patagônia argentina: os cerros Fitzroy (3.405 metros) e Torre (3.128 metros).
O tamanho e a verticalidade de suas paredes e o clima inclemente da Patagônia andina tornaram-nas palcos de ascensões e tragédias lendárias. A dimensão mítica do Torre especificamente foi celebrada no cinema pelo cineasta Werner Herzog em
No Coração da Montanha, filme de 1991, que conta a história fictícia da competição destrutiva entre dois escaladores pelo cume da montanha - aliás, o título original do filme, “Scream of Stone”, ou “Grito de Pedra”, é uma metáfora perfeita e muito mais adequada da dramática geografia da montanha.
O Torre só foi efetivamente conquistado em 1974 por uma equipe liderada pelo italiano Casimiro Ferrari. Para se ter ideia, em 1964, dez anos antes, todas as 14 montanhas com mais de 8 mil metros já haviam sido escaladas, e mesmo o Fitzroy, que também é extremamente técnico e desafiador, já fora conquistado em 1952.
Há mais de 30 anos devoro histórias sobres essas duas montanhas e ouço relatos de primeira ou segunda mão de amigos e conhecidos sobre tentativas exitosas ou não de subi-las. Tantas vezes vi fotos e filmes em que aparecem seus contornos que é quase como se as conhecesse. Sei de cor a sequência dos cumes da cadeia localizada no Parque Nacional Los Glaciares. Dda esquerda para a direita, começando com o Torre, vêm, em seguida, a Aguja Egger, a Aguja Standhart, a Aguja Saint Exupery, a Aguja Juárez, a Aguja Poincenot, o Cerro Fitzroy, a Aguja Val Biois, a Aguja Mermoz e, por fim, a Aguja Guillaumet.
Nos últimos dias de 2024, pude finalmente ficar cara a cara com essas duas gigantes que ocupavam meus sonhos e fantasias havia tanto tempo. Não para escalá-las, óbvio, apenas olhá-las frente a frente e ao menos caminhar até seus pés.
Não decepcionaram.
Chega a ser risível, por absurda, a paisagem de quem se aproxima da pequena vila de El Chaltén pela Rota Provincial 23: à frente, a reta infinita de asfalto, à mão esquerda, o Lago Viedma, azul cobalto sob a luz do fim do dia, à direita, a serra ocre da pré-cordilheira, e bem sobre o risco da estrada, erguendo-se de uma vez 3 mil metros contra o céu, as paredes graníticas vermelhas desse mítico cordão de montanhas. Impressiona pela dramaticidade, pela beleza inacreditável, pelo tamanho que desafia nossa capacidade de medir, por parecerem tão próximas e ainda assim estarem tão distantes.
E a caminhada até perto delas se deu em dias absurdamente bonitos e há até pouco tempo raros. Aparentemente, as mudanças climáticas têm tornado menos instável a atmosfera patagônica e os dias de sol vêm ficando mais comuns. O céu estava completamente azul, sem nenhuma nuvem, a temperatura, em torno dos 10 graus. Acho difícil pensar em algo mais recompensador do que uma caminhada intensa em um dia assim sob a sombra dessas montanhas.
Os puristas dirão sempre que os bons tempos já ficaram no passado, quando não havia tantos turistas e bares descolados numa El Chaltén que hoje se parece mais com uma vila dos Alpes franceses do que com o posto avançado e remoto de fronteira que já foi um dia. Eu, entretanto, não me importo de retornar da trilha cansado e tomar uma cerveja sob o sol agradável e o ar frio do fim do dia olhando para esses cumes. Para mim, eles continuam distantes e veneráveis da mesma maneira.