Eu já viera à Patagônia duas vezes, mas descobri que não tinha de fato vindo.
Há pouco tempo, conversando com dois amigos argentinos, Max, que é geólogo, falava sobre como trabalhara na Patagônia e “aquilo era só petróleo e vazio”. Não entendi o que ele queria dizer. Essa ideia de uma Patagônia vazia não casava com aquilo que eu já experimentara e com a Patagônia que eu idealizava. Mas eu estivera na região como escalador e como turista e não me afastara, portanto, das principais cidades que recebem visitantes, como Bariloche, El Calafate e Ushuaia.
Agora, entretanto, viajando de carro e de fato cruzando uma porção muito mais extensa da região, sobretudo aquela entre as cidades, o que mais me impressionou foram exatamente os imensos vazios. Atravessar centenas de quilômetros de estepes semi-áridas e retas infinitas de estradas sem ver uma casa, uma vaca ou uma lavoura sequer - e ainda assim, por outro lado, após 200 ou 300 quilômetros, encontrar finalmente uma pequena vila, de 20 ou 30 casas, literalmente no meio do nada, açoitada pelo vento, e imaginar o que deve ser o inverno em um lugar como esse.
Olhando em retrospecto, entretanto, deveria ser óbvio que a Patagônia é um grande vazio e que as perguntas que orientam nosso olhar conformam os lugares à própria imagem que buscamos - ao menos até que outra experiência refute completamente essa imagem.
Afinal, basta se debruçar sobre um mapa rodoviário da Argentina para ver como são poucas as rodovias na Patagônia, basta constatar a aridez da maior parte da região ou pensar no clima extremo e no quanto a sul de tudo estamos, uma latitude realmente inóspita. Basta também lembrar que cerca de 40% da população e do PIB argentinos estão concentrados na província de Buenos Aires para entender a distância, não apenas física, que separa o resto do país da região da capital.
Chegada a El Chaltén, com os míticos Cerro Torre e Cerro Fitzroy emoldurando a paisagem.
No Brasil, a óbvia comparação que vem à mente é a da Amazônia, mas suas características geográficas tornam mais difícil cruzar grandes trechos para vivenciar a extensão desse vazio. E ainda assim, hipótese minha, acho que a Amazônia, por sua maior riqueza de recursos, é menos vazia, mesmo em termos humanos, do que a Patagônia.
Já estive em muitos lugares na Amazônia, mas sem a mesma oportunidade de percorrer um longo transecto da região como a proporcionada por essa viagem de carro pela Patagônia.
O Cerro Tronador (3.491 m), na região de Bariloche, e um de seus glaciares
despencando em gigantescas cachoeiras.
A sensação na Amazônia, apesar da possível semelhança demográfica, é oposta. O lugar mais remoto em que estive na região foi provavelmente o Pico da Neblina, na Cabeça do Cachorro, fronteira entre o estado do Amazonas e a Venezuela. Ali, depois do voo entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira, percorremos cerca de 200 quilômetros por estradas precárias e mais uns 50 por rio antes de iniciar a subida da montanha.
Na floresta tropical, entretanto, o horizonte sempre restrito e a densa vegetação, mesmo na ausência de marcas humanas evidentes, provocam um sentimento de espaço preenchido que não se compara à vastidão não marcada da Patagônia. A sensação mais próxima foi justamente a que tive no cume da montanha, quando o colchão de nuvens se abriu e pude olhar para a amplidão infinita do dossel da floresta, perdendo-se na distância provavelmente por 200 ou 300 quilômetros. Ainda assim, são experiências completamente diferentes.
A subida até o Refúgio Otto Meiling (1800 m), no Cerro Tronador, Parque Nacional Nahuel Huapi.
De outro lado, nos lugares povoados da Patagônia e da Amazônia, há semelhanças ligadas àquilo que as duas regiões têm em comum. Mesmo nas cidades mais turísticas, como El Chaltén e El Calafate, que emulam uma atmosfera europeia, com seus bistrôs, guarda-sóis e quadros-negros em cavaletes nas calçacas exibindo os menus do dia, há um outro lado de abandono e de improviso: carros estragados e para sempre deixados nos jardins, engradados de bebidas esperando uma coleta que já não acontecerá, postos de gasolina fechados para sempre, tomados pelo capim e com letreiros enferrujados. Apesar do turismo e do ar cosmopolita, tudo isso lembra que estamos na fronteira econômica, onde pode ser mais caro consertar um carro do que comprar um novo, onde o custo do improviso é o que torna possível a manutenção da presença humana, onde ainda é preciso inventar a possibilidade de ficar a partir das condições locais porque as distâncias são muito grandes e o rigor do ambiente natural implacável.
Por isso, a Patagônia é também essa mistura estranha entre o ultramoderno e o possível das condições mais adversas. Em El Chaltén, que se intitula “capital mundial do trekking”, combinam-se, como dito, os restaurantes sofistiscados, as enotecas e as lojas de marcas chiques de roupas e equipamentos outdoor, como Columbia e North face, aos quintais cheios de entulho, às construções abandonadas, às gambiarras nas fiações e às caminhonetes enferrujadas das ruas periféricas.
Refúgio Otto Meiling, no Cerro Tronador.
E ainda assim sei que não vivenciei plenamente essa Patagônia vazia. Eu apenas passei por ela. Minha vontade, para uma próxima viagem, é apontar o dedo para um dos gigantescos espaços brancos do mapa, por onde passam apenas distantes estradas de terra, e dizer: “quero ir aqui”. Experimentar, quem sabe, a vida solitária em uma estância no meio do nada, apenas uma casa cercada por uma fila de árvores como defesa contra o vento eterno.
Não romantizo a vida dura de lugares assim, mas tenho certeza de que experiências como essa abrem portas para aspectos de nós mesmos que desconhecemos. Além disso, conheço e dou valor à simplificação da vida propiciada pelo desafio de vivenciar lugares remotos. Eles nos permitem atentar, ainda que por poucos dias, para aspectos mais básicos do que é ser membro da espécie humana, relativizando nossa ilusão de autonomia e de separação do dito “mundo natural”. Não somos nada diante da força de uma tempestade em uma montanha patagônica ou da grandiosidade de um rio amazônico.
A possibilidade de abandonar nossa arrogância moderna e de nos colocarmos em maior sintonia com os ambientes por onde passamos é um tipo de inteligência que lugares como a Patagônia e a Amazônia oferecem.