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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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A impotência como espírito do tempo

| 06.08.24 - 08:44 A impotência como espírito do tempo O terreno concretado na Rua 57, em Goiânia, em função do acidente com Césio 137, deveria servir de advertência em relação à necessidade de outra relação com a ciência (Foto: Adelano Lázaro/Wikimedia)
É difícil que conversas sobre mudanças climáticas ou sobre as grandes questões ambientais de nosso tempo não terminem em baixo astral. Acabo de concluir a leitura do excelente, mas assustador, O Decênio Decisivo, de Luiz Marques, e ouço que hoje já surge nos consultórios de psicanálise o sintoma da "ansiedade climática", angústia resultante da aparente inevitabilidade dos impactos do aquecimento global.
 
No fundo, parece que nossa grande questão contemporânea é a de como lidar com a sensação de impotência com que as crises simultâneas do meio ambiente e da política nos confrontam. 
 
Cabe lembrar, entretanto, que, para a psicanálise, essa é, na verdade, a única e grande questão contra a qual lutamos desde que a espécie humana existe e de que tomamos consciência de nossa mortalidade. Toda angústia é resultado, no fundo, da falta de sentido diante da inevitável finitude.
 
Sem questionar essa constatação, creio todavia que essas crises do nosso tempo tornam ainda mais difícil recalcar essa imensa sombra e não olhar de frente para a finitude. Já não é mais possível desviarmos o olhar e buscarmos subterfúgios. Diante da possibilidade do fim da espécie ou de pesadelos distópicos trazida pelas mudanças climáticas, mesmo para quem segue se escondendo torna-se cada vez mais penoso negar a tempestade que se arma.
 
De um lado, há o consenso científico em torno dos impactos das mudanças climáticas. Mesmo nos cenários mais otimistas, em que consigamos cumprir o estabelecido no Acordo de Paris, de 2016, e limitar o aquecimento da temperatura média a 1,5oC em relação ao período pré-industrial, haverá, segundo o IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, mudanças importantes que produzirão impactos especialmente sobre as populações mais vulneráveis e que exigirão esforços de adaptação.
 
De outro lado, a democracia, com seu tempo lento para a criação de consensos, parece claramente incapaz de promover as mudanças necessárias com a urgência que a ciência e o clima exigem. Sempre foi complexo, mas tornou-se ainda mais difícil em um contexto de polarização política onde os extremos discordam sobre termos básicos da realidade e ataca-se a própria democracia.
 
A democracia é um pequeno grande milagre do século XVIII, uma espécie de efeito colateral inesperado do iluminismo. É bem provável que outra forma de governo tivesse resultado, não fossem as experiências sangrentas de todos os absolutismos da Idade Média e das revoluções daquela época. Olhando em retrospecto, dada a fé na razão que guiava os iluministas, fazia mais sentido que, daquele caldo político e cultural, surgisse um sistema político em que a vida em sociedade fosse regida por uma elite de sábios e cientistas ou algo do gênero. A memória dos autoritarismos era, não obstante, fresca demais. De seus ideais, surgiu, por isso, esse sistema alicerçado na garantia dos direitos individuais contra abusos do Estado e da maioria governante.
 
A verdade, entretanto, é que a democracia já surge enfraquecida em seu nascedouro por uma certa ideia associada que permitiu, por muito tempo, eclipsar a relação inseparável que existe entre a produção do conhecimento e o poder. 
 
A visão de que os cientistas apenas revelam fatos que "colhem" junto ao mundo natural cria o mito da neutralidade da ciência, oculta essas intrincadas relações entre conhecimento e política e, desde sempre, nos lega uma democracia débil, onde à política, no fundo, resta apenas acatar as verdades inquestionáveis trazidas pelos cientistas.
 
A sociedade espera isso de nós, cientistas: que ofereçamos fatos incontestáveis que sirvam para dirimir os conflitos inevitáveis da subjetividade humana, com suas opiniões inconciliáveis e valores dissonantes. 
 
Todavia, um dos aspectos mais importantes das crises contemporâneas reside precisamente no fato de que a questão ambiental torna evidente que a ciência não tem mais - se é que algum dia teve - essa capacidade para oferecer consensos. Ao contrário, nas grandes controvérsias de nosso tempo, a própria ciência parece acrescentar mais lenha à fogueira ou ser, ela mesma, o centro do problema. Transgênicos, agrotóxicos, mudança climática, armas de destruição em massa, explorar ou não o petróleo na Foz do Amazonas, Inteligência Artificial, regulação das redes sociais. No centro de cada uma dessas controvérsias, está a ciência. Até mesmo nas Olimpíadas: por que os cientistas não tranquilizam os pobres atletas em relação à qualidade das águas do Rio Sena?
 
Já não é mais possível negar os estreitos laços que conectam a ciência e a tecnologia por ela produzida ao estado de coisas angustiante a que chegamos. Embora desde Hiroshima e Nagasaki, o bode já exibisse seus chifres na porta da sala, hoje, ele se encontra à mesa de jantar e, como bom caprino, não se lança apenas aos delicados pratos dos comensais. Ele não hesita em mastigar o forro da mesa e mesmo a barra dos vestidos de grife das sensíveis senhoras ou os charutos dos elegantes cavalheiros.
 
O lema do progresso que não pode ser detido tem seus efeitos colaterais camuflados pela tranquilizadora ideia de que a ciência apenas revela fatos da natureza e não tem responsabilidade sobre os efeitos negativos do uso desses conhecimentos. Com essa desculpa, ela tomou assento no banquete e ajudou a produzir as multidões de excluídos que agora também gritam do lado de fora - todos aqueles não convidados ao jantar de gala da modernidade e do capitalismo: os pobres de todas a partes, as vítimas de câncer e obesidade, os povos indígenas, as árvores da Amazônia e do Cerrado, os peixes do oceano, os recifes de coral, os ursos polares, os pinguins, a própria atmosfera, os glaciares que derretem em ritmo acelerado, as abelhas contaminadas. É um bocado de gente.
 
A política, inutilizada desde o início, nunca deu conta do recado. Ao contrário, quanto mais a multidão aumenta do lado de fora, mais parece elevar o volume de seu discurso sobre a inevitabilidade e a necessidade do progresso: é preciso seguir em frente justamente porque há uma multidão do lado de fora que precisa ser incluída no banquete. Para isso, precisamos aumentar o tamanho da mesa, a quantidade de comida, contratarmos um salão ainda maior e uma orquestra com mais instrumentos.
 
Todavia, uma vez mais, a crise ambiental revela o ridículo do discurso do progresso e das mudanças graduais: "É preciso apressar a transição energética e fazê-la com justiça social"; "as novas tecnologias mostram ser possível uma agricultura sustentável, só precisamos de mais um pouco de tempo e recursos"; "a nova reforma do Estado trará contas mais sólidas e os investimentos necessários para uma nova época de progresso".
 
Ninguém acredita mais nesse falatório. É constrangedor.
 
Felizmente, por outro lado, ainda temos alguma memória. A história, desde a mais distante até a dos nossos dias, não faz se não confirmar e reafirmar que, ainda assim, o pior do humano sempre aconteceu e continua emergindo das soluções autoritárias, à direita e à esquerda.
 
A aposta, por mais que a tarefa pareça ser maior que nossas forças, tem que ser em mais democracia - em defendê-la, aprofundá-la, fortalecê-la, em reformá-la para que cumpra suas promessas de liberdade e igualdade.
 
Para isso, e talvez essa seja justamente a parte mais difícil do desafio, será preciso chamar os cientistas a assumirem suas responsabilidades. Já não é mais aceitável que possam fazer o que querem usando a desculpa do progresso. Não cabe mais se esconderem atrás da desculpa esfarrapada de que é preciso garantir a autonomia da ciência porque sua contaminação abre a porta para o pior do autoritarismo. Ora, a porta dos fundos sempre esteve escancarada para servir aos interesses econômicos e fazer avançar o progresso mesmo com o alto preço que hoje já não se pode negar.
 
Não sei se seremos capazes de produzir essas mudanças, que tocam o coração de nossa sociedade, para que nossa espécie possa seguir existindo por um tempo ainda indefinido neste planeta, mas tenho certeza de que, sem reinventarmos essa relação entre conhecimento e poder as perspectivas não serão das melhores.
 
Isso, claro, não resolve tampouco o problema da ansiedade e da sensação paralisante de impotência, mas ao menos oferece, quem sabe, alguma perspectiva. Uma vez que as ciências sejam convocadas a estarem à altura da ideia de democracia, a cidadania ganha outros contornos e, com ela, a possibilidade de uma vida coletiva nova - sem que, para isso, precisemos flertar com revoluções e autoritarismos.
 
Talvez, ao fim e ao cabo, não seja mesmo possível, mas, de todo modo, em algum momento, não será, nem que seja daqui a bilhões de anos, quando o Sol entrar em colapso, se expandir na forma de uma Gigante Vermelha e engolir a Terra. 
 
Enquanto isso, se nos for dado um pouco de poder, vale seguir tentando.
 

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