A família morava nos rincões de uma terra isolada do mundo, onde o que havia de mais próximo era um comércio informal que vendia mantimentos básicos como farinha, feijão, arroz, café, açúcar e óleo. Mas a tal mercearia ficava a uns dez quilômetros da tapera que abrigava a família. Carro, moto, bicicleta ou qualquer outro meio de transporte, que não fosse o jumento, eram totalmente descartados. Muitos nem conheciam! Plantavam o que comiam e, uma vez, de tempos em tempos, os mais velhos enfrentavam a estrada para vender o que sobrava da safra. Era o pé de meia que a família fazia para os gastos-surpresa, que não eram poucos.
A família era grande e muito ligada aos seus, já que gente por ali era coisa rara de se encontrar. Na pequena casa perdida no meio do nada, moravam 17 pessoas entre pais, mães, filhos, filhas, netos, netas, bisnetos e bisnetas. Eram tão apegados que quando a morte batia à porta e levava um dos membros, os que sobravam se encarregavam de cultuar o corpo o máximo de tempo possível e, logo em seguida, já encomendavam outro membro, se é que me entende. Poucas semanas após uma morte, uma gravidez era anunciada. E o enterro do morto era sempre uma lamúria. Por respeito, os primeiros membros da família, quando morriam, eram envolvidos em lençol branco, com flores de mandacaru sobrepostas na cova para que a terra não caísse diretamente no pano.
Numa das viagens que fez à cidadezinha que ficava distante uns 40 quilômetros, o patriarca avistou um pequeno tumulto na porta de um casebre e foi ver do que se tratava. Velavam uma senhora que havia morrido de febre tifoide, dois dias antes. Ficou encantado quando viu o corpo ajeitado num caixote de madeira, com flores em volta e um véu que impedia os mosquitos de assentarem na defunta. Questionou sobre o envoltório e até pensou em construir alguns para estocar em casa. Desistiu quando lembrou que madeira boa era coisa rara por aquelas bandas. Voltou pra casa com a ideia de ter sempre um esquife no estoque.
Semanas mais tarde, vai-se a sogra para a vida eterna. Ao acordar e saber da notícia, o patriarca lembrou-se do velório e saiu em disparada, montado num jegue, estrada afora, comendo poeira, mas determinado a ir e voltar no mesmo dia com uma urna funerária para enterrar mais um membro da família. Na corrutela, a informação era que caixões por ali não havia. Os poucos moradores compravam urnas funerárias de um caixeiro viajante que passava pela região uma vez a cada três ou quatro meses. Se morresse mais de uma pessoa da mesma família antes do prazo de retorno do mascate, pedia-se o caixão do vizinho emprestado para o enterro, com o compromisso de devolução na próxima remessa. Foi aí que, imaginando o perrengue da situação – na dificuldade por não ter vizinhos e na distância que era para comprar a urna – o patriarca resolveu usar o pé-de-meia para comprar esquifes.
Por tudo isso, a família começou a produzir mais, vender mais e economizar mais dinheiro. Uma vez a cada seis meses eles juntavam a grana e rumavam até a cidadezinha para encomendar mais uma urna funerária que era entregue em domicílio. E cada chegada de mais um caixão na tapera no meio do nada era motivo de festa. Tanto que o comerciante resolveu incluir a casa da família na rota do caminhão de entregas para garantir a participação no rega-bofe e no arrasta-pé. Quando o caminhoneiro buzinava na estrada, a família inteira corria para a porteira com a cachaça na mão, que era para alegrar e relaxar o vendedor.
Por ali o caixeiro ficava pelo menos um dia e uma noite, que era o tempo que durava a festa preparada para receber a urna funerária. Depois de descarregar o caminhão e colocar os caixões em um lugar de destaque na sala da casa, o vendedor juntava as trouxas, recebia uma matula com o que havia sobrado da festa, entrava no caminhão e rompia a estrada. A saudade da festança começou a fazer o vendedor voltar mais vezes, até que ele se engraçou com uma das netas do patriarca. O casamento veio menos de um ano mais tarde com uma festa que durou três dias e só acabou quando um dos caixões, expostos na sala, caiu de mau jeito na têmpora do patriarca, matando-o instantaneamente. Depois do velório, seguiu-se a festa, desta vez para anunciar a chegada de mais um membro da família, já encomendado antes mesmo do casamento, com a participação do caixeiro.
*Rimene Amaral é jornalista, radialista e fotógrafo