Charlie Kirk, desconhecido da vasta maioria dos que hoje, no Brasil, lamentam sua perda, era um “bastião da liberdade de expressão” como alguns defendem. Provocava jovens universitários a definirem seus conceitos, argumentarem visões e apresentá-los com sabedoria. Ocupou um espaço de debate que havia sido esquecido: do jovem, e conquistou centenas (ou até milhares) de votos para seu candidato à presidência, o que levou Trump a nomeá-lo para um corpo diretor das Forças Armadas (mesmo não tendo qualquer experiência sobre o assunto).
Morto a tiro, aparentemente por alguém que cresceu em família ultraconservadora, Kirk não defendia apenas a liberdade de expressão. Defendia que mulheres seriam mais felizes se estivessem em casa cuidando da família, que o Islã (que criou a álgebra, as universidades, as relações internacionais) não combina com o Ocidente, que algumas mulheres negras não têm capacidade cognitiva, que transexualidade é um transtorno mental, e que as mortes por armas eram tristes, mas necessária consequência para salvaguardar a “segunda emenda”. E apesar de todas essas frases serem retiradas de seus contextos, garanto ao leitor que o contexto não as melhora. Como sei? Acompanho Kirk há anos e vi todas as frases, todas as fotos e todos os comentários possíveis do jovem de 31 anos que perdeu a vida.
Por que nos importamos com Kirk?
Por ser humano — isso deveria bastar, não? A verdade é que não! Ao menos 72 pessoas morreram nos protestos Anti-Corrupção (Nepal); 200 após a morte de Mahsa Amini (Irã); 302 pessoas nos tiroteios em massa (EUA); e mais de 66 mil pessoas no conflito Israel-Palestina.
Há uma espécie de entorpecimento psíquico, um mecanismo cognitivo que emerge, quando o sofrimento é acima da nossa capacidade de “digestão”. Frankl descreve-o nos campos de concentração, quando as pessoas ficavam apáticas, como se houvesse um mecanismo protetor do cérebro. É a aritmética negativa de empatia: quanto mais pessoas sofrem… menos empatizamos com as pessoas ou seu sofrimento.
Mas será que é apenas isso?
Nos últimos 5 anos, 81 pessoas foram assassinadas por violência política no EUA, 54% das quais mortas por pessoas ou grupos de direita e 22% por grupos de esquerda (Fonte: Instituto Cato). O erro do discurso usado nos últimos dias vai além do ranking esquerda/direita, já que, no fim, arrisco em afirmar: 100% são mortes provocadas por extremistas.
Há três meses Melissa Hortman (congressista democrata) foi morta e não houve comoção internacional. Pelo mesmo motivo que esquecemos que quem tentou matar o Trump era um republicano registrado com discurso anti-imigração: viés de categorização.
Nossos cérebros têm uma necessidade de organizar o mundo, para compreendê-lo melhor, então formamos ideias exageradamente amplas acerca de pessoas, produtos, lugares, ou objetos. E, para a maioria, pouco importam os dados aqui apresentados, a verdade é que o cérebro já organizou a informação. Isso porque organizamos as informações em quadros cognitivos e se mais inclinados a um ou outro lado do espectro político, tendemos a interpretar o mundo com essa inclinação. Então torna-se compreensível porque para uma pessoa de direita, a morte de Kirk pesa mais que a de Hortman, e para alguém de esquerda a reação de revolta por sequer lembrarem de Hortman se faz também compreensível.
Essas estratégias cognitivas (categorização e viés de enquadramento) simplificam a informação, diminuindo pensamento crítico, dando uma ilusão de simplismo para só clicar, compartilhar e esperar viralizar… E a morte de Kirk viralizou!
No meu caso, acompanhava os vídeos de Kirk há anos (para meus neurônios e para mim, ele era alguém do meu dia a dia); vi-o levar o tiro; e tudo isso influencia a minha empatia.
Por que as plataformas mostraram o tiro?
Em março de 2019, após um ataque terrorista na Nova Zelândia (que baniu totalmente as armas de fogo para uso civil no país), o site do Fórum de Global de Internet para Contra-Terrorismo diz que estabeleceram “comunicações centralizadas para partilha de notícias que possam disseminar violência (…) e um mais ágil resposta entre as empresas-membro”. Podemos então concluir que se houve circulação do vídeo, é porque as “empresas-membro” queriam! Mas por quê?
Notícias como essa (e a violência gráfica do vídeo), tendem a levar os moderados a apoiar o lado da vítima (no caso, um dos dois lados da contenda esquerda-direita). É raro um conteúdo tranquilo e saudável viralizar, entre outros, porque quando irritados, frustrados ou tristes, usamos mais mídias sociais (afinal queremos a dose rápida da substância chamada dopamina que é liberado pelos vídeos das plataformas). As plataformas ganham na contenda. E quanto mais nelas ficamos, mais usamos os demais serviços das plataformas.
E por quê este texto?
A verdade é que, como muitos textos, o autor escreveu para organizar seus próprio pensamentos. Queria tentar entender o que me fez sentir luto por alguém com quem não concordava — talvez tenha concordado com ele um par de vezes. Uma delas, quando Kirk disse que deveríamos entrar em debates abertos a estar errados. Mesmo achando que ele não o fazia (uma vez o ouvi dizer “talvez considere a sua ideia”), esta ideia me parece acertada.
Kirk era quem, em seu próprio programa, disse certa vez considerar “empatia” uma palavra inventada, dos tempos atuais, com a qual teria seus problemas.
Irônico, porque Kirk foi quem me fez entender que duas coisas podem coincidir: não gostar das ideias, falas e ações de alguém, e achar que a pessoa não merecia morrer.
Irônico, que mesmo não gostando da ideia de empatia, Charlie ensinou uma coisa à internet: sua morte uniu a internet em empatia. Afinal, ninguém merece morrer assassinado!
*Sam Cyrous (@sam.cyrous) é doutor em Psicologia (CRP09/8178) e comendador em Direitos Humanos (Câmara Municipal de Goiânia)