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Pela segunda vez consecutiva a minha manhã começou com tristeza. Ontem foi por conta da notícia do iminente corte das eminentes gameleiras da Praça da Cirrose. Hoje por ver as imagens das árvores derrubadas na Marginal Botafogo. Parecia cenário de guerra, com corpos espalhados pelo terreno.
Já me atormentava há alguns dias o fato de que a gameleira da Avenida Araguaia não está mais entre nós. Restou dela um clone – a síntese de um ensaio sobre a cegueira, uma quase confissão oficial de culpa – para que os nossos netos um dia, quem sabe, o possam ver transformado de novo na imponente árvore cujas raízes aéreas por décadas chamaram a atenção de pais e crianças a caminho do Mutirama. Isso se a muda clonal não for consumida pela burocracia, como o próprio Mutirama.
Várias cidades no mundo, inclusive no Brasil, vêm realizando intervenções urbanísticas específicas para preservar árvores que as simbolizam. Uma sensata reverência a esses incríveis seres vivos simplesmente por existirem e ao mesmo tempo uma forma de reconhecer os seus valores ecológico, histórico, cultural e, não menos importante, espiritual.
Em São Paulo redesenharam-se as calçadas, suportes estruturais foram colocados, uma cerca foi construída. Porque a figueira da Praça Buenos Aires estava lá. Em Belo Horizonte, calçamentos foram desviados para preservar as raízes do jequitibá-rosa do Parque Municipal. No Rio de Janeiro o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) vem promovendo o tombamento de exemplares isolados. Como na capital mineira, passeios foram reconfigurados para acomodarem as suas crescidas raízes, para alívio de mangueiras espalhadas pelas vias públicas e das figueiras do Jardim Botânico.
Em Curitiba e Brasília, ciclovias contornam árvores antigas. Parece óbvio, afinal a bicicleta, uma nova forma de pensar a cidade, não pode sucumbir ao atraso de jogar por terra tudo o que se coloque no caminho de um projeto viário pensado numa repartição pública. Nas cidades que estão preocupadas com um futuro sustentável, em fazer uma transição para uma economia de baixo carbono, árvores são tombadas. Tombadas, é claro, no sentido de se preservar bens de valor histórico, cultural, ambiental e de valor afetivo para a população. Em Goiânia, as nossas árvores sabem que o sentido da palavra “tombamento” é bem diferente.
Não é só aqui no Brasil. Em Barcelona calçadas foram requalificadas com espaço suficiente para abrigar raízes, sinalização e monitoramento. Tudo para proteger os plátanos centenários do Passeig de Sant Joan. Em Paris, um cuidadoso planejamento paisagístico com proteção de raízes e restrição ao tráfego foi feito para preservar as árvores centenárias dos Jardins de Luxemburgo e aquelas que ornam as margens do rio Sena. Em Tóquio foram construídas calçadas permeáveis e foi regulamentada a construção próxima aos Ginkgos centenários. Em Nova Iorque zonas de proteção e trilhas foram criadas e redesenhadas. A Big Apple promoveu o deslocamento de infraestruturas urbanas para evitar o abate de árvores que evocam profundos sentimentos, como as “Great Trees” do Central Park e outras tantas em bairros como o Brooklyn. Em Lisboa, oliveiras e sobreiros centenários ganharam a proteção do programa “Arvoredo de Interesse Público”, além de que regulamentos foram específicos foram estabelecidos para impedir remoções.
Em todos esses lugares foi a cidade que se adaptou às árvores, que de tão majestosas passaram a fazer parte da nossa própria existência. Da nossa memória afetiva. Da nossa empatia. Da nossa civilidade.
Uma administração que olha para o futuro – especialmente num ano em que é o mundo que vai estar olhando para o Brasil durante a realização da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas – deve entender que as árvores são mais do que raízes estragando calçadas ou galhos atrapalhando a fiação elétrica.
As árvores em diversas culturas e tradições são tidas como símbolos que representam a vida, a força, a longevidade, a conexão com o mundo natural e o divino. A sua forma vertical, com raízes no subsolo e copas que alcançam as estrelas, simbolizam a centralidade do mundo, ligando o céu, a terra e o inferno. E, nessa cosmologia de nós mesmos as árvores não cabem no inferno, o dantesco lugar para onde foram enviadas a gameleira da Araguaia e muitas das árvores que ajudavam a sustentar as barrancas do Córrego Botafogo.
Por isso, deixo aqui um apelo: prefeito Sandro Mabel, ainda é tempo de salvar as quatro gameleiras da Praça da Cirrose. E de deixar em paz as árvores que restaram na Marginal Botafogo. Faça dessa uma bandeira da sua administração. Afinal, são árvores que trazem em suas raízes, mais do que a história da nossa cidade, as nossas próprias raízes. As suas, as minhas, as de todos nós.
Fernando Tibúrcio é advogado e ex-secretário da Casa Civil em Goiás